Se os Estados Unidos fracassaram, o que sobra para o Brasil?
O intelectual negro americano John McWhorter diz que o uso de armas é a "mancha moral não confrontada" de seu país. O Brasil também tem as suas, e não basta lamentá-las
Linguista, observador arguto dos problemas raciais americanos, professor da Universidade de Columbia, autor de mais de 15 livros, John McWhorter diz que os Estados Unidos fracassaram, que os Estados Unidos estão quebrados. Encontrei essas afirmações contundentes em sua coluna regular no The New York Times, quando buscava referências sobre o assassinato de 19 crianças e dois professores em uma escola de Uvalde, Texas. Planejava então fazer um texto no qual haveria apenas um paralelo rápido entre o sacrifício das crianças americanas e o massacre brasileiro mais recente, na favela carioca de Vila Cruzeiro. Depois de ler McWhorter, meu texto já não será o mesmo. Pois o que posso dizer do Brasil quando um intelectual americano sensato e respeitável diz que seu país, a primeira república moderna, a potência americana, malogrou?
No Brasil, morre-se de chuva. Não dos furacões que devastam a Flórida, nem dos terremotos que atingem a Califórnia: bastam chuvas fortes. No momento em que escrevo, noite da quarta-feira 2, os que morreram carregados por enxurradas ou soterrados por deslizamentos no Grande Recife já são uma centena. O presidente Jair Bolsonaro visitou Pernambuco para dizer que “faltou iniciativa” ao governador para previnir o desastre. Em março, quando deslizamentos em Petrópolis causaram mais de 200 mortes, o mesmo Bolsonaro disse em sua live que o resultado fatal teria sido o mesmo ainda que todas as obras de prevenção e infraestrutura houvessem sido realizadas. Isso porque as chuvas no Rio de Janeiro governado por Cláudio Castro, amigo e correligionário do presidente no PL, devem ser bem mais intensas do que em Pernambuco, estado governado por Paulo Câmara, do PSB. Mas Bolsonaro também disse que não pretendia “politizar essa questão”.
O tema de McWhorter, suscitado pelos triste eventos de Uvalde, é a escandalosa liberalidade das legislação sobre posse de armas nos Estados Unidos. As leis americanas facilitam a compra de armas de assalto, cuja rapidez e poder de fogo potencializam a letalidade de doidos como o assassino do Texas. O artigo cita sucessivas pesquisas de opinião indicando que mais de metade dos americanos são a favor de limitações a compras de armas. Ainda assim, o Congresso não se mexe para votar nenhuma lei nesse sentido, pois a maioria no senado é do Partido Republicano, tradicional defensor do comércio livre de armas. A violência armada, conclui McWhorter, seria hoje para os Estados Unidos o que a segregação racial foi no século passado até ser revertida pelo movimento dos direitos civis: uma "mancha moral não confrontada”.
A operação policial na Vila Cruzeiro, no dia 24 de maio, matou 25 pessoas. Como é comum nesses casos, há suspeitas de que alguns dos mortos não caíram no meio do tiroteio, mas teriam sido executados. Como também é comum nessas ações, morreu pelo menos uma pessoa inocente, Gabrielle Ferreira da Cunha, 41 anos, atingida por uma bala dentro de sua casa. No dia da operação, Bolsonaro foi ao Twitter parabenizar os “guerreiros" que “neutralizaram pelo menos 20 marginais”. Como pontuou muito bem um editorial do Estadão, uma operação policial que pretende cumprir mandados de prisão mas não captura ninguém e acaba com dezenas de cadáveres não é um sucesso que mereça congratulações – é um desastre. O mais chocante no tuíte presidencial é o verbo “neutralizar”, um eufemismo técnico que consegue superar a imoralidade do bordão “CPF cancelado”. Gabrielle também terá sido “neutralizada”? “Lamentamos pela morte da vítima inocente”, diz Bolsonaro no fio do tuíte. O presidente gosta de empregar o plural majestático quando finge estar penalizado com a morte. Em seguida, Bolsonaro também lamentou a “inversão de valores” da mídia que “isenta o bandido de qualquer responsabilidade”. A Folha de S. Paulo trouxe relatos de moradores da Vila Cruzeiro que tiveram a casa metralhada por policiais no meio da operação. Quem cultiva valores invertidos na verdade são as forças de lei, que não hesitam em tocar o terror nos moradores que deveriam proteger.
