Ele sabe o que faz?
Trump provoca caos global com guerra tarifária

"Eu sei muito bem o que diabos estou fazendo. Eu sei e você também sabe, é por isso que você votou em mim", disse Trump esta semana, uma das mais conturbadas do primeiro trimestre de seu segundo mandato, em seu tom triunfalista habitual.
O presidente americano se referia ao “Dia da Libertação”, quando anunciou tarifas alfandegárias “recíprocas” para produtos de dezenas de países, muitos deles parceiros comerciais históricos.
Mas será que ele sabe mesmo?
Olaf Scholz, chanceler alemão que está de saída, declarou que as tarifas são um "ataque à ordem comercial global que criou prosperidade em todo o mundo".
Micheál Martin, primeiro-ministro irlandês, disse que “tarifas não beneficiam ninguém".
Anthony Albanese, chanceler australiano, acredita que "o povo americano pagará o maior preço por essas tarifas injustificadas”.
Para Lula, "o comportamento do presidente Trump nos Estados Unidos, eu acho que não vai dar certo".
Alguns líderes mundiais, como a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, adotaram um tom conciliatório e uma disposição em buscar acordos bilaterais com os EUA.
A China, principal alvo do tarifaço, está pintada para a guerra.
Na última quarta, 9, a implementação das tarifas recíprocas foi adiada por 90 dias (as taxas de 10% foram mantidas), após o temor de uma crise sistêmica.
Apenas o principal rival, o regime de Xi Jinping, não foi poupado.
América Primeiro
Para responder a pergunta que o mundo está se fazendo sobre o futuro da economia globalizada e das relações internacionais, é preciso navegar pela histeria como Ulisses passou pelas sereias na Odisseia e tentar entender o que realmente está por trás de manchetes alarmistas e do colunismo partidário, sempre em busca do clique simples em tempos complexos.
Não é novidade que Trump tem uma agenda nacionalista, “América Primeiro”, e que isso se reflete num endurecimento do patrulhamento das fronteiras, deportação de imigrantes ilegais, além de um forte combate ao desperdício de dinheiro público com a criação do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) e às divisivas e impopulares políticas woke.
Mas o tema central dos últimos dias e, possivelmente, deste ano, é a economia. E uma redefinição radical de como a América faz negócios com o mundo.
Goste-se ou não das políticas econômicas do governo Trump 2.0, existe algum tipo de pensamento ou arcabouço político e ideológico por trás do tarifaço e do tom de confrontação em relação à China, além de uma visão para o futuro do país mais poderoso do planeta que, em grande parte, foi aprovada pelo eleitor no ano passado.
Na economia, os objetivos do trumpismo, assim como em todas outras áreas, não são modestos: mudar as regras e fundamentos da “globalização” e do “globalismo”, sistema implementado nos anos 90 após o fim da Guerra Fria e que, três décadas depois, já mostrou a que veio e quem são seus principais beneficiários e perdedores.
Trump quer “respeito ao trabalhador americano” e o fim do tempo em que seu país é, na sua visão, espoliado e pilhado no comércio internacional.
Os principais gurus econômicos do presidente americano no momento não são desconhecidos: o conselheiro Peter Navarro, ou “Ron Vara”, chamado de idiota por Elon Musk; o secretário do tesouro Scott Bessent, considerado o mais experiente da turma; e o doutor em economia por Harvard Stephen Miran, ex-estrategista sênior do Hudson Bay Capital Management e autor do ensaio “Um Guia do Usuário para Reestruturar o Sistema de Comércio Global”, documento de 41 páginas publicado em novembro do ano passado e que traz a essência da política econômica que está sendo implementada atualmente pelo governo Trump.
Para Stephen Miran, atual chefe do conselho de assessores econômicos da Casa Branca, a raiz dos problemas que criam um cenário econômico injusto e desequilibrado é a sobrevalorização do dólar.
No ensaio, Miran cita o economista belga Robert Triffin e o “Dilema de Triffin”, conceito fundamental na economia internacional.
