O breve instante em que Ciro balançou a lenda de Lula
A versão petista da história recente traça uma linha reta e contínua atravessando os protestos de 2013, as investigações da Lava Jato, o impeachment (que os petistas chamam de golpe), o governo Temer e a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018. Esse esquema simplista – que serviu de argumento para Democracia em Vertigem, o...
A versão petista da história recente traça uma linha reta e contínua atravessando os protestos de 2013, as investigações da Lava Jato, o impeachment (que os petistas chamam de golpe), o governo Temer e a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018. Esse esquema simplista – que serviu de argumento para Democracia em Vertigem, o documentário macambúzio de Petra Costa – ganhou uma pátina de plausibilidade graças à catástrofe que é o atual governo. Derrubaram Dilma, prenderam Lula, deu nisso!, concluem os petistas. Toda a conversa sobre a tal “restauração da democracia” que só a reeleição de Lula pode garantir fundamenta-se nessa impostura.
Lula foi bem-sucedido ao apresentar essa trama no Jornal Nacional. Esperto, amaciou alguns pontos cruciais: não falou em “golpe de 2016” e fez uma limitada concessão à verdade ao admitir que houve erros na política econômica de sua ungida e sucessora, Dilma Rousseff (embora a responsabilidade maior pela recessão e pelo desemprego tenha sido imputada a Eduardo Cunha e a Aécio Neves, que, segundo Lula, sabotaram Dilma no Congresso quando ela quis fazer correções no rumo da economia).
Lula não alcançou o mesmo êxito no debate do último dia 29 de agosto, na Band. A versão petista da história foi então vigorosamente contestada, e a contestação parece ter vindo de onde o ex-presidente menos esperava.
Para mim, o momento crucial do debate da Band não foi quando Lula se enrolou para responder sobre a corrupção dos governos petistas, nem quando Bolsonaro latiu para Vera Magalhães, e tampouco quando Simone Tebet perguntou ao mesmo Bolsonaro por que ele tem raiva das mulheres.
O momento crucial foi quando Ciro Gomes pôs Lula em xeque.
O embate originou-se de uma pergunta feita a Lula por Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo: no caso de chegar ao segundo turno, como ele esperava atrair o apoio de Ciro Gomes, que costumava criticá-lo em termos duros? Lula tentou se mostrar conciliador. “Eu tenho um profundo respeito pelo Ciro Gomes”, disse. Ciro teria “o coração mais mole do que a língua”, e por isso Lula não dava tanta importância às críticas que o candidato do PDT lhe fazia. Encerrou com uma provocação amistosa: disse esperar que neste ano Ciro não viaje a Paris no segundo turno – para votar nele, Lula, ficou subentendido.
(Parênteses para uma digressão: há algumas semanas, Crusoé trouxe uma matéria de capa sobre o voto nulo e em branco. O texto de Carlos Graieb argumentava que anular ou votar em branco, longe de ser o recurso de gente alienada, covarde ou apolítica, é uma expressão válida de rejeição às opções que se apresentam no pleito. Concordo. Eu mesmo já anulei o voto em algumas eleições. Políticos, no entanto, parecem se sentir na obrigação de sempre declarar apoio a um candidato, mesmo quando seus partidos estão fora do segundo turno. Ciro Gomes deu uma banana para essa regra tácita em 2018. Contornando a desalentadora decisão entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, foi passear em Paris no dia do segundo turno. Eu admiro esse gesto. Se tivesse grana para tanto, passaria todo o mês de outubro na França.)
Na réplica, Ciro disse que Lula, como um “encantador de serpentes”, tenta sempre trazer a discussão política para termos emocionais e para o lado pessoal. Então veio a paulada que, alegava Ciro, não tinha nada de pessoal: "Eu atribuo ao Lula – à contradição econômica do Lula, à contradição moral do Lula e do PT – o Bolsonaro".
