Lorie Shaull via Wikimedia CommonsEstêncil Anti-Macron diz: "Complô da media e da finança para eleger Macron. Resista!"

O centro não se sustenta

Como o poema citado por uma revista inglesa para comentar as eleições francesas define nosso estado de desilusão política
05.07.24

Na bandeira tricolor que tremula contra o céu, a cor branca que deveria ocupar a posição central simplesmente desapareceu. Uma nuvem clara toma o lugar da faixa ausente, entre o pano azul, preso no mastro à esquerda, e o vermelho, absurdamente suspenso em pleno ar, à direita. A capa da revista The Economist da semana passada quase parece uma imagem de René Magritte, pintor belga que gostava de brincar com as ilusões de realidade a que a arte nos acostumou.

Azul, branco e vermelho são as cores nacionais da França, tema da reportagem de capa da revista inglesa. A edição saiu antes do primeiro turno das eleições para a Assembleia Nacional, em 30 de junho, mas isso não comprometeu a análise: o resultado foi aquele previsto pelas pesquisas de opinião. O centro que se desvanesce na bandeira é Emmanuel Macron, grande derrotado do pleito. O segundo turno, neste domingo, deve definir se, nos três anos que lhe restam como presidente, Macron será acompanhado de um primeiro-ministro da esquerda ou da direita. Sua coligação ficou em um humilhante terceiro lugar.

No Brasil, comentaristas de um canal de notícias se exaltaram ao discutir a natureza do grande vencedor das eleições, a Reagrupamento Nacional. É direita nacionalista ou extrema direita? The Economist definiu o partido de Marine Le Pen como “hard right” – em tradução literal, “direita dura”, expressão que achei saborosa – e não demonstrou alarme com sua vitória. O receio não é que a França se converta ao fascismo: o que a reportagem lamenta é que o novo primeiro-ministro possa emperrar a abertura econômica capitaneada por Macron, pois tanto direita quanto esquerda são protecionistas e populistas em questões fiscais.

Não tenho interesse nem competência para julgar se essa avaliação está correta. O que capturou minha atenção na Economist, além da sacada visual da capa, foi o título: “France’s centre cannot hold”. Em tradução livre, o centro da França não se segura, ou não se sustenta.

É uma citação de William Butler Yeats, um dos maiores poetas de língua inglesa do século passado. No início de The second coming (A segunda vinda), poema dos anos 1920, ele nos apresenta a imagem de um falcão que, ao subir aos céus, se perde do falcoeiro – e então, no terceiro verso, vem a constatação fatal de que já não existe centro que nos segure. Na tradução de Paulo Vizioli:

 

“Rodando em giro cada vez mais largo,
O falcão não escuta ao falcoeiro;
Tudo se esboroa; o centro não segura;
Mera anarquia avança sobre o mundo” 

 

Things fall apart; the centre cannot hold.” The Economist fez bom uso desse conhecido verso. Mas Yeats não pretendia falar no ponto intermédio no gradiente ideológico quando empregou a palavra “centro“. As coisas que se desfazem (ou se esboroam, na versão de Vizioli) são aquelas que mantinham a civilização de pé, que orientavam nosso norte, que davam sentido à vida. Desprovido de centro, anárquico, o mundo cai presa de catástrofes piores do que reversões nas modestas reformas econômicas de Macron.

Yeats nutria um vivo interesse pelo ocultismo. A segunda vinda (também traduzido como O segundo advento) parece uma visão mística do fim dos tempos. O título evoca o retorno de Jesus Cristo à terra, mas o poema se encerra com a imagem sinistra de uma esfinge, uma “besta rude” (“rough beast”) que se arrasta até Belém para nascer.

Na mesma levada apocalíptica, o poema também fala de uma maré de sangue que afoga a “cerimônia da inocência”. Será talvez um eco do massacre sem sentido da juventude europeia na Primeira Guerra Mundial, encerrada poucos anos antes. E como a sensibilidade romântica gosta de atribuir dons proféticos aos poetas, torna-se quase inevitável a tentação de  identificar as coisas futuras em A segunda vinda. Nessa chave, a besta seria Hitler, e a maré de sangue seria a Segunda Guerra Mundial (Yeats morreu sete meses antes da invasão da Polônia, aos 73 anos, em 28 de janeiro de 1939).

Mais proveitoso do que converter Yeats em Nostradamus é ouvir o que ele diz ao tempo presente. Tão perturbadora quanto a maré de sangue e a besta é a sentença proferida nestes dois versos:

 

“The best lack all conviction, while de worst
Are full of passionate intensity.” 

 

Em tradução livre: “os melhores carecem de qualquer convicção, enquanto os piores estão cheios de intensidade apaixonada”. Talvez mais do que o verso aludido na capa de revista com a bandeira surrealista, essa passagem se presta a interpretações políticas. Pois o terreno em que convicções são defendidas e contestadas (idealmente, de forma civilizada) é, por excelência, a política. Trata-se de um terreno fértil em paixões intensas.  

Embora atravessados por um pathos ao mesmo tempo melancólico e angustiado, esses dois versos parecem oferecer consolo a todos nós, que não nos deixamos levar pelas intensas paixões da militância. Mais que consolo, lisonja: basta citar Yeats para nos colocarmos na elevada estirpe dos que não têm convicções. Como poderíamos tê-las, se as ideias e tradições mais nobres foram todas distorcidas e conspurcadas? Está ali o liberal aplaudindo o arbítrio, e a seu lado o conservador pregando a revolução, e só um pouco adiante, no que apenas parece ser o campo oposto, o defensor da democracia pratica a censura e o progressista abraça o obscurantismo.

Em dias mais felizes e tolos, também recorri ao poeta irlandês para acariciar minha imodéstia. Hoje, ouço em seus versos uma admoestação, talvez até uma acusação: omissos, os melhores deixaram a intensidade apaixonada promover a anarquia e afogar os inocentes em sangue.

É urgente encontrar um centro, ainda que precário. É necessário abraçar uma convicção, ainda que limitada. Não me pergunte onde, não me pergunte qual.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Minha convicção é de que a reeleição de cargos executivos , pelo menos, deveria ser abolida por aqui e que os ministros do STF deveriam ter mandato menore não vitalício. Eles fazem muito estrago com essa onipotência

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