Proposto nos anos 1960, o dilema descreve o paradoxo insolúvel enfrentado por países cuja moeda funciona como reserva global (principalmente os EUA): para suprir a demanda internacional por dólares, os EUA precisam manter déficits externos persistentes, o que, por outro lado, compromete sua estabilidade interna e a confiança na moeda.
Durante a vigência do acordo de Bretton Woods, firmado em 1944, em que o dólar era lastreado em ouro, os EUA precisavam enviar mais dólares para fora do que recebiam, criando um impasse: para que uma moeda específica sirva como reserva internacional, o país emissor precisa fornecer liquidez suficiente ao resto do mundo.
Essa provisão de liquidez ocorre principalmente através de déficits persistentes na balança comercial e na conta corrente.
Afinal, os outros países precisam acumular essa moeda para realizar transações internacionais, manter reservas e intervir em seus próprios mercados cambiais.
Esses mesmos déficits contínuos acabam minando a confiança nessa moeda no longo prazo.
A acumulação de passivos externos pelo país emissor levanta preocupações sobre sua capacidade de honrar esses compromissos, gerando instabilidade sistêmica e o risco de uma crise de confiança, culminando em uma possível corrida contra a moeda.
Esse dilema ajudou a levar ao fim da conversão do dólar em ouro, decretado pelo presidente Richard Nixon em 1971.
Fim do padrão-ouro
Mesmo após o fim do padrão-ouro, o problema persiste.
Para atender à demanda global por dólares, os EUA mantêm déficits elevados, o que pressiona a indústria doméstica e amplifica riscos globais.
Em momentos de crise, como em 2008, o excesso de dólares circulando contribuiu para bolhas financeiras e instabilidade.
Diversas propostas surgiram para reduzir essa dependência — como a criação de uma moeda global, o uso ampliado dos Direitos Especiais de Saque do FMI ou a valorização do euro e do yuan. Mas nenhuma alternativa conseguiu substituir o dólar até agora.
O Dilema de Triffin continuaria sendo, segundo a visão dos economistas de Trump, um obstáculo estrutural: os EUA sustentam o sistema, mas pagam um preço crescente por isso — e o mundo, por enquanto, aceita essa conta.
Correção via tarifas
A principal ferramenta proposta por Stephen Miran para reformular o sistema no “mundo de Triffin” atual são as tarifas alfandegárias.
Ele defende que os EUA arcam com um ônus desproporcional nas transações e que as tarifas podem ser utilizadas como instrumento para renegociar as relações comerciais e melhorar o "burden sharing" (ou compartilhamento de encargos) com parceiros, tanto economicamente quanto em termos de segurança estrutural do sistema.
Miran diz que o acesso ao mercado consumidor americano tem sido tratado como um direito, em vez de um "privilégio que deve ser conquistado".
O tarifaço, nesta visão, não é um fim em si, mas uma estratégia de negociação.
A mera ameaça de imposição de tarifas cria pressão sobre outros países para que eles renegociem seus acordos comerciais com os Estados Unidos em termos mais favoráveis.
O objetivo é a redução das tarifas e barreiras não tarifárias dos parceiros em relação aos produtos americanos, a melhoria das garantias de proteção da propriedade intelectual e a adoção de políticas cambiais mais alinhadas com os interesses americanos.
Os céticos, segundo Peter Navarro, "subestimam o poder de negociação do presidente".
Aliados de Trump, como o senador texano Ted Cruz, confessam que não querem que as tarifas recíprocas sejam realmente implementadas.
"Existem dois caminhos: um bom e um ruim. O bom é usar tarifas como ferramenta de negociação. O ruim é tornar tarifas uma política permanente que desencadeie guerras comerciais", afirmou Ted Cruz em uma entrevista recente.
Stephen Miran argumenta que, se as novas tarifas forem compensadas nos países afetados por ajustes nas taxas de câmbio (desvalorização da moeda do país tarifado), o impacto inflacionário nos Estados Unidos seria mínimo, e o custo recairia sobre a nação tarifada.