Como? O presidente que é antipetista rábido seria fruto dos governos petistas? Ciro explicou como isso teria se dado, carregando nos advérbios de modo: "Eu não acho que Bolsonaro desceu de Marte com essas contradições todas. O Bolsonaro foi um protesto, absolutamente reconhecido respeitosamente por mim, contra a devastadora crise econômica que Lula e o PT produziram, e que ele [Lula] apaga".
Ciro qualificou de “medíocre” a média de crescimento do país durante os anos petistas. Esta seria a contradição econômica. Ele foi ainda mais duro ao tratar da contradição moral: "Infelizmente, o Lula se deixou corromper mesmo. Está com Geddel Vieira Lima, está com Renan Calheiros, está com Eunício Oliveira".
“Você vai pedir desculpas porque você sabe que está dizendo inverdades a meu respeito”, retorquiu Lula, irritado. Seguiu-se um bate-boca folclórico: Lula afirmou que não fugiu para Paris no segundo turno de 2018, ao que Ciro respondeu (com o microfone desligado) que Lula ficou no Brasil porque estava preso.
Não é só o pugilato verbal que torna essa passagem do debate tão reveladora: há também a intrigante linguagem corporal de Lula. Por quase um minuto na transição da primeira resposta de Lula para a réplica de Ciro, a tela da Band ficou divida em dois. Podíamos assim observar a reação de Lula ao que seu oponente dizia. O petista ainda sorri quando Ciro fala em “encantador de serpentes”, mas o sorriso se apaga quando o outro candidato fala em contradições econômicas e morais. No momento em que Ciro chega ao cerne de seu argumento – Bolsonaro foi um protesto contra os descalabros petistas –, Lula, que até então estava voltado para esquerda, olhando diretamente para seu contendor, se vira para frente. Expressão compungida, olhar baixo, ele esfrega as mãos nervosas e balança o corpo, como que buscando chão para sustentar o lugar que imagina ter na história.
Lula estendera o proverbial ramo de oliveira, e a oferta fora recusada. Sua expressão e sua postura deixavam claro que isso lhe parecia inexplicável, inaceitável. Mas, pelo menos até o momento em que a tela foi toda preenchida pela imagem de Ciro, Lula ainda não transpirava agressividade.
Estaria magoado, ferido? Se foi esse o caso, a mágoa logo se converteu na empáfia rancorosa de quem gosta de se apresentar como impoluto. Ciro, acredita Lula, ainda vai lhe pedir desculpas! No seu Twitter, o petista já havia dito que a Globo deveria pedir desculpas pelas mentiras que teria contado sobre ele durante a operação Lava Jato. Sugeriu que essa súplica por seu perdão magnânimo fosse lida por William Bonner no Jornal Nacional. Mas Lula não tocou nesse assunto quando foi entrevistado por Bonner e Renata Vasconcellos.
O pedido de desculpas de Ciro também não veio, e o debate seguiu seu curso. Na avaliação consensual de todos os comentaristas, Lula saiu-se mal, muito mal. Foi assim desde o início, quando não conseguiu responder à pergunta sobre a corrupção dos governos petistas feita por Bolsonaro. E tenho a impressão de que a intervenção certeira de Ciro Gomes deixou-o ainda mais desorientado. Contrariando, em parte, o que dissera três dias antes no Jornal Nacional, ele agora já não via equívoco algum na temerária política econômica de Dilma: lançou a culpa integral do desastre na conta de Cunha e Aécio. E reafirmou o ponto fulcral da impostura política petista: Dilma teria sofrido um golpe em 2016.
Lula elencou os números e os méritos de seu governo como uma insistência maníaca. Outros candidatos apresentaram propostas para governos que, salvo algum milagrosa reversão das probabilidades, jamais existirão. Tivemos a promessa de que nosso nome vai sair do SPC, de que nossos filhos no ensino secundário ganharão FGTE (Fundo de Garantia por Tempo de Estudo), e de que os professores deles serão isentos de imposto de renda. Essas ideias não parecem razoáveis ou exequíveis, mas pelo menos miram em 2024. Lula apontou para um idílico passado em que, por sua obra e graça, o pobre viajava de avião até a universidade para comer picanha no refeitório.
