St. Vincent via YoutubeFrame de "Los Ageless", da cantora St. Vincent, em 2017: a exposição em rede social tem tudo a ver com a digitalização da vida

O culto da artificialidade

A harmonização facial e algumas cirurgias plásticas parecem ser feitas para serem notadas – a intenção não é ser natural
21.06.24

De repente, as cores dos filmes tornaram-se metálicas, os efeitos digitais se multiplicaram, cada cena puxa para uma cor. O mesmo na fotografia, com tratamento excessivo, que por vezes faz a foto parecer ter sido realizada por inteligência artificial.

De modo equivalente, popularizaram-se a harmonização facial, as cirurgias plásticas e outros procedimentos estéticos que, curiosamente, parecem feitos para serem notados – a intenção não é ser natural.

Se você vê um filme da década de 1970, ali estão efeitos especiais práticos, filmados em película, mostrando atores em sua forma bem próxima da natural – é claro que já existiam procedimentos estéticos, mas não eram tão comuns, tão popularizados e nem tão evidentes.

O que foi que aconteceu de lá para cá?

Talvez o principal fator seja o desenvolvimento tecnológico digital. A imagem digital tornou-se o suporte básico do cinema e da fotografia – não é o único, muita coisa é fotografada ou filmada em película – mas é o principal. E o digital, diferente da película, que é uma reprodução química da realidade (a imagem é impressa no âmbito molecular), é uma duplicação matemática da realidade, e não material. Se você ampliar uma película vai achar, no final das contas, as moléculas da emulsão sensibilizadas pela luz do objeto fotografado. Se ampliar uma imagem digital vai achar um pixel, que é uma partícula indivisível da imagem.

Verdade que a imagem atualmente é apreciada predominantemente através de aparelhos digitais (mesmo que seja uma foto analógica): computador, smartphone, tablet ou televisão. Mas existe uma diferença, sim, na qualidade da imagem captada analogicamente ou digitalmente – a foto analógica tende a ter cores mais profundas e maior profundidade de campo.

A imagem digital é mais artificial – poderíamos resumir assim. E o meio é a mensagem, como dizia Marshall Macluhan. Ou seja, o meio não é neutro: é um elemento determinante na comunicação.

Acho que a diferença crucial entre o analógico e o digital é que o analógico é uma imagem mais acabada em si mesma. O digital é uma imagem que necessita de tratamento maior, é como se o ato de fotografar fosse apenas metade da captação da imagem, a outra metade é o tratamento. No analógico existe tratamento e correção de cor também, mas em muito menor escala. De modo que o digital tende muito mais ao artificialismo – as cores são mais artificiais, assim como a iluminação, e até a textura da imagem.

E como a tecnologia molda a percepção das pessoas, isso afetou o tecido da cultura como um todo. Mas não seria um salto muito grande relacionar isso com procedimentos estéticos? Pode ser. Mas a exposição em rede social tem tudo a ver com a digitalização da vida. O Brasil lidera o ranking de procedimentos estéticos junto aos Estados Unidos, sendo que este país tem uma população 30% maior, segundo reportagem da Folha de S. Paulo.

O Brasil também o segundo país que mais usa rede social no mundo. Suponho que exista uma correlação entre as duas coisas: tal a exigência social de exposição da própria imagem por meios digitais que acaba virando uma necessidade de apresentar-se bem — e o bem no caso aqui tem a ver com estar bonito nos padrões artificiais, com procedimentos estéticos.

No caso do cinema, acho que existe uma correlação entre a popularização da captação da imagem digital e a imagem cinematográfica – só que essa correlação é de oposição. Já há algum tempo tenho refletido sobre o porquê de os filmes estarem tão escuros – o melhor exemplo é o filme The Batman (2022). Nunca vi um filme tão escuro na minha vida. A evolução mais característica da imagem feita por smartphones é a capacidade de fotografar no escuro, tornando tudo mais claro. O cinema atual parece uma reação oposta à captação da imagem, com o efeito que torna tudo mais claro.

No caso do cinema como da fotografia, através de dispositivos móveis, existe em comum a artificialidade – é tudo muito pouco natural.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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