Gui MendesPenso nas tantas vezes em que tentou-se murar as fontes do caos na história brasileira. A começar pelo urbanismo

O muro do Dom Quixote

Livro centenário escrito por Miguel de Cervantes é um clássico e os clássicos costumam ter elementos arquetípicos, que os fazem superar diferenças culturais e temporais.
16.08.24

Dom Quixote de La Mancha leu tantos romances de cavalaria que pensou tornar-se ele próprio um cavaleiro, e passou a usar armadura e tudo. Saiu pelo mundo com suas armas e seu cavalo Rocinante, não sem causar confusão, quebrar-se todo numa queda, e provocar a comoção das pessoas próximas.  

Um dos remédios que os amigos – especificamente um padre e o barbeiro – conceberam para o Dom Quixote foi mandar murar o aposento dos livros em sua casa. “Talvez retirando a causa cessasse o efeito”, eles dizem no livro. Sem ler os livros de cavalaria ele talvez parasse de imaginar-se um cavaleiro e voltasse à sanidade.  

O Dom Quixote é um clássico e os clássicos costumam ter elementos arquetípicos, que os fazem superar diferenças culturais e temporais. O personagem incorpora bastante o espírito do que viria a ser o barroco: as fantasias, as contradições profundas, a exuberância, e por aí vai. 

A reação às fantasias é também arquetípica: um muro é construído para vedar sua fonte – evidentemente essa medida não tem o efeito pretendido, Dom Quixote continua pondo em prática suas fantasias. 

Mas a tentativa é muito significativa. Penso nas tantas vezes em que tentou-se murar as fontes do caos na história brasileira. A começar pelo urbanismo. A história do urbanismo brasileiro é a história da tentativa de racionalização, da busca pela linha reta, pela forma da grade. Para isso, foi preciso renunciar aos morros (como o Morro do Castelo, onde nasceu a cidade do Rio de Janeiro), destruir parte do patrimônio histórico para a construção de grandes vias (como a Avenida Dantes Barreto, no Recife, que levou à destruição da Igreja dos Martírios, do século 18), ou construir uma cidade totalmente terraplanada, como Brasília. 

Nessa tentativa de racionalização, de tapar o caos, foram jogados para fora das cidades tudo que não cabia no plano: em Brasília, os pobres foram para as cidades-satélite. No Rio de Janeiro, os antigos habitantes do Morro do Castelo foram para favelas.

Aconteceu aí algo inédito na história brasileira: a separação de classes tornou-se também uma separação geográfica. Quem fala sobre isso é Antonio Risério no livro A Cidade no Brasil: no passado colonial as classes conviviam nos mesmos espaços da cidade.  

Tal tendência excludente não é só do modernismo no Brasil. Le Corbusier no livro Urbanismo, em que faz um projeto de cidade ideal chamado Ville Radieuse (projeto que inspirou Lucio Costa ao conceber o projeto de Brasília) diz o seguinte: A cidade é um instrumento de trabalho. As cidades já não cumprem normalmente essa função. São ineficazes: desgastam o corpo, contrariam o espírito. A desordem que se multiplica nelas é ultrajante: sua decadência fere nosso amor-próprio e melindra nossa dignidade.”  

Para criar a ordem em meio ao caos das cidades foi preciso impor, de cima, uma organização. É isso que Gilberto Freyre critica no projeto da cidade de Brasília. Diz ele no livro Brasis, Brasil e Brasília: “Isto o que tenho procurado opor de concreto aos abstracionistas que, contrariando os próprios desígnios do ex-Presidente Juscelino Kubitschek, julgam possível a um país pobre, como é o Brasil, dar-se ao luxo de levantar uma cidade só exclusivamente por arquitetos – aliás, ilustres – como por uma casta de sacerdotes sagrada, toda-poderosa e onisciente (…)”.  

Até hoje as cidades brasileiras são planejadas assim. Os conjuntos habitacionais, pretendem substituir as favelas. Só que esses mesmos conjuntos, projetos padronizados, terminam por favelizar-se com o tempo e o uso. O filme Central do Brasil, de Walter Salles, mostra muito bem o resultado do urbanismo modernista, centralizador, na vida concreta dos seres humanos.  

O filme se passa numa estação modernista (a Central do Brasil), em conjuntos habitacionais, e por fim num imenso conjunto de casas padronizadas – os encontros e desencontros do filme se dão nesses cenários. A exceção é a cena da procissão no interior, uma das cenas mais bonitas do cinema brasileiro, em que surge um arroubo do medievalismo nordestino – contra a suposta organização das cidades modernas.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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  1. Aqui no Chiqueiro "abandoná pur Zeus e buníii pur naturê" os podres poderes induziram tolos manés a se manifestarem na podridão da praça, prendeu-os e vegomhosamente os sentenciou a anos de cadeia E soltou chefões do tráfico ... a repúLIGa do triunvirato ditador fede e sente-se a catinga de Marte.

    1. Concordo plenamente. A minha cidade, por exemplo, com 600 mil habitantes é um retrato perfeito deste artigo. Agora, além do PT , a MRV constrói dezenas de aglomerados imensos padronizados e recria um "Minha Casa Minha Vida Plus" com coberturas e piscina para milhares de pessoas num só "condomínio". E vende tudo! Blocos de concretos padronizados por toda cidade , destroem tudo que poderia ser considerado pessoal e monopoliza as paisagens com imensos caixotes humanos. Triste!

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