Crônicas da histeria progressista
Na guerra cultural em curso, somos todos perdedores, nós que recusamos o alinhamento à direita paranoide e à esquerda histérica (mas os adjetivos são intercambiáveis)
Há uma guerra cultural em curso, e estou entre os derrotados.
Constato o fato sem amargura: a guerra ainda está longe de acabar, até porque não há armistício possível, e eu já perdi. Somos todos perdedores, nós que recusamos o alinhamento fácil às duas potências em conflito – grosso modo, a direita paranoide e a esquerda histérica (mas os adjetivos são intercambiáveis).
Os combatentes recusam-se a reconhecer nossa neutralidade crítica, e às vezes o franco atirador à direita nos alveja na convicção que somos da esquerda, ou vice-versa. Com mais frequência, porém, nossas atividades são ignoradas. Pois felizmente ainda nos sobra amplo espaço entre as trincheiras.
Seguimos, os derrotados, conversando, discutindo, trocando ideias, discordando uns dos outros com fervor e civilidade. Ainda nos encontramos em cinemas, teatros, salas de concerto, festas, mesas de bar. O mandamento segundo o qual “tudo é político” não nos constrange, pois sabemos que a amizade resiste às diferenças, e que na saideira fica sempre a promessa do reencontro. É bem animado o no man’s land em que nos coube viver.
Seguimos atentos ao conflito que nos cerca. Por vezes, até nos divertimos com a farsa dos cruzados de Facebook e com o histrionismo dos revolucionários de Twitter. Mas o riso cínico acaba deixando na garganta um pigarro melancólico, pois a guerra cultural, embora ridícula, tem de ser levada a sério. Seus expoentes têm milhões de seguidores no YouTube, ocupam colunas de jornal, conduzem campanhas censórias, vencem eleições.
Com a seriedade possível, quero fazer hoje a crônica de agitações recentes que tenho visto no lado esquerdo do front. Reuni episódios do mundo artístico, com personagens distintos – um músico, um escultor, um comediante – que, por diferentes motivos, ofenderam a delicada mas agressiva sensibilidade hoje predominante no meio cultural. São três anedotas representativas da vida nas trincheiras, com a lama e a miséria próprias dessa situação.
WIN BUTLER, ou o roqueiro abusador
Em pouco mais de vinte anos de carreira, a banda canadense Arcade Fire vendeu milhões de discos, encheu estádios e casas de show mundo afora e já contou com a participação especialíssima de David Bowie em uma de suas canções, Reflektor. É um dos grupos mais consagrados do indie rock, ou rock alternativo, e como tal entende a sensibilidade das novas gerações: suas letras falam de rebeldia e desorientação juvenis, das dores do crescimento, da inadequação ao mundo adulto. Talvez eu seja velho demais para tanto, mas aprecio a melancolia dessa banda canadense hoje liderada por seu único membro americano, Win Butler (seu irmão, Will Butler, deixou o Arcade Fire este ano).
Não se encontrará no Arcade Fire os transbordamentos de testosterona tão costumeiros no rock dos anos 60 e 70. Win Butler nunca compôs nada que se aproxime da franca obscenidade de Start Me Up, dos Rolling Stones, ou Whole Lotta Love, do Led Zeppelin. Figura quase assexuada em sua performance de palco, o cantor, no entanto, agora é acusado de "conduta sexual inadequada”.
O site Pitchfork, especializado em música pop, ouviu quatro fãs do Arcade Fire que se declararam exploradas ou abusadas pelo cantor e guitarrista do grupo. Três são mulheres; a quarta depoente se diz “sexualmente fluida” e por isso opta por ser tratada pelo pronome plural "they", que em inglês não traz marcação de gênero – pode ser “eles" ou “elas”. Tudo leva a crer que se trata de uma mulher (na reportagem, seu nome real é protegido por um pseudônimo feminino, Lily).
