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Pelo retorno do telecatch eleitoral

Vou parecer saudosista, mas tenho que dizer: hoje é tudo diferente e muito pior – com os debates ao menos. Por isso ninguém mais os vê
23.08.24

Eu sou mais distraído do que professor de filme antigo. Sou como aqueles professores que andavam pisando nas poças de chuva e esquecendo a caneta sem tampa em cima da mesa, tipo o Cary Grant em “Levada da breca”, o amigo se lembra? Um daqueles professores que andavam com o laço frouxo da gravata, a camisa do avesso, óculos tortos e uma meia de cada cor, e por quem, mesmo assim, a jovem e bela heroína se apaixonava. Sim, sou eu mesmo. Com a vantagem de que não dou aulas a ninguém, e com as desvantagens de que nunca nenhuma heroína jovem e bela se apaixonou por mim, e nunca fui parecido com o Cary Grant. Mas calma, o meu assunto é outro: é que, por causa dessa minha capacidade tão acadêmica de distração, demorei a perceber que estava aberta a temporada de debates políticos na TV e – vejam o que é a tecnologia! – nos sites de internet também. 

E pensar que houve tempo em que eu acompanhava os debates políticos com a maior das atenções. Lembro que, nos tempos vizinhos da redemocratização e logo depois dela – digamos, a partir da campanha para governador de 1982 (pois é, amigo, eu sou velho assim) – os debates entre candidatos voltaram, não sei se à moda ou se a ser permitidos, e se transformaram num sucesso imenso de público. Todo o mundo os assistia e comentava, inclusive adolescentes como eu, que andava pelos meus 15 anos. A curiosidade para saber o que diriam os candidatos, fosse uns aos outros, fosse a nós outros que assistíamos, era enorme. Daí que acompanhávamos tudo. E o fato é que nos divertíamos para valer. 

Os candidatos ajudavam. Lá estava, por exemplo, o Jânio Quadros dizendo, pausado e didático, que não era selenita: como não rir? Lá estava o Leonel Brizola (que entrou no Uruguai um tanto carnavalescamente) chamando, com louçã irreverência, nosso sacrossanto líder supremo de, hum, de sapo barbudo, ou afirmando que o PT é a UDN de tamanco e macacão: como ficar indiferente? Ainda o mesmo Brizola chamando Paulo Maluf, com mimosa faceirice, de filhote da ditadura: como não aplaudir? E o Maluf abrindo todas as vogais para responder que Brizola não esqueceu nada e nem aprendeu nada: como não vibrar? Ou lá estava Mário Covas dizendo, meio alucinadamente, que não sabia quantas caras tinha, mas que tinha vergonha em todas elas: como não soltar brados de alegria? Lá estava o Doutor Enéas afirmando que órgãos excretores não servem para a reprodução e prometendo a bomba atômica: como não abrir uma cervejinha? Lá estava o Sílvio Santos dizendo, com doce candura, que não sabia bem como as coisas funcionavam: como não sorrir em meio às lágrimas, nós que agora o pranteamos? Todo esse telecatch verbal rolando enquanto os pobres e famosos mediadores – Joelmir Beting, Marília Gabriela, Salomão Esper, Fernando Mitre – tentavam inutilmente pôr ordem na casa e fazer os candidatos respeitarem seus dois minutos de tempo. Eram os debates raiz. 

Nos dias seguintes, tudo isso era the talk of the town, era o assunto nos elevadores, nos botequins, na condução. Viu o que Fulano falou? Tome, cheiroso! E a resposta de Beltrano? Porreta! E com Sicrano, quem é que pode? Ora, ninguém! Formavam-se lealdades e torcidas, batia-se boca, dedos eram postos em riste, desafios eram lançados, vaticínios eram feitos e ridicularizados. Era o maior barato. 

Mas talvez a coisa mais espantosa e incompreensível para os moços e moças hoje, para os que não viveram as coisas daqueles tempos heroicos e desbravadores, e que chamam professores velhos e distraídos como eu de boomers, é que, por mais acalorados que fossem os debates, por mais duras as chacotas e os insultos atirados pelos candidatos às fuças uns dos outros… ninguém era preso, ninguém era processado pela Justiça Eleitoral e declarado inelegível, e ninguém tentava impugnar a candidatura de ninguém. Naquele tempo, e com aqueles homens, chumbo trocado não doía, e aquele bafafá todo era visto como um exercício muito bom, muito pleno, de Democracia, e não coisa que a ofendesse ou sabotasse ou lhe pisasse nos calos. 

Vou parecer saudosista, mas tenho que dizer: hoje é tudo diferente e muito pior – com os debates ao menos. Por isso ninguém mais os vê, e eles acabam ficando restritos à imprensa e às claques (nem sempre é fácil distinguir uma coisa da outra) dos candidatos. Dos mui democráticos candidatos. Dos mui melindrosos candidatos. Dos mui lacrimosos candidatos. Dos hipersensíveis e hiperventilados candidatos. Aí, quando aparece um parlapatão dos bons – um padre, um cabo, um influencer – a turma, em vez de se entusiasmar, pede os sais, pede para sair. Ou pede para tirarem os caras. 

Por isso, ó donos e guardiões da Democracia, eu vos lanço aqui um apelo. De pão já não vamos tão bem assim; por favor, não nos tirem também o circo. 

 

Orlando Tosetto Jr. é escritor

 

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  1. Temos que lembrar que os candidatos são, geralmente , escolhidos pelos caciques . Todos querem intervir nas eleições , enquanto o eleitor é que deveria escolher melhor

  2. Debate é para esclarecer o eleitor das propostas dos candidatos. Já que os partidos só nos dão candidatos m3rda e sem proposta alguma, que nos deixem desfrutar do circo, pelo menos

  3. MARINA HELENA do NOVO, além da carestia de recursos para sua campanha ainda é boicotada por entrevistadores e canais de debate… deixem a moça falar e contar o que pensa e pretende para SP…

  4. Perfeito seu texto. Sim, sou saudosista também e acho os chiliques dos candidatos nos debates e depois deles, o atestado de falsidade geral, é pseudo moralidade indecente. Em SP votarei na MARINA HELENA do NOVO que, sendo a mais preparada para consertar a Pauliceia Desvairada, não conta com o dimdim generoso e fétido fundo eleitoral

  5. Muito bom mesmo! Escreve um artigo assim falando dos candidatos de Minas Gerais, principalmente daquele ELE que anda fantasiado de mulher lá no Congresso (igual ao meu marido em baile de carnaval) que casou com uma mulher, fez um filho com ela, tem cara de homem, jeito de homem, voz de homem, mas insiste em ser tratado por senhora (o Nikolas Ferreira já provou do veneno, teve que pagar multa). Deve ser um telecatch eleitoral muitíssimo interessante.

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