Reprodução/Instagram

Como nasce um ídolo

Vitória na Champions e campanha contra o racismo elevam Vini Jr. ao panteão nacional
07.06.24

O ano de 2024 ficará marcado como aquele em que o Brasil deu ao mundo um novo ídolo, o jogador de futebol Vinícius Jr..

Vini é mais um daqueles casos, felizmente comuns no Brasil, de menino de família humilde que mudou de vida por ter talento com a bola. Nascido em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, ele entrou cedo para as categorias de base do Flamengo, estreou como profissional com apenas 16 anos e, aos 18, transferiu-se para o Real Madrid, da Espanha, um dos grandes times do futebol mundial. 

Sua história, no entanto, tem ingredientes especiais. 

Nos últimos anos, Vini tornou-se alvo recorrente das mais pesadas ofensas racistas no futebol espanhol. Em vez de engolir em seco, ele passou a denunciar a violência cada vez que ela acontecia e, com isso, tornou-se um símbolo da resistência ao racismo. Em março deste ano, durante uma entrevista coletiva, ele chorou e fez um desabafo, dizendo que às vezes era difícil reunir ânimo para continuar jogando. “Mas quero continuar lutando”, afirmou.

Na verdade, o desempenho esportivo de Vini Jr. não foi afetado por aqueles que tentavam diminuí-lo. Esse é o outro elemento especial a seu respeito. O atacante brasileiro teve disciplina para lapidar continuamente a sua habilidade natural. Hoje, combina força física com técnica incomum. Destaca-se num time repleto de estrelas e é grande candidato à Bola de Ouro, a premiação francesa que consagra o melhor jogador do mundo a cada ano. 

A partida que confirmou que Vini Jr. está pronto a ingressar no panteão dos atletas extraordinários aconteceu no domingo, 1, quando Real Madrid e Borússia Dortmund, da Alemanha, disputaram a final da Champions League. 

Aos 38 minutos do segundo tempo, o meio de campo do Real Madrid Jude Bellingham recebeu a bola pela direita, no campo de ataque. Ele tocou em diagonal, para a grande área do adversário. Quem recebeu a bola foi Viní Jr., que não hesitou: deu um chute de canhota que resultou no segundo gol de seu time e sacramentou a conquista do campeonato. 

Dancinhas de comemoração são comuns no futebol de hoje em dia. As de Vini Jr., tornaram-se um gatilho para as agressões nos estádios espanhóis. Mas foi com alguns passos de dança e com o enorme sorriso que é outra de suas marcas estampado no rosto, que o jogador celebrou seu gol contra o Borússia Dortmund. Como diria o poeta Oswald de Andrade, a alegria é a prova dos nove. 

Em meio às aflições da realidade brasileira, faz sentido uma publicação que se dedica sobretudo à política prestar atenção ao sucesso de um atleta? Sem dúvida. O surgimento de alguém que reúne os atributos de um verdadeiro ídolo nunca é trivial. 

Os gregos da Antiguidade enxergavam com clareza o significado maior que pode ser atribuído às conquistas no esporte. Eles inventaram um gênero poético específico para celebrar os ganhadores, o epinício.

Píndaro, o mais genial criador dessas odes, descrevia os homens como “sombras de um sonho”, a quem as vitórias conferiam uma existência verdadeira. De maneira mais prosaica, as qualidades físicas e éticas dos grandes atletas se entrelaçam nas suas obras, como quando ele diz do célebre lutador Diágoras de Rodes: “concedam-lhe respeito gracioso tanto os cidadãos quanto os estrangeiros, pois ele se move numa linha reta que evita a soberba”. Além do favor divino, o trabalho árduo era uma qualidade indispensável para a glória nas competições, segundo Píndaro.

Essa ideia de que os autores de grandes feitos são exemplos ou modelos em quem se espelhar continua tão válida hoje quanto dois mil e quinhentos anos atrás. Na verdade, mais válida ainda, tendo em vista que nenhum epinício chegava tão longe ou se difundia tão rápido quanto um vídeo do Tio Tok.  

Um ídolo dos brasileiros que ajuda a entender o fenômeno Vini Jr. é o piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna. Vencedor dos campeonatos mundiais de 1988, 1990 e 1991, ele acumulou prêmios suficientes para ser considerado um ícone no Brasil e em outros países, como o Japão. Senna é um ídolo inconteste, em grande parte, porque também foi habilidoso fora das pistas. Ele preservou sua vida privada e não entrou em intrigas com outros pilotos, tomando distância de outro piloto brasileiro, Nelson Piquet, também tricampeão de Fórmula 1 (1981, 1983 e 1987). Os dois acumularam o mesmo número de troféus, mas a maneira como eles dirigiram suas carreiras ajuda a entender por que Senna, e não Piquet, é que ganhou espaço no altar nacional.  

Quando Senna era vivo, Piquet fazia insinuações sobre sua sexualidade. Depois da morte de Senna em 1994, em San Marino, Piquet seguiu com declarações infelizes e chegou a se referir ao piloto Lewis Hamilton como “neguinho”. Na política, deu apoio total a Jair Bolsonaro, irritando os seus críticos. Piquet dirigiu o Rolls Royce presidencial no 7 de setembro de 2021, doou 501 mil reais para a campanha de reeleição de Bolsonaro no ano seguinte e teria cedido sua fazenda para guardar caixas de presentes que o ex-presidente recebeu durante seu mandato, segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo.