Os casos narrados no site aconteceram de 2015 a 2020, quando Butler teria entre 34 e 39 anos. As supostas vítimas tinham então idades que iam 18 a 23 anos – todas jovens, mas adultas. A suspeita de estupro não foi levantada. As acusações mais graves partem de Lily. Ela afirma (ou el@s afirmam?) que Butler teria forçado um beijo e colocado a mão no meio de suas pernas, sem autorização para tanto. Butler nega. Diz que nunca tocou ou beijou uma mulher sem que o relacionamento fosse consensual. Sua esposa e companheira de banda, Régine Chassagne, emitiu uma nota em que se declara convicta de que o marido jamais tocaria em uma mulher sem o consentimento dela.
O grosso das acusações, como é típico na era digital, diz respeito ao comportamento de Butler no celular. Ele remetia fotos íntimas às fãs, e em troca pedia que elas mandassem fotos e vídeos com performances eróticas. A possibilidade de bloquear as mensagens do cantor não ocorreu a nenhuma das moças, ou só ocorreu muito tarde.
O leitor talvez considere que o comportamento de tiozão tarado de Butler foi impróprio, indecente, ou um tanto patético (seria o caso de parafrasear Fernando Pessoa – aliás, Álvaro de Campos: todo mundo que pratica sexting é ridículo, mas só as criaturas que nunca praticaram sexting é que são ridículas). Mas o dado realmente estarrecedor é a inércia das quatro mulheres. Nunca reagiram ao que mais tarde perceberiam como abuso.
A premissa da reportagem da Pitchfork está bem alinhada ao ideário do progressismo woke: a diferença de idade e o “desequilíbrio de poder” entre o astro e suas fãs tornavam a relação desigual e abusiva. Uma quinta mulher entrevistada pelo site conta que fez sexo com Butler, e que foi tudo consensual – mas que, ao mesmo tempo, ela não conseguiria dizer não às investidas do líder do Arcade Fire… Quando a mulher diz não é estupro: eis um princípio sólido e inatacável. Mas também pode ser estupro, ou abuso, quando a mulher diz sim em um relacionamento "desequilibrado"? Será que depois de décadas de feminismo as mulheres são bonequinhas sem discernimento, incapazes de negar sexo a um cantor?
Então veio o indefectível cancelamento: em resposta às pífias revelações da Pitchfork, estações de rádio nos Estados Unidos e no Canadá começaram a tirar o Arcade Fire da programação. A cantora Feist deixou de fazer shows de abertura da turnê da banda – que está promovendo seu novo disco, WE – em solidariedade às vítimas de Butler.
As três mulheres e a entidade líquida entrevistadas pela Pitchfork parecem precisar mesmo de amparo. Todas dizem ter ficado marcadas pelo envolvimento com Butler. Sofreram de depressão. Uma delas tentou até se suicidar com uma dose maciça de Tylenol. Tamanha fragilidade me desperta um misto de irritação e pena. Quem suspeitaria que gente fluida pudesse ser tão quebradiça?
ANTONY GORMLEY, ou o escultor falocrata
Em 2012, fiquei muito impressionado com os trabalhos do escultor inglês Antony Gormley expostos em uma mostra no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo. Gormley atualiza a representação do corpo humano, que sempre foi uma das linhas fortes da escultura.
No entanto, acho que o artista não foi muito feliz em ALERT, escultura comissionada para ocupar lugar central na praça de um campus do Imperial College, em Londres. Modelos e projetos da obra mostram a estilização geométrica de um homem agachado, com as pernas dobradas à frente do corpo. Ocorre que uma viga metálica de três metros projeta-se do corpo da figura. Ao que parece, Gormley esperava que o espectador entendesse que esse apêndice representa os joelhos. A sugestão imediata, porém, é de que a viga corresponde à parte do corpo que Win Butler exibia em suas mensagens por celular.
No Imperial College, há resistência à escultura, o que é compreensível: três metros é um excesso priápico. Mas então leio em um site de notícias sobre arte que a universidade preocupa-se em particular com estudantes “que se identificam como mulheres” (sic). Elas já estão sub-representadas no Imperial College: formam só 39% do corpo docente. Teme-se que a ereção involuntária do gigante metálico possa “excluí-las” ainda mais. Mais uma vez, a nova mulher progressista é representada como uma figura fraca, que se melindra facilmente – uma versão woke de Dona Bela, personagem vivida por Zezé Macedo na Escolinha do Professor Raimundo, e que se tornou famosa pelo bordão “ele só pensa naquilo”.