John McWhorter, negro, sugere em seu artigo que a violência armada é hoje um problema mais grave do que o racismo nos Estados Unidos. Ele não está em absoluto negando que exista racismo: apenas diz que o lugar que esse tema vem ocupando na conversa nacional pode ser superestimado. Seu livro mais recente, Woke Racism, é uma diatribe poderosa contra a esquerda identitária que, no esforço de manter as minorias na condição permanente de vítimas, nega os grandes avanços históricos que os negros vêm obtendo desde a segunda metade do século passado. Nem sempre concordo com McWhorter, mas admiro a liberdade com que ele pensa fora dos automatismos que hoje prendem a maior parte dos profissionais da opinião nas caixinhas da esquerda ou da direita. Ele compartilha, por exemplo, da indignação contra a violência policial que eclodiu com o assassinato de George Floyd, mas é crítico do modo como o movimento Black Lives Matter conduziu os protestos.
E entre a matança na favela carioca e as enxurradas em Pernambuco, assistimos ao assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, no dia 25, em Umbaúba, Sergipe. Bolsonaro falou do caso em Recife, na mesma coletiva em que criticou o governador Paulo Câmara. O presidente lamentou a morte de Genivaldo, disse que não se pode “generalizar” a partir do episódio, pois a Polícia Rodoviária Federal faz um ótimo trabalho, e de novo acusou a imprensa de tomar o partido da bandidagem. Penso ter visto dois bandidos no vídeo que mostra o sofrimento de Genivaldo na câmara de gás improvisada em uma viatura policial. Aliás, não é o caso de comparar horrores, mas penso que a imagem de Genivaldo Santos urrando de dor dentro do carro cheio de gás lacrimogêneo é tão excruciante quanto a de George Floyd sufocando sob o joelho de um policial bandido. E no entanto não vimos indignação, não vimos protestos tomando as ruas do país. O Brasil também tem suas "manchas morais não confrontadas”. Já não basta só lamentá-las.
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Comentários (10)
Docke
2022-06-07 09:53:14Nós estamos num país em estado de calamidade, não sei onde vamoa parar, urge alguma ação efetiva e planejamento concreto pra um projeto de país. O nosso gigante problema é que o povo não é prioridade dos políticos em geral, só servimos para dar voto para que durante o mandato, eles cuidem de seus próprios interesses, os quais friso novamente, não nos inclui.
MARIA TERESA GIMENEZ
2022-06-06 12:27:56VERGONHA, vergonha, vergonha das autoridades que nos comandam. Conduzem o Brasil à barbárie. Está instalada e incentivada.
HEITOR
2022-06-06 12:05:19Os jornalistas sempre tendem ao esquerdismo, por mais isentos que tentam ser. O policial é um trabalhador assalariado. Imagine se alguém tentasse resistir a ser entrevistado e o jornalista tivesse o direito e exigir uma palavra na marra? O policial não é um Albert Einstein, é um trabalhador treinado com um salário que precisa estar de olhos abertos e olhando para todos os lados, porque qualquer um pode atacá-lo de qualquer direção. O policial é sempre é atacado, mesmo quando está certo.
Amaury G Feitosa
2022-06-06 09:02:58Matériazinha sem pé nem cabeça apenas para detonar o presidente? a comparação é tola pois os EUA já não é mais o nosso maior parceiro comercial hoje mais diversificados e países que necessitam do que produzimos ... o problema deste país é a economia mambembe medieval semi-escravocrata que não nos permite ter um mercado digno da nação e assim basta um líder com ousadia que ouse reestruturar isto e em dez anos seremos a quarta maior economia do mundo ... falta macho e sobra pilantra em Braz-ILHA.
CESAR DE OLIVEIRA
2022-06-05 20:54:39Só faltou no texto o articulista comentar a morte diária de policiais no cumprimento do dever. Ah, esqueci. Lamentar morte de policiais não lacra e pode indispor com a mídia e a esquerda identitária.
Edson Biancato Bagio
2022-06-05 16:33:19Excelente texto. Obrigado!
Franco
2022-06-05 16:30:14Tudo bem. O problema é real. Mas a solução é um ladrão, vagabundos, nunca trabalhou. Por quê não perdeu um dedo mais incisivo. Bandido. Na época dele pilantras igual ele perdia membros inúteis do corpo pra receber aposentadorias parciais e ir tomar cachaça. Lula, tenha vergonha, respeito o Brasil. A época da picaretagem passou e esse ladrão não entende.
Claudio Menoncin de Carvalho Pereira
2022-06-05 14:40:04Os republicanos não tem maioria no Senado americano.
JOEL
2022-06-05 14:25:52Violência é violência parta de onde partir.No caso específico o qual lamentamos, a violência veio de agentes do estado que agiram atuando com força desproporcional contra um membro da sociedade, e que a justiça seja feita.
José
2022-06-05 13:25:39Só existe uma diferença: nos Estados Unidos foram assassinadas pessoa inocentes. já no Brasil foram mortos bandidos de que matam policiais e pessoas inocentes. Especialista de.porra.nenhuma.