Como “engatar” com Camões

Nesta semana, Portugal deu início às celebrações dos 500 anos de nascimento do autor de Os Lusíadas, um dos maiores nomes da poesia ocidental
13.06.24

Qual o seu Camões preferido? O dos Lusíadas? O dos sonetos? Ou o das redondilhas de Babel e Sião 

Se alguém me tivesse feito essa pergunta um ano atrás, a resposta seria: nenhum.  

E vejam que no colégio, eu tive uma professora de português – D. Rosalina! – sábia o bastante para conseguir navegar com um punhado de meninos e meninas por trechos dos Lusíadas e alguns dos sonetos famosos.  

Lembro até hoje da sua declamação dos versos sobre o Gigante Adamastor, “de disforme e grandíssima estatura/ O rosto carregado, a barba esquálida,/ Os olhos encovados, e a postura/ Medonha e má, e a cor terrena e pálida”. No épico, Adamastor é o ser monstruoso que ameaça Vasco da Gama quando ele tenta dobrar o Cabo da Boa Esperança, na ponta do continente africano. 

Também guardei, desde aquela época,  o soneto que começa assim: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/ Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança.”  

Mas preferir um escritor em relação a outros ou, mais ainda, escolher um aspecto da obra de um escritor, requer convivência. E não vou inventar que convivi com a obra de Luís de Camões até recentemente.  

Fiz um esforço nos últimos meses porque em 2024 celebram-se os 500 anos do nascimento do poeta – os especialistas não cravam que ele tenha nascido em 1524, mas essa foi a data oficializada.  

Jornalistas costumam desconfiar de efemérides, de cultura entronizada por decreto, mas reconheço que quanto mais antigo o personagem celebrado, mais as efemérides podem ter algum valor. São uma injeção de vida, mesmo que artificial. 

No Brasil, não se tem feito alarde sobre o acontecimento. Mesmo em Portugal, demorou para que uma agenda fosse fixada. Isso só aconteceu na quarta-feira, 5, quando o Ministério da Cultura português anunciou a organização de uma exposição, de um ciclo de palestras e publicações e de uma “camoniana digital”, ou seja, um site dedicado ao escritor, com documentos históricos digitalizados. 

As comemorações tiveram largada na segunda, 10, e devem se estender por dois anos. 

Fora do circuito governamental, as principais novidades, até o momento, são Camões – Vida e Obra, do jovem crítico literário Carlos Maria Bobone, e Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luiz Vaz de Camões, da escritora Isabel Rio Novo.  

A segunda, que chega às livrarias portuguesas no dia 20, vem sendo saudada como um importante acréscimo à bibliografia sobre Camões, com utilização dos achados históricos mais recentes. Em Goa, na Índia, a autora conseguiu inclusive identificar um retrato até então desconhecido do escritor, que lá viveu em dois períodos de desterro.  

O livro de Bobone tem edição digital que pode ser adquirida, com preço em euros, no Brasil. Diz que não é biografia, mas uma panorâmica, “repassando as vidas do poeta, as especulações, as hipóteses, para separar o provado do provável e do improvável”. 

Não sei se alguma editora tem planos de lançar esses livros por aqui. Deveriam. Não existe nenhuma vida de Camões nas livrarias brasileiras. Obras com pegada biográfica são uma excelente porta de acesso a escritores clássicos, porque iluminam seu contexto histórico e ajudam a superar dificuldades com códigos culturais que se tornaram obscuros. Sobram depois os enigmas da sintaxe e da linguagem…   

Eu, quando decidi enfrentar Camões, aqueci os motores com um livro que também deveria ser lançado no Brasil, A History of Water (2022), do historiador literário britânico Edward Wilson-Lee.  

Ele conta a história da expansão imperial portuguesa no século XVI, acompanhando duas personagens extraordinárias: Damião de Góis, humanista português que foi considerado um dos grandes intelectos da Europa no Renascimento, e o próprio Camões, “um rufião que se transformou em poeta nacional”.  

Sim, até onde se sabe, Camões foi um rufião – um sujeito dado a brigas, a “ninfas de água doce” (prostitutas), sempre às voltas com credores, que acabou desterrado na África e na Ásia e voltou ao país natal para morrer na miséria, antes de ser consagrado com um gênio da língua. Sua vida e seu tempo não poderiam ser mais interessantes.  

A sobrevivência dos clássicos fora das Universidades e salas de aula inquieta os professores de literatura. Mas não adianta reclamar do mundo, que afasta cada vez mais os clássicos da compreensão e do gosto das gentes (para usar uma expressão dos tempos camonianos).  

Biografias e obras de história, como as mencionadas acima, são apoios valiosos, que favoreçam uma aproximação, um “engate”. Um discurso amoroso em vez de sabichão sobre as velhas obras também pode ser inestimável – basta ver o efeito que o entusiasmo de uma influenciadora americana do Tik Tok teve recentemente sobre as vendas de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, na tradução em inglês.  

Não desmereço, de forma nenhuma, o poder explicativo dos textos acadêmicos de crítica literária, mas ele precisa vir acompanhado de um pouco de encanto. O grande crítico americano Harold Bloom, autor de O Cânone Ocidental, era um mestre nisso: você podia não conhecer a obra que ele estava comentando, nem entender direito os seus argumentos, mas sempre acabava acreditando que sua vida ia mudar se lesse aquele livro ou poema.

(Bloom, a propósito, escreveu sobre Os Lusíadas no livro Gênio. Conclui tratar-se do “mais políticamente incorreto dos épicos”, devido ao episódio do Canto IX em que Cupido atinge todas as ninfas marinhas com suas flechas, para que elas se deitem com os marinheiros portugueses na Ilha dos Amores.)

Um pouco desse entusiasmo em relação a Camões se encontra nas publicações do tradutor e crítico português Frederico Lourenço… no Facebook. Lourenço explica por que, “os três gênios supremos da poesia, na verdade, são quatro: Homero, Vergílio, Dante e Camões”. Ele também organizou uma antologia dos versos do poeta, que saiu há pouco pela editora Qetzal. 

Para mim, como para tantos outros leitores, o engate com Camões se deu pelo tema do “desconcerto do mundo”, que está espalhado por diversas de suas  composições. 

Como quase tudo na poesia do século XVI, esse era um “topos”, um lugar-comum que os autores visitavam e revisitavam seguidamente. Servia-lhes para tratar dos tormentos do amor, mas para falar de injustiças mundanas e, tacitamente, de uma realidade que estava se transformando de maneira veloz e  irremediável – guerras de religião, navegações, chegada a terras desconhecidas…  

O mundo continua em desconcerto e a língua de Camões, fresca e engenhosa como há 500 anos: “Os bons vi sempre passar/No mundo graves tormentos;/ E para mais me espantar,/ Os maus vi sempre nadar/ Em mar de contentamentos.” Dê uma chance a Camões. 

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  1. Os Lusíadas, apesar de uma obra seminal da língua portuguesa e da poesia mundial, pela sua estrutura particular, pelo uso do português do séc XVI, e de se amarrar tanto às história e mitologia portuguesa, é uma obra muito difícil para o brasileiro médio. Creio ser melhor começar pelos seus sonetos. Camões foi um personagem fascinante: mulherengo, soldado (assim perdeu um olho e participou em expedições à Índia) e determinado (em naufrágio lutou para salvar a si e ao seu manuscrito d'Os Lusíadas

  2. Li e reli toda obra de Camões entre o ensino médio e faculdade. Considero-o sublime. Não apenas pela questão histórica (ajudou a solidificar o vernáculo do Tejo), mas o engenho das composições e a abrangência de temas o tornam singular. Seja em Lusíadas (a Ilíada do Renascimento) ou nas poesias Líricas (“Babel e Sião” obra prima citada, “Amor é fogo”, Jacó e Raquel…), temos trabalhos atemporais. A pobre arte contemporânea realça ainda mais a grandeza de Camões.

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