O pênis já aparecia na escultura antiga e renascentista, ainda que em dimensões mais modestas. Por que ele hoje teria o poder de “excluir" mulheres de um curso universitário? Desconfio que essa ideia tem suas bases no pensamento identitário mais extremista, que divide as pessoas em categorias inescapáveis: todo branco é racista ou supremacista; todo homem é um estuprador em potencial. Um poeta brasileiro publicou recentemente versos nos quais ensinava que a expressão “masculinidade tóxica” é um pleonasmo, pois não pode existir uma masculinidade não tóxica: esta é uma boa síntese do credo das Donas Belas pós-modernas.
Se eu dizia antes que a guerra cultural está longe do fim, é porque se trata de uma guerra de atrito permanente, no qual a agressão retórica está sempre subindo novos degraus na escala da estultice. À bobagem identitária de uma masculinidade ontologicamente tóxica, a direita brucutu responde com o "orgulho hétero", que por sua vez permite ao militante woke proclamar que esteve sempre certo, que todo homem é tóxico, radiativo.
Não me surpreenderei se ALERT, uma vez instalada no campus, venha a ser vandalizada, como já aconteceu, em Londres, com a estátua de Churchill, esse supremacista tóxico que enfrentou Hitler. Gormley, coitado, não merece isso. Na concepção inocente de sua escultura, ele só exagerou no tamanho dos joelhos.
DAVE CHAPPELLE, ou o comediante transfóbico
Quase sempre, a guerra cultural só é guerra em sentido figurado. Mas já houve preocupantes eclosões de violência nos Estados Unidos, país onde começou essa treta infindável. Na Universidade de Berkeley, em 2017, radicais de esquerda promoveram um quebra-quebra para impedir que Milo Yiannopoulos, estrela da alt-right, desse uma palestra no campus. Os prejuízos chegaram a 100 000 dólares e várias pessoas foram agredidas. No mesmo ano, em Charlottesville, um militante de extrema direita atropelou e matou uma mulher que participava de um protesto contra manifestações neonazistas que ocorreram na cidade.
E já temos o terrorista identitário: durante um festival de comédia stand up promovido pela Netflix no Hollywood Bowl, em maio, Dave Chappelle (de quem já falei em uma coluna anterior) foi atacado por um homem armado com uma faca. Os seguranças pularam sobre o agressor – por pouco, Chappelle não teve a má sorte de Salman Rushdie, gravemente ferido em circunstâncias similares.
Em entrevista concedida na prisão, Isaiah Lee, o agressor, disse que não planejara o ataque, mas que, como bissexual e ex-morador de rua, sentiu que as piadas de Chappelle sobre os transgêneros e os sem-teto foram um “gatilho”, disparando seus traumas. O comediante, concluiu Lee, precisava saber que suas palavras eram ofensivas, que podiam ferir as pessoas. A noção equívoca de “violência simbólica”, muito cara ao progressismo woke, encontra seu perfeito corolário: Chappelle precisava ser fisicamente ferido para entender que suas palavras machucam os sentimentos de gente sem senso de humor.
Um mês depois de sofrer o ataque em Los Angeles, Chappelle foi censurado em Minneapolis. Sob pressão de seus próprios funcionários, a First Avenue, tradicional casa de espetáculos da cidade, suspendeu uma apresentação do comediante. Até aqui, temos um roteiro já conhecido: a censura exercida não pelo governo ou por via judicial (não que essas modalidades tenham sumido do mapa), mas por grupos barulhentos, geralmente congregados pelas redes sociais. A novidade é que houve quem qualificasse o episódio como uma vitória… da liberdade de expressão!
