Cena de Deus e o Diabo na Terra do SolCena de Deus e o Diabo na Terra do Sol, clássico do "Cinema Novo": tentativas de persuasão - Foto: Copacabana Filmes / Reprodução

A tentação retórica do cinema brasileiro

No Cinema Novo brasileiro, não basta levar ao espectador uma apreensão poética da realidade — é preciso levá-lo a querer alterar a realidade
23.08.24

Existe um curta-metragem brasileiro feito pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade chamado Brasília, contradições de uma cidade nova. O filme, feito em 1967 (a cidade não estava completamente pronta, a catedral só tinha a estrutura de concreto) tem nos seus momentos finais uma frase muito significativa do Cinema Novo. 

O curta é dividido em duas partes, uma descritiva, em que o narrador (Ferreira Gullar) descreve o plano de cidade, e outra crítica, em que se explora a situação dos trabalhadores que construíram a cidade, na época morando em cidades satélite, “em tudo opostas ao plano piloto”, como é dito. Nessa última, já no final, surge a frase, que destoa completamente da narração do filme: É preciso mudar essa realidade, para que no rosto do povo se descubra o quanto uma cidade pode ser bela”.  

Essa frase fica ainda mais ressaltada no filme porque ela aparece quando a música (uma Bachiana de Villa-Lobos) cessa. Ou seja, o cineasta quis que nós prestássemos especial atenção a ela. Ele caiu na tentação retórica: não basta levar ao espectador uma apreensão poética da realidade — é preciso levá-lo a querer alterar a realidade. Isso é típico do Cinema Novo.  

Podemos dizer que a principal característica do Cinema Novo é ver o cinema como elemento de transformação da realidade, opondo-se ao cinema comercial. É como se cada filme desse movimento fosse uma tentativa de alterar a realidade – especialmente social, mas também política – do país.  

Arnaldo Jabor disse que a sua geração queria mudar o mundo e mudar o cinema. Evidentemente, não conseguiram nenhum dos dois, se bem que o Cinema Novo teve grande influência no cinema brasileiro. E a influência principal foi precisamente neste aspecto: na retórica. O problema da retórica – que tem por objetivo levar à ação – é o seguinte: quanto mais retórico é um filme, maior a rejeição que ele causa. Vai ficando mais próximo da publicidade, da simples propaganda.  

O cinema ali é pretexto para persuadir o espectador. Basta ver quantos filmes foram feitos para defender a ideia de que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe. Não duvido, inclusive, que essa versão fique para a história – com a ajuda do cinema. Mas tantos recursos – não falo nem só dos recursos financeiros, mas humanos, artísticos – foram gastos para persuadir o espectador de uma visão específica da história recente.  

Isso produz rejeição. O mesmo tipo de rejeição que tem um vendedor, ou um apologista religioso que aborda pessoas na rua. Recentemente foi aprovada cota de sala para o cinema brasileiro, 10% das salas foram reservadas para o cinema nacional – a venda de ingressos, entretanto, não passou de 5%.  

O público do cinema brasileiro vem caindo, eis um dado objetivo, e um dos motivos principais a meu ver é a chave retórica, aquela do “é preciso mudar essa realidade.  Ninguém sai de casa para ser persuadido. Por mais diversa que seja a experiência artística – as pessoas querem fugir da própria realidade, ou se emocionar, ou ter uma experiência espiritual, ou tudo isso junto – ninguém sai de casa, pega um transporte, paga um ingresso de cinema para ser persuadido, para ouvir sermão politicamente correto ou para aprender lições edificantes.  

A propósito, o Cinema Novo foi em parte limitado pela censura dos governos militares – não se podia criticar o governo diretamente, fazer militância explícita. Talvez tenha sido isso que salvou o Cinema Novo: os filmes foram obrigados a ser menos diretamente persuasivos e muitos se salvaram para a posteridade.  

Com a redemocratização, isso acabou, e o auge do cinema retórico foi nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, em que cada diretor se sentia na obrigação de “lutar contra o fascismo”, tanto no filme em si como em todas as manifestações relacionas – exibições, mostras, entrevistas. Já vimos o resultado: a diminuição do público dos filmes.  

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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  1. Excelente artigo! Enquanto o dito "cinema brasileiro" quiser se impor ao público, sem ao menos se perguntar por qual motivo ele só consegue ser um fenômeno de rejeição de público, não pode esperar crescer e se tornar relevante. Só conquistaram o público brasileiro aqueles filmes nacionais que fugiram dessas premissas panfletistas e auto-laudatórias de que o cinema brasileiro padece desde sempre. Que desçam do pedestal, os cineastas brasileiros, vão ao encontro do público e deixem de lado o uso da arte como um panfleto ideológico. Então não precisarão mais de mamata.

  2. Da minha parte, só consegui é ter aversão à produção cultural de nosso país. Tenho sentido repulsa aos artistas brasileiros com as ideias empoeiradas de Esquerda.

  3. Ótima observação. Assistir filmes nacionais é como ouvir um moralista hipócrita discursar; enfadonho e irritante.

  4. Os cineastas não estão preocupados se vão persuadir as pessoas. O importante para eles é continuar mamando nas tetas do Estado. Eles não fazem filmes para as pessoas. Fazem filmes para si e para os colegas de ideologia.

  5. Há anos o cinema nacional gasta dinheiro e tempo pregando num quase deserto. Se existe concentração de gente teimosa e obtusa, além de sem imaginação, com certeza no Brasil se situa no meio cinematográfico!!!!

  6. O cinema brasileira se tornou peça de propaganda político ideológica. Triste retrato de nossa cultura agonizante em meio à lacração.

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