Os tempos são outros. Na economia global, anunciam-se tempos recessivos; na política nacional, há um movimento de direita ruidoso e intransigente que não parece disposto a sair de cena com a provável derrota de seu líder. Lula, no entanto, concorre para ser, pela segunda vez, presidente do Brasil em 2003. Está o páreo para defender a lenda que seu partido criou.
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Comentários (10)
Alberto de Araújo
2022-09-05 17:56:32Só um contorcionismo mental é capaz de aceitar Lula inocente.Foi julgado, condenado e preso, por crimes de corrupção e outros, com provas irrefutáveis. O Lula paz e amor é do passado. A prisão lhe resgatou o ódio,de um cão raivoso, quando metalúrgico. Voltou à sua origem. O Moro que se cuide. Lula presidente, executará a vingança que tanto espera. Já existe uma orquestra afinada de corruptos e defensores da corrupção, com o fito de boicotar a candidatura a senador do ex juiz Sérgio Moro.
Erison Chagas lima
2022-09-05 16:13:25Deus nos livre desses 2 vermes que nos atrasam por 20 anos... #nemlulanembolsonaro
Nascimento
2022-09-05 14:37:36Discordo da afirmativa de que o governo atual é um desastre. Na verdade, o mesmo enfrentou desastres: quebra da safra, pandemia e guerra. Fez privatizações, reformas, marcos legais e obras. Desemprego caindo, PIB crescendo. Houve erros sérios, mas entre Bolsonaro e Lula, fico com Bolsonaro.
Ana Mária Schiefer Dos Santos
2022-09-05 13:31:12Excelente . Boa revisão dos fatos.
Marcia E B
2022-09-05 13:29:31Não tenho muito conhecimento sobre o trabalho de Ciro no passado, mas se for a opção para eliminar Lula e BOZO, votarei sim. O voto útil. Já estou feliz por poder votar em Moro e Deltan.
Joao
2022-09-05 12:41:26Ciro não tem o vistoso currículo de ladroeira dos dois dejetos radioativos. Infelizmente só tem planos imbecis. 1) Auxílio Brasil de 1.000,00 (!!) financiado com IGF, quase impossível de ser regulamentado. 2) Limpar o nome no SPC dos inadimplentes e jogar a fatura na CEF e BB. 3) perdoar parte da dívida dos Estados com a União, incentivando-os na bagunça fiscal 4) Petrobras, como qualquer estatal, não é para ser lucrativa! 5) Acabar com a ganância dos bancos!
ANA GABRIELA WEISS PESSOA ARAMBASIC
2022-09-05 12:13:20Muito boa análise! 👏 estou cogitando seriamente votar no Ciro. Nem eu acredito, mas não vejo outra alternativa. Q mais brasileiros tomem esse rumo p não cairmos no abismo de vez...
EDOUARD HUGUES BRAUN
2022-09-05 11:51:35Já repararam o seguinte vício de linguagem do eneadáctilo: quando ele interrompe a fala, faz uma pausa e diz "sabe", podem ter certeza que vem uma mentira, com a maior cara de paisagem... Façam o teste...
Homero
2022-09-05 11:48:43Minha opção é nulo ou branco em qq turno. Para senador e deputado vou de Moro e Dallagnol (felizmente sou do Paraná). Isto aqui não é democracia. Sem candidaturas independentes de partidos em todos os níveis, sem parlamentarismo, sem voto distrital, sem STF independente de executivo, com voto obrigatório, não tem democracia. A imprensa, incluindo a CRUSOÉ, imediatista e sensacionalista, superficial, não discute nada disso.
Vasconcellos
2022-09-05 11:44:10O ex-deputado e ex-petista Eduardo Jorge, pessoa de rara clareza de pensamento e de honestidade impressionante, havia, há muito tempo, explicado essa responsabilidade de Lula e do PT na geração de Bolsonaro. A lógica desse pensamento é muito forte. É só procurar no YouTube. Pena que as pessoas não sejam suficientemente atentas e não se toquem quando uma verdade dessas é dita.