O advogado Greg Lukianoff chamou atenção para esse curioso fenômeno em um artigo na Newsweek. Presidente da FIRE, organização dedicada à defesa da liberdade de expressão, e co-autor, com Jonathan Haidt, de The Coddling of the American Mind, minucioso diagnóstico das restrições ao livre pensamento nas universidades americanas, Lukianoff há muito alerta para os ímpetos censórios da nova esquerda guerreira. No artigo sobre Chappelle, ele cita professores universitários que foram ao Twitter celebrar o cancelamento do show na First Avenue como uma vitória da liberdade. Lukianoff aponta a confusão conceitual que essa gente faz: sim, a Primeira Emenda da Constituição Americana protege o direito de uma casa de shows cancelar a apresentação de um artista controverso, mas nem por isso o cancelamento deixa de ser censório. A liberdade de expressão permite que se reivindique censura; se tal reivindicação é atendida, no entanto, a liberdade de expressão sai derrotada.
Parecerá contraditório que o progressismo americano, com suas obsessões raciais, celebre a censura a um artista negro. Mas a nova esquerda identitária não está de fato comprometida com os grupos que alega representar. É um equívoco imaginar que essa ideologia histérica erre apenas pelo exagero na luta em prol de minoria oprimidas. Na guerra cultural, a luta se dá toda em torno de símbolos, pronomes, palavras proibidas. Não é pela liberdade, mas pelo reforço de tabus; não é pela igualdade, mas pela exclusão de quem pensa diferente; não é pela solidariedade, mas pelo sectarismo.
As maiores vítimas nesse campo de batalha não são figurões como Butler, Gormley ou Chappelle, que afinal conseguirão se recuperar dos eventuais "cancelamentos". Quem mais sofre são figuras como a fluida Lily e desorientado Isaiah Lee, convencidos de que a condição de vítima lhes é inerente, e que por isso toda relação é abusiva e toda piada é um “gatilho”.
Houve um tempo em que imaginávamos que essas alucinações progressistas seriam só uma moda fugaz, que o chamado do mundo real, onde as pessoas não são só letras na sigla LGBT+, ainda se faria ouvir. Mas não, não haverá trégua. E o pesadelo não é mais leve na trincheira oposta.
Permaneço, com alguns bons amigos, entre o campo minado e o arame farpado. Derrotado, mas que importa, se não há mais vitória possível?
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Comentários (10)
Barbara Muller dos Santos Solano
2022-10-06 21:48:14Excelente artigo.
VARLICE
2022-09-26 11:56:42Jerônimo sempre incisivo. Parabéns pelo artigo. Assino embaixo.
Alba
2022-09-23 18:18:28Quando deixaremos de vivenciar tanta tristeza?
José Cerqueira
2022-09-19 18:44:55Ainda sobre a tragédia do identitarismo.
MARILDA ALVES CHEMELLO LUZ
2022-09-19 15:31:02Guarda um lugarzinho pra mim aí, por favor!
Márcia
2022-09-19 14:50:49Uau, nada como ler algo que eu gostaria muito de poder escrever!!!
Ana Maria Coelho Pereira Mendes
2022-09-19 14:37:20Uauuu! Jerônimo Teixeira restabeleceu, simbolicamente, minha sanidade emocional e intelectual de cidadã (e minha confiança na publicação, pois já ia cancelar minha assinatura…). A guerra cultural com predominância progressista está tóxica, histérica e omnisciente… E, sem querer ser paranóica, mas sendo, a cultura woke é omnipotente, porque tem o monopólio do cancelamento (ou será o poder de…?). Depois do que aconteceu com O Antagonista: censura? Fala sério! Ufa, me salvei. Obrigada, Jerónimo.
Homero
2022-09-19 13:25:39Esquerda e direita são rótulos vazios gerados pelo iluminismo boçal e presunsoso da época da revolução francesa. No fundo tudo isto é ideologia judaico-cristã-islâmica que destruiu no ocidente a verdadeira civilização que era o helenismo. Ideologia que resultou em dois milênios de perseguições e guerras religiosas, sem a qual é difícil imaginar o surgimento do comunismo e do nazismo. O pouco que nos resta de iluminação provém do helenismo e das culturas orientais fundadas pelo hinduísmo.
Pasme Parve
2022-09-19 10:53:58Texte excelente, mas que me deixou inquiete. Só consigo pensar numa coisa: parem e munde que eu quero descer!
Antonio
2022-09-19 10:34:24Muito bom o texto. Sugiro fazer um texto com excessos da direita ou pode parecer que a imparcialidade do texto era só para parecer limpinho.