Xinguem a mãe, mas não xinguem de nazista
Ontem, o nazismo voltou a ter o seu diabólico nome citado em vão. O jornalista Xico Sá escreveu no Twitter: “Se vc é capaz de ainda hoje, depois que o Brasil foi destruído por Bolsonaro, ainda não votar no Lula, ave Maria, vc é um nazista ou quase isso”. Também ontem Ciro Gomes, pré-candidato do PDT...
Ontem, o nazismo voltou a ter o seu diabólico nome citado em vão. O jornalista Xico Sá escreveu no Twitter: “Se vc é capaz de ainda hoje, depois que o Brasil foi destruído por Bolsonaro, ainda não votar no Lula, ave Maria, vc é um nazista ou quase isso”.
Também ontem Ciro Gomes, pré-candidato do PDT à presidência da República, disse nas suas redes sociais que a CNN distorceu o significado de uma frase sua numa entrevista à rádio CBN de Campinas. Ciro Gomes afirmou à rádio que “o Brasil tem 10%, 12%, 15%, de eleitores que se identificam com Bolsonaro. São nazistas mesmo, fascistas. São anticiência, são homofóbicos. Acreditam na terra plana, exploram a religiosidade popular, exploram os temas da moral popular. Isso são 10%, 12%, o que explica por que o Tarcísio (de Freitas), um cara do Rio de Janeiro, chega aqui em São Paulo e, só porque é candidato do Bolsonaro, já está rivalizando com os primeiros". Ao dizer que a CNN distorceu a sua frase, ele explicou: "Não acusei o eleitorado de Bolsonaro de nazista, mas apontei a existência de grupos fascistas e neonazistas que lhe (sic) apoiam. Entre uma coisa e outra, há muita diferença".
Xico Sá tem o direito de fazer campanha para o candidato dele. Se há um aspecto bom na polarização, é que jornalistas estão assumindo as suas verdadeiras posições políticas, antes envoltas pela sua suposta imparcialidade. Mas daí a dizer que os brasileiros que não votam em Lula são nazistas "ou quase isso", há muita diferença, para repetir Ciro Gomes. Não consta que os cidadãos que torcem o nariz para Lula -- mais de 40% do eleitorado -- sejam automaticamente adeptos do antissemitismo, por exemplo, a condição básica do ideário nazista. Aliás, é mais fácil encontrar antissemitas entre partidários de Lula e da esquerda em geral, que escondem a sua aversão a judeus sob a retórica do antissionismo. Mas, mesmo que preencham esse requisito necessário, não é possível dizer que todo antissemita esquerdista é nazista. Há outro ponto desprovido de sentido no tweet de Xico Sá: ninguém pode ser "quase nazista", assim como ninguém pode ser "quase democrata". Ou se é, ou não se é. O que seria um "quase nazista"? Alguém que proporia uma "solução quase final" para o judeus?
Quanto a Ciro Gomes, temos o mesmo problema. Todo nazista é homofóbico, mas nem todo homofóbico é nazista. No Brasil, o crime de homofobia está mais ligado a preconceitos de certa origem patriarcal e machista, que ainda existem em sociedades democráticas e por elas devem ser combatidos, como vem ocorrendo agora de modo mais rigoroso, do que a concepções eugenistas nazistas. Quanto a um segundo aspecto apontado por Ciro Gomes, a exploração da religiosidade popular, aspecto mais estrutural do contexto brasileiro, é uma esperteza de todos os políticos nacionais, de qualquer extração, em maior ou menor grau. Seria bom, ainda, que o pré-candidato do PDT apontasse a fonte da porcentagem de "nazistas" no eleitorado de Jair Bolsonaro. Se ele tiver de 10% a 15% de eleitores nazistas ou fascistas, isso significa que existiriam no Brasil entre 4,5 milhões e 6,75 milhões de adeptos de Adolf Hitler (foto), levando-se em conta que cerca de 30% de um total de 150 milhões eleitores declaram votar no atual presidente. É um evidente absurdo afirmar que há tantos nazistas no Brasil. Para se ter ideia, no auge do nazismo na Alemanha, a seção brasileira do partido hitlerista chegou a ter 2.900 filiados, de acordo com o livro Nazismo Tropical? O Partido Nazista no Brasil, da historiadora Ana Maria Dietrich. A partir desse número, quantos simpatizantes do nazismo haveria no país, naquela época? Eu chutaria, bem alto, duas ou três centenas de milhares. E, entre eles, estava o então ditador Getúlio Vargas, que depois viraria herói da esquerda nacional.
Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República, o nazismo volta e meia vira assunto no país, seja para acender discussões francamente estúpidas, como aquela sobre se Adolf Hitler era de direita ou de esquerda (era de direita, obviamente), seja para demonizar os partidários do atual presidente. Jair Bolsonaro flerta com a barbárie, é um homem que se mostra desprovido de sentimentos nobres, tem imensa culpa pelas falhas no combate à pandemia, mas Adolf Hitler era o mal absoluto, que caiu depois de uma guerra mundial. Jair Bolsonaro é um mal a ser extirpado democraticamente, se a maioria dos brasileiros assim o achar e quiser. E, ao que indicam as pesquisas, para livrar-se dele, boa parte dos eleitores está disposta a votar em um ex-condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, amigo de ditaduras como a cubana e a venezuelana. O drama é esse, bem nacional, não outro.
Respeitem as vítimas do nazismo, por favor. Xinguem a mãe, mas não xinguem de nazista.
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Comentários (10)
Lucia
2022-06-09 00:11:02Xico Sá me decepciona! Pensei que ele fosse mais inteligente e bem-informado!
Paulo
2022-06-01 16:56:13Parabéns! Como judeu, sinto que essa polarização política está banalizando tudo o que ocorreu no passado. Seus comentários foram muito bem colocados. Vou recomendar a meus amigos a leitura de seu artigo.
ALTINO RAMOS COSTA
2022-05-31 21:15:30Ainda dão espaço para estas idiotices
João
2022-05-31 20:02:12Meus parabéns ao Mário Sabino pela fineza, e frieza, da análise. A retórica exaltada do jornalista e do político citados, e de tantos outros políticos e jornalistas brasileiros, precisa ser desmascarada. No fundo eles usam argumentos completamente destituídos de sentido, que servem só para enganar os desatentos e gerar mais confronto entre as pessoas.
Laerte
2022-05-31 17:02:05O comentário do Chico Sá é tão irresponsável quanto cretino! Chamar de nazistas eleitores do Bolsonaro e poupar Lula da crítica necessaria e urgente que a sociedade brasileira tem o dever de fazer é cretinice! Pior, alguém que parece ter discernimento, tendo um comportamento tão rasteiro quando aos que ele alega serem os "nazistas" do Bolsonaro! Menospreso os dois! Inúteis párias passadores de panos e traidores de principios éticos. Defender Lula e defender Bolsonaro, dá no mesmo! Anarquia!
Alberto de Araújo
2022-05-31 17:01:39Excelente. Lula pode ser um ex-condenado mas não é inocente. As provas contra ele permanecem vivas e irrefutáveis, conforme juízo de três instâncias da justiça. Xico Sá é um melitante petista.Querer convencer que o Lula não tem nada com o Mensalão nem com o Petrolão, é subestimar o bom senso das pessoas de bem.Nem corrupto, nem insano.Nem Lula, nem Bolsonaro. Simone Tebet é uma esperança de transformação do país. Mãos limpas, com discernimento político. Basta de populismo. Basta de mesmice.
FERNANDO GOULART
2022-05-31 16:47:46No meu entender, a pessoa que se vê no direito de classificar outra de nazista em razão de sua escolha política, sob a égide da profissão, não passa de um idiota. Aliás, nesse caso, um acéfalo completo tendo em vista sua conveniência eleitoral. A impressão que passa é que tem algo mal resolvido em casa. Não sou bolsonarista, mas meu voto ajudou a arrancar do poder um dos maiores, talvez o maior ladrão da historia política contemporânea. Sem o Dr. Moro, se preciso repito o sacrifício.
Rosangela Maria Halfeld Bonicontro Miranda
2022-05-31 16:07:51Ótima análise.
José
2022-05-31 15:05:03Boa, Mario!
Lionel
2022-05-31 15:00:29Aprecio certos políticos e jornalistas brasileiros, mencionados no post acima, em virtude da alta qualidade dos temas discutidos e do modo gramaticalmente escorreito e extremamente elegante com que se expressam. É uma pena que, de dentro de uns 5 séculos, esse estilo de fazer política e de exercer o jornalismo estará extinto.