Esse mecanismo poderia ajudar a neutralizar ou mitigar vantagens competitivas de outros países vistas pelos economistas trumpistas como desleais, especialmente a China, "a economia mais desequilibrada da história do mundo moderno e a maior fonte dos problemas comerciais dos EUA", segundo o secretário do tesouro Scott Bessent.
Diagnóstico errado
Para o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central, o argumento não se sustenta: “é um diagnóstico errado e, mesmo que fosse correto, o remédio proposto também está equivocado”, diz.
Para Schwartsman, o modelo proposto por Robert Triffin fazia sentido antes de 1971, mas com o fim do padrão-ouro ele não é mais aplicável, já que o câmbio flutua e nem sempre o dólar está sobrevalorizado.
A nova política econômica americana também parte do princípio de uma estrutura tarifária baseada em critérios que incluem não apenas políticas comerciais, mas também o alinhamento e a disposição de cooperar com os Estados Unidos em questões geopolíticas.
Essa abordagem vincula o acesso preferencial ao mercado americano aos investimentos dos aliados em sua própria defesa, tirando parte do peso das costas americanas.
Os ganhos adicionais previstos pelo governo Trump após a implementação da nova política econômica seriam investidos, em grande parte, na diminuição do insustentável déficit público americano, um buraco trilionário sem fundo que, invariavelmente, levaria o país à bancarrota e, com ele, todo o mundo livre.
No papel, ousado. Na prática, um cavalo de pau na ordem econômica mundial.
Mesmo com o adiamento de 90 dias da implementação das tarifas, os críticos não guardaram as armas.
Diane Swonk, economista-chefe da KPMG, disse: "Isso é uma loucura. O dano está feito. A incerteza é, por si só, um imposto sobre a economia".
O lendário economista Thomas Sowell é outro que alertou para os riscos causados pela imprevisibilidade, por si só um problema que afeta diretamente os investimentos.
Um dos mais influentes economistas da atualidade, Mohamed El-Erian, presidente do Queens’ College, da Universidade de Cambridge, e conselheiro econômico-chefe da seguradora Allianz, afirmou nesta quarta que o FED esteve muito perto de ser obrigado a intervir no mercado: “Estivemos muito próximos da linha que separa um mercado de títulos volátil de um mercado disfuncional”.
Muitos economistas apostam que esse foi o movimento que teria causado o recuo trumpista por 90 dias.
A única certeza, no momento, é que todas as previsões não duram mais que algumas horas.
Trump está apostando suas fichas em jogadas de alto risco, com resultados imprevisíveis e possibilidades de ganhos ou perdas com consequências que não podem ser minimizadas.
Para o mercado financeiro, o único movimento que pode colocar fim à crise é Xi Jiping passar a mão no telefone e ligar para Trump, mostrando disposição para o diálogo, mas os sinais até o momento apontam na direção oposta.
O mundo inteiro segue esperando o telefone do Salão Oval tocar.
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Comentários (4)
Ernesto Herbert Levy
2025-04-12 07:45:30Bom artigo. O outro lado da moeda dos déficits foi a manutenção do alto padrão de vida dos americanos durante os anos pós guerra financiado pelo dólar forte. Foi bom para todos. Tirou muita gente da miséria ao redor do mundo. Assim como não existe moto contínuo, chegou a hora de pagar a conta. Só não precisava ser tão abrupto. O ideal seria desvalorização do dólar. Como? Também não sei! Quanto a China? É guerra mesmo. Ameaça à hegemonia.
ISABELLE ALÉSSIO
2025-04-11 18:53:33Obrigada pela aula de Economia. Adorei o texto ! Até o Ulisses apareceu , rs. 🤗
Carlos Renato Cardoso Da Costa
2025-04-11 10:04:36Muito esclarecedor
Clayton De Souza pontes
2025-04-11 09:46:23Essa intervenção do Trump vai sair caro. O Xi Jiping parece estar gostando da briga