Democracia: uma experiência fadada ao fracasso?
Estamos, para o bem ou para o mal (digam vocês), nas mãos da massa, de um conjunto de pessoas essencialmente desqualificadas, não aptas para a tarefa que se impõe
Não é de hoje que alguns dos mais importantes pensadores da história denunciam os inafastáveis problemas e as inequívocas distorções incrustados na ideia de um regime político democrático, vale dizer, de um modelo de organização da “pólis” no qual o poder político (“kratos”, no registro dos antigos gregos) vem distribuído – seja diretamente, seja por representação – entre os membros de uma dada sociedade para efeitos administrativos.
Criticar a democracia é, hoje, praticamente uma heresia; aquele tipo de coisa que deve levar o pobre diabo para as partes mais profundas e sombrias do Hades.
Os bordões “demofílicos” se multiplicam. A célebre frase de Churchill é regurgitada aos quatro cantos sem qualquer prurido, como se portasse lição diretamente ditada pela musa da verdade:
“A democracia é a pior forma de governo, exceto por todas as outras formas que já foram tentadas na história.”
Para além do tom solene da afirmação, muito honestamente… não creio ser assim tão simples.
Em primeiro lugar, cabe lembrar que a palavra é o universo do erro, da dissimulação, da equivocidade e, então, da manipulação.
Se não ultrapassarmos as aparências do jogo semântico, se não fizermos perguntas céticas a respeito do que estamos a ouvir/definir, estejamos certos: seremos as próximas vítimas de charlatões espertos, manipuladores de consciências que vivem de parasitar e esmagar visões críticas (já Platão, em sua “Carta VII”, tratava do mundo das palavras como aquele que menos consistência ontológica tem, como o que tem “menor grau de ser” em relação a todos os outros, portanto, o mais lábil e frágil deles).
Acontece, então, com o termo “democracia” o mesmo que foi denunciado pelo expoente do pensamento liberal na economia e vencedor do prêmio Nobel de Ciências Econômicas de 1974, Friedrich August von Hayek, a propósito do uso do vocábulo “social”.
Sim, repare que qualquer substantivo qualificado de “social” ganha imediatamente um peso inapelável de bondade e candura: política social, administração social, ação social, desenvolvimento social, justiça social, função social, harmonia social, doença social, estrutura social, crítica social… a lista não tem fim – a seu tempo, F. A. Hayek anotou pelo menos 160 substantivos qualificados com “social”… o elenco hoje é certamente bem mais numeroso – e a cada registro do termo chegamos a ouvir o fundo musical das almas ungidas a trabalhar pelo que há de mais belo e providente.
Com “democracia” dá-se o mesmo (usemos os substantivos anteriormente citados para provar o ponto da vulgaridade do termo): política democrática, administração democrática, ação democrática, desenvolvimento democrático, justiça democrática, função democrática, harmonia democrática, doença democrática, estrutura democrática, crítica democrática. É tão simples quanto isso. Hayek chamou termos assim, cujos significados foram se esvaziando no curso da história por meio de manipulação, digamos, ideológica, de “palavras doninha” (weasel words).
De acordo com o economista austríaco, depois naturalizado britânico, “ela (uma palavra doninha) tornou-se de fato o exemplo mais perigoso daquilo que, fazendo referência a Shakespeare – ‘Eu chupo melancolia de uma canção como a doninha faz com ovos’—alguns americanos chamam de ‘weasel word’. Assim como a doninha seria supostamente capaz de esvaziar um ovo sem deixar sinais visíveis, essas palavras esvaziam de conteúdo qualquer termo que qualificam, deixando-o aparentemente intacto. Usam-se as palavras doninhas para cortar as garras de um conceito que se é obrigado a empregar, mas do qual se deseja eliminar todas as implicações que ameaçam as próprias premissas ideológicas” (HAYEK, F.A. “Nossa linguagem envenenada” in “Os erros fatais do socialismo”).
Exatamente esse escamotage linguístico (ou encobrimento, camuflagem) permite abusos como os verificados, por exemplo, na atuação da Suprema Corte brasileira.
Qualifique qualquer coisa que incomode de “antidemocrática” e, voilà, a mágica está feita. Não é preciso nada mais.
Agora, basta iniciar ataque institucional (antidemocrático?) contra qualquer cidadão que, num arbitrário entender político-ideológico dos membros daquela instituição, “atentou contra a democracia”.
Em contexto assim misológico, democracia pode significar qualquer coisa, tudo e o contrário de tudo, à mercê da sanha por controle daqueles que detêm em suas poltronas (puxadas e empurradas por serviçais com salários polpudos, bancados pelo constrangido pagador de impostos) o conforto de quem “filtra” os caminhos da sociedade olhando para si mesmos como seres messiânicos e infalíveis.
O ponto da minha reflexão, portanto, é: para além da balbúrdia semântica, do cipoal linguístico/conceitual, o que podemos, de fato, esperar disso a que denominamos “democracia”?
Faz sentido a deferência, seja ela bem ou mal-intencionada, ao regime político que coloca nas mãos do povo, do vulgo, do populacho, a sua sorte?
Resolvi, então, analisar a democracia segundo quatro aspectos constitutivos que, ao que parece, a tornam, mais do que uma solução, um terrível problema com o qual, cedo ou tarde, teremos de lidar.
Do primeiro desses aspectos, trato imediatamente. Os outros três, noutros três textos que trarei nos próximos dias. Vamos a ele.
Já na Antiga Grécia a desconfiança com a democracia floresceu em terreno fértil, nomeadamente na obra de alguns dos maiores pensadores de qualquer tempo. Sócrates e Platão em especial nutriam indisfarçável ojeriza à ideia de lançar os destinos da “pólis” em mãos de pessoas desqualificadas, apedeutas voluntariosos, sem qualquer preparo intelectual para compreender as complexas dinâmicas da vida em sociedade.
No livro VIII d’A República – por muitos considerada a carta magna do mestre de Aristóteles –, a democracia está a cavalo entre a oligarquia (forma de governo fundada sobre a riqueza tomada como valor supremo – poder distribuído nas mãos de poucos, oligoi no grego, que governam pelo poder financeiro/material) e a tirania, a forma mais deletéria do exercício do poder em comunidade.
A democracia é, já para Platão, a concretização do ideal demagógico/populista da organização política: a garantia de uma “pólis” cheia de liberdades, mas apartada de valores e princípios, o que leva à licenciosidade (que mais tarde desembocará em tirania).
Na democracia, políticos não precisam dispor de qualquer competência superior; basta que digam, com as fórmulas melífluas que sempre agradam aos ouvidos da maioria incauta – e que encontram na burrice uma virtude –, aqueles lugares comuns como “ser amigo do povo”, “cuidador do povo” e variações congêneres.
Nas palavras do professor Giovanni Reale, na democracia (ver A República, livro VIII):
“Os ‘raciocínios impostores’ fecham a entrada e tiram toda a possibilidade de acesso aos discursos mais antigos que ‘querem prestar auxílio ou também impedem a entrada das embaixadas enviadas pelo bom conselho’. Assim, com esses ‘raciocínios’, é banido o respeito, qualificado como tolice; é expulsa com insultos a temperança, qualificada como falta de virilidade; e a moderação e a medida no gastar são consideradas avareza. Analogamente são exaltadas as qualidades negativas opostas: a arrogância é chamada de boa educação, a anarquia é dita liberdade, o desperdício do dinheiro público é considerado liberalidade e a impudência é tida como coragem. Assim a vida do jovem torna-se sem ordem e sem lei, dedicada inteiramente aos prazeres.”
Qualquer um de nós, 2.500 anos depois, é capaz de reconhecer a assustadora clarividência da descrição (bem, não é preciso dom premonitório algum, basta pensar racionalmente com o óbvio, afastando exalações místicas).
Parafraseando Sócrates, se quero cuidar de coisas relativas à saúde, procuro um especialista na área, um médico que tenha aprendido, com aplicação de empenho focado, a tèchne (arte/técnica) de lidar com as coisas médicas, certo?
Ou estaria você disposto a tratar a sua doença com qualquer cidadão, independentemente de suas qualificações?
Quando entro num avião, espero o que sequer precisa ser dito: que no comando esteja alguém que tenha passado por treinamento severo e que tenha desenvolvido a excelência (areté) necessária para boa condução do equipamento, pois não?
Entraria num avião conduzido por não especialista, por indivíduo boçal ou néscio?
Oras, se mesmo para coisas cotidianas da existência buscamos gente especializada, por que raios deixaria a mais importante delas, o destino da cidade, nas mãos de ignorantes, frequentemente incapazes, sabe-se lá, de compreender um texto com informações simplórias?
Que evento sobrenatural é este a que aspiramos quando esperamos sair das mãos de homens e mulheres incompetentes/apedeutas a salvação para a nossa existência comunitária?
Estamos diante do que a moderna ciência política denomina “o milagre do agregado”, bem definida na frase do jornalista e crítico americano H.L. Mencken: “a democracia é a crença patética na sabedoria coletiva da ignorância individual”, a estranha ilusão de que múltiplos indivíduos intelectualmente desapetrechados sairão com soluções coletivas formidáveis.
Bem, convenhamos, é prudente suspeitar de tudo aquilo que o homem médio acredita ser bom. É que, sabemos bem, não é preciso muito para convencê-lo.
Quando não se estudou seriamente sobre política, economia, ciência, cultura – quando, na terminologia do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, o indivíduo é tão-somente um “homem massa” –, claro que ninguém apelará a coisas altas para capturar vontades (e, por via de consequência, votos): seria contar com instrumentos de compreensão não disponíveis ao homem comum, à massa votante.
Se, como diz Ortega y Gasset, “a cabeça do homem comum está abarrotada de ideias recebidas por inércia, compreendidas pela metade, desvirtualizadas, abarrotada, portanto, de pseudo-ideias”, como esperar fazer disso um sistema político de alta qualidade?
Na democracia, vence a audácia de afirmar o direito à vulgaridade, imposta em toda parte e celebrada como paradigma.
Na democracia estamos, para o bem ou para o mal (digam vocês), nas mãos da massa, de um conjunto de pessoas essencialmente desqualificadas, não aptas para a tarefa que se impõe.
Ao que parece, bem na linha do registro platônico, a vitória da democracia nos levou a um estado anômico, no qual a “maioria” atua por meio de pressões caprichosas e irracionais, todas, é óbvio, contempladas por ação política de seus representantes, ávidos pelas próximas eleições. Aqui, não importam empenho, análise lógica, razão: basta querer, chamar de “direito”, imaginar que a vida é fácil, sem limitações imanentes, uma vida na qual cada um, por mais incapaz que seja, se vê como repositório moral e intelectual.
Mas esse é apenas um primeiro passo da análise. Até que chegue o segundo, meditemos sobre este e sobre as suas consequências (eventualmente até em possíveis soluções).
Dennys Garcia Xavier é autor e tradutor de dezenas de livros, artigos e capítulos científicos, é Professor Associado de Filosofia Antiga, Política e Ética na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em "Storia della Filosofia" pela "Università degli Studi di Macerata" (Itália). Tem Pós-doutorado em História da Filosofia Antiga pela Universidade de Coimbra (Portugal) e Pós-doutorado em Filosofia pela PUC-SP. Tem passagens de pesquisas por diversas Universidades brasileiras e estrangeiras. É coordenador/autor da série best-seller 'Breves Lições', que divulga o pensamento de autores liberais/conservadores não contemplados pelos currículos de Universidades do país. Fundador da Sociedade da Lanterna, uma das maiores sociedades não acadêmicas de estudo da História da Filosofia do país. Na condição de esportista, foi também membro das Seleções Mineira e Brasileira de Natação e venceu diversos campeonatos nos âmbitos estadual, nacional e internacional.
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Comentários (3)
Luiz Filho
2025-01-25 13:41:21…”maioria incauta - e que encontram na burrice uma virtude”. Por não conhecer o professor Garcia Xavier antes, só tenho a lamentar. Antes tarde do que nunca. Na frase pinçada no meio de texto primoroso comecei a entender como um sujeito tão idiota, chorão, covarde, burro, declaradamente saudosista de 64, que traiu e frustrou metade dos brasileiros que acreditaram na promessas de campanha ainda comove e arrasta multidões para ouvir novamente bravatas do tipo “ACABOU, PORRA!, “ALEXANDRE, SEU COVARDE!” Ansioso para os outros textos. E que se torne um participante regular na revista, que já devia essa qualidade há muito tempo.
Pedro Alcântara de Rezende Júnior
2025-01-25 07:41:38Perfeito! Irreparável! Parabéns! Obrigado Crusoé.
Ademir Fenicio
2025-01-25 01:16:45K r. lho meu! Me senti, eu, um gênio, pois penso exatamente isso ai. manda mais.