Senna, por outro lado, sempre evitou cair no buraco da politização. Cioso de sua imagem, ele criou uma marca com o seu S e também um personagem infantil, o Senninha. Um dos seus sonhos, como ele confidenciou para sua irmã Viviane, era o de que o Brasil fosse um país em que todos tivessem acesso a oportunidades através da educação (mais tarde, isso levaria à criação do Instituto Ayrton Senna). Sem cultivar inimigos, Senna subiu ao pódio da preferência nacional. 

Com a morte precoce, em 1994, Senna foi poupado do ambiente minado das redes sociais, as quais só chegariam com força dez anos depois. Após o advento das redes, assumir algumas posições tornou-se muito mais arriscado. Há bandeiras que são abrangentes, como a luta contra o racismo, de Vini Jr., ou pela educação, como a de Ayrton Senna. E há aquelas que dividem os brasileiros, como a política. Em 2022, a cantora Anitta declarou voto em Lula e prometeu ajuda para “fazer ele bombar aqui na internet, TikTok, Twitter, Instagram”. Também disse que os bolsonaristas eram “autoritários e violentos”. Hoje, metade do Brasil a adora e a outra metade, a odeia.

O jogador de futebol Neymar tomou o mesmo caminho perigoso e participou de uma live com Bolsonaro, que buscava a reeleição em 2022. “Eu queria agradecer ao presidente. No momento mais difícil da minha vida, o presidente foi o primeiro a se posicionar publicamente dizendo que estaria do meu lado”, disse Neymar. Anos antes, em 2019, Bolsonaro tinha apoiado Neymar, que chegou a ser acusado de ter estuprado uma modelo brasileira durante uma viagem a Paris. A modelo foi acusada de fraude e, depois, absolvida. Naquele mesmo ano, o pai de Neymar procurou Bolsonaro para tenta resolver uma dívida de 8 milhões de reais com a Receita Federal. Com tudo isso, Neymar ganhou a antipatia de muita gente na esquerda.  

A conduta machista e criminosa, aliás, também pode frustrar a intenção de tornar-se um ídolo. Enquanto nada foi provado contra Neymar, os jogadores Daniel Alves e Robinho perderam todo apoio que tinham depois que foram denunciados e acusados em casos de violência contra mulheres. Uma estátua em homenagem ao jogador Daniel Alves foi retirada de uma praça em Juazeiro, sua cidade natal, na Bahia.  

Todos esses casos mostram que, ainda que algumas pessoas tenham talentos de sobra e possam ser exemplos de perseverança e abnegação, a intromissão em assuntos mundanos e a má gestão da própria imagem podem fechar a porta do panteão.  

Por fim, vale notar que um ídolo não pode ser artificialmente criado. É a população que elege os seus inspiradores, quase que instintivamente. Eles são escolhidos pelos seus exemplos de determinação, pelos gestos de bravura, pelos trejeitos carismáticos, pela genialidade, pelas preocupações nobres.

Em primeiro lugar, nós admiramos as conquistas, a habilidade, o desempenho. O que vem depois acaba sendo inspirador: seja o sacrifício, seja a genialidade, porque nós temos ídolos para quem as vitórias parecem não requerer tanta abnegação”, diz o psiquiatra Daniel Martins de Barros, professor colaborador da Faculdade de Medicina da USP e autor do livro Viver é melhor sem ter que ser o melhor. “No final das contas, é preciso que a pessoa seja uma mistura de carisma e resultados. Um atleta de alto desempenho e pouco carismático é visto com antipatia, um atleta carismático mas sem bons resultados desperta simpatia. O grande ídolo tem um pouco de cada.” 

É uma fórmula tão simples quanto difícil. Seja como for, ídolos não são impostos de cima para baixo ou por um ato burocrático. Escondido no canto da Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi erguido em 1986 o Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, cuja missão é a de homenagear os heróis nacionais. Lá dentro, há um livro de aço com o nome dos eleitos, os quais precisam ser aprovados pelo Congresso. Vazio de turistas, o prédio é ignorado pelos brasileiros.  

Em 2019, um projeto de lei pediu a inclusão no livro de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata, em 1910, no Rio de Janeiro. A ideia suscitou um protesto da Marinha, que declarou a revolta como “deplorável página da história nacional” e fruto da “ação violenta de abjetos marinheiros”. A adição do nome de Cândido, assim, iria contra os “valores de heroísmo e patriotismo”. Com a discussão caindo nas redes, o projeto foi engavetado. 

Vini Jr. pode dispensar o empurrão dos engravatados de Brasília para se tornar um ídolo nacional. Ele já o é. Seus gols e seu comportamento fora de campo até agora o alçam a tal condição. Um título com a camisa da seleção brasileira poderia ser a sua coroação. A maneira como ele irá administrar tudo isso, contudo, será preponderante para que ele se mantenha ou não no panteão popular.  

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  1. