Voice of America via Wikimedia CommonsTornou-se fácil demais falar em ódio. É um sentimento politizado

Impressões sobre um atentado

Popular em canais de notícia, a conversa sobre ódio na política é um clichê que não serve para explicar a tentativa de assassinar Trump
19.07.24

Esse negócio de canais de televisão exclusivamente noticiosos pode não ter sido uma boa ideia. Se até jornais diários precisam de irrelevâncias para preencher suas páginas, o que esperar de quem transmite notícias sem parar, até nas horas da insônia? Nós, jornalistas, deveríamos aceitar humildemente a realidade: não é todo dia que acontece tanta coisa relevante. 

Outro dia, aconteceu algo realmente importante, uma notícia titilante e sensacional: um atentado contra o candidato favorito às eleições presidenciais daquele que ainda é o país mais poderoso do mundo. Liguei a TV na CNN americana assim que soube do ocorrido. Permaneci perto de uma hora estupidamente hipnotizado por um loop contínuo das poucas e ainda imprecisas informações do disponíveis nas primeiras horas depois que uma bala passou raspando pela orelha de Donald Trump.

A redundância é a alma do jornalismo televisivo. O âncora no estúdio às vezes dava as mesmas informações que os repórteres de campo. Repetiu-se várias vezes a imagem de Trump no palanque, levando a mão à orelha. Um pouco mais tarde, a CNN conseguiu um vídeo de celular, gravado por alguém na plateia do comício em Butler, Pensilvânia. Era uma barafunda incompreensível de imagens tremidas. Em boa parte do vídeo, só se via o chão. 

Então chegou o momento da previsível análise da notícia: os especialistas que a produção conseguiu encontrar no calor daquela hora tão grave foram entrevistados. Um ex-funcionário dos serviços de segurança federais falou muito cautelosamente sobre a necessidade de barrar a linha de visão dos telhados próximos a um evento público, para impedir que o franco atirador encontre um ponto elevado de onde veja bem seu alvo. 

Seguiram-se considerações políticas. Ainda não se conhecia a identidade do atirador, mas já se tinha como certo que sua motivação era o ódio – o ódio político, o ódio polarizado que divide a política americana hoje, o ódio que se propaga nas redes sociais. O tiro que poderia ter matado Trump deveria servir, disse um comentarista, como um sinal de alerta: é preciso conter o ódio. 

No entanto, pelo pouco que se divulgou até agora sobre o atirador, não parece que ele fosse o típico fanático tomado de ódio por seus inimigos ideológicos. Thomas Matthew Crooks, de 20 anos, registrou-se como eleitor republicano mas também fez uma pequena doação ao Partido Democrata. Até onde se sabe, não participava de movimentos radicais como o Antifa. Não era muito ativo em redes sociais.   

A realidade nem sempre cabe nos nossos clichês.  

*

Nesse esforço de chamar os tais especialistas para preencher horas vazias da programação, a GloboNews deu voz a um sujeito que aventou a possibilidade de que o atentado tenha sido encenado pela campanha de Trump. E ainda fez comparações com o que chamou de “suposto atentado” contra o então candidato Jair Bolsonaro, em 2018.  

Se continuar dando crédito a figuras assim, a GloboNews talvez ainda vai me convença a apoiar uma de suas reivindicações mais caras: que o Congresso passe regulamentações estritas para coibir a divulgação das tais fake news.

*

Não estranha que os teóricos da conspiração estejam dobrando a aposta no delírio. Trump demonstrou seu gênio demagógico em Butler: ergueu um triunfante punho cerrado enquanto os agentes de segurança o conduziam para fora do palco.  

“The landslide will be even bigger now”, escreveu, no Substack, Andrew Sullivan, um dos mais interessantes comentaristas profissionais do cenário político americano. Traduzindo muito livremente: “Agora, a goleada vai ser ainda maior”. A goleada republicana, bem entendido. E isso não é torcida: Sullivan é antitrumpista. Ele está se rendendo aos fatos. Tudo leva a crer que a vitória será mesmo do homem laranja. A candidatura de Joe Biden já andava periclitante antes do assassino frustrado ter involuntariamente produzido uma grande foto de campanha para Trump. 

A ironia é que o efeito imediato do atentado foi roubar um voto de Trump: o voto do bombeiro Corey Comperatore, 50 anos, que estava no comício e foi morto por um tiro de Crooks. 

*

De volta a Crooks e ao ódio que lhe atribuem. 

Não é de hoje que o ódio anda mal falado. Aqui no Brasil, ninguém mais se lembra dos versos de Drummond: “Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvo/ e dou a poucos uma esperança mínima”. 

Me pergunto se basta o ódio para motivar uma pessoa a subir em um telhado e fazer mira na cabeça de um ex-presidente que tem boas chances de voltar à Casa Branca. Carrego comigo ódios e ressentimentos inconfessáveis, alguns deles voltados a figuras públicas, mas nem por isso ando pensando em adquirir um rifle com mira telescópica. 

Talvez seja o caso de levar o questionamento um passo adiante: o ódio é necessário para matar alguém? Acho que não. Mark Chapman, o fã dos Beatles que matou John Lennon, e John Hinckley Jr., que atirou em Ronald Reagan para chamar a atenção de Jodie Foster, talvez tenham sido motivados não pelo ódio, mas pela polifonia de vozes em suas mentes. 

Tornou-se fácil demais falar em ódio. É um sentimento politizado. A definição contemporânea do ódio é situacional: é o sentimento que move o lado oposto ao nosso na guerra cultural. 

*

Especulação ociosa que andou se balançando no trapézio da minha mente: um franco-atirador muito bem preparado e treinado, um artista de seu ofício seria capaz de fazer intencionalmente o que Crooks fez por acidente – digo, atirar em um homem à distância de 135 metros e ferir sua orelha só de raspão? 

Pensando nesses termos, a sobrevivência de Trump começa a parecer um acaso improvável. Mas toda sobrevivência talvez seja obra do acaso. 

O que, no fim das contas, também é um clichê. 

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Perfeita análise. Só queria acrescentar às características do "menino atirador" : 1) ele teria que estar disposto a "morrer pela causa", talvez um "jihadista" às avessas 2) e ter tido um treinamento intenso para acertar "de raspão" a orelha. Como se diz na minha terra: "esse cara é bom"!

  2. A reflexão sobre o ódio é interessante e coerente. Culpá-lo exclusivamente é preguiçoso e impreciso,o que só reforça o baixo nível do jornalismo

  3. Sobre a "goleada" existe um antigo ditado político brasileiro, que diz: Contra um fato consumado somente um fato novo. Sr houverem fatos novos talvez não haja goleadas.

    1. Verdade… réplica sem tréplica aqui no quintal, felizmente!

  4. Parabéns pelo artigo! Você toca num ponto bem interessante. Essa chatice das emissoras ficarem repetindo a informação usando todos os artifícios para manter o público grudado na telinha.

  5. Não sei se é necessário uma lei contra fake news. A audiência das emissoras militantes cai dia após dia e os analistas engajados parecem não sentir vergonha do ridículo das suas bobagens ditas

  6. Excelente!!! O artigo me faz lhe sugerir o autobiográfico “Sociopatas, o lado sombrio da Medicina”, onde o ódio perpassa praticamente todo texto; em e-book na Amazon e em papel no Clube de Autores. Albino Bonomi, médico e com formação em psicoterapia.

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