Gui MendesÉ preciso muita insensibilidade para ver um atirador mirar na cabeça do ex-presidente — e fazer pouco caso

Conservadorismo à brasileira ou “a virtude da imprudência”

Os maiores exponentes do conservadorismo no Brasil – não me refiro aos teóricos brasileiros do conservadorismo – são pessoas que têm o temperamento oposto a uma suposta prudência  
19.07.24

A coluna dessa semana de João Pereira Coutinho na Folha de S. Paulo revela o que para mim é um dos piores traços do que se entende por conservadorismo correntemente no Brasil. 

No texto, chamado Não há inocentes, ele diz o seguinte: “Quando soube do atentado contra Donald Trump, acho que bocejei. Não é desrespeito. É sensação de déjà vu. Como fingir que estou espantado quando não estou? Se existe alguma novidade no atentado é ele não ter acontecido mais cedo —contra Trump ou até contra Biden”. 

É preciso ter se tornado muito insensível para ver a cena em que um atirador mira na cabeça do ex-presidente e, numa fração de segundo, ele vira o rosto, evitando a bala, que ter destruído sua cabeça no meio de um comício com milhares de pessoas ao vivo — e fazer pouco caso.

E não adianta culpar a histeria das redes sociais, que é perfeitamente natural frente à gravidade do que aconteceu. É que os conservadores como João Pereira Coutinho incorporaram para o plano pessoal – e para sua autoimagem declarada – a tal da virtude da prudência conservadora. Eles estão acima dessas contingências diárias, como a de uma bala de fuzil passando de raspão na cabeça do ex-presidente. 

Os maiores exponentes do conservadorismo no Brasil – não me refiro aos teóricos brasileiros do conservadorismo – são pessoas que têm o temperamento oposto a esse.  

Não quero nem falar das figuras da nova direita – como Bruno Tolentino e Olavo de Carvalho, que são provavelmente duas das pessoas mais imprudentes que já pisaram sobre a Terra – mas os da velha direita mesmo, pessoas que se consolidaram como referências nesse campo político: Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre (os dois, aliás, amigos íntimos). 

O sociólogo, que defendia a monarquia como governo para o Brasil, era católico e anticomunista, não teve a biografia nem minimamente baseada na prudência. Freyre viu um companheiro ser morto por um tiro que era destinado a ele, teve a casa da família incendiada (também por questões políticas), foi embora do Brasil para se proteger e passou fome em Portugal.

Ele frequentava terreiros de umbanda – na época em que eles eram proibidos – ligava toda semana para delegacias do Recife para saber casos de assombrações, contava abertamente suas experiências sexuais (inclusive um caso extraconjungal, segundo ele autorizado pela esposa, Dona Madalena) e dialogou abertamente com ditadores (como Salazar, de Portugal).  

Nelson Rodrigues passou fome, foi internado num hospício (o sanatório descrito em A Menina sem estrela), escreveu peças em que abordava temas como incesto, prostituição, aborto, homossexualidade, no Rio de Janeiro da primeira metade do século. Deu entrevista em rede nacional pedindo ao presidente da República (aos prantos) que soltasse o filho preso por roubo a banco, frequentava cemitérios por diversão, e participou de uma regata proibida junto com Roberto Marinho (outro conservador imprudente) enquanto o barco pegava fogo, cercado de tubarões (tal como descrito por Pedro Bial na biografia de Roberto Marinho).  

Podemos falar sobre a virtude (bem brasileira) da imprudência – que envolve o emocionalismo extremo, colocar a si mesmo e os outros em perigo, ser mortalmente afetado por uma notícia de jornal.  

Afinal, como diz Nelson Rodrigues, nada é intranscendente. Uma notinha no jornal pode virar a mais apaixonada reflexão – e não a mais perfeita indiferença – e transformar-se na matéria-prima para uma peça de teatro, um filme, um livro de sociologia dos mortos (como Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre), ou um romance de trezentas páginas. A crítica do dramaturgo, ao escrever o texto Mãe do livro A cabra vadia, era que o brasileiro não se espantava mais. A falta de espanto não pode jamais ser uma virtude.  

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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  1. Decifrando com naturalidade a intimidade de monstros sagrados e exibindo com maior destaque suas extravagâncias, destacando assim a porção menos sagrada deles… excelente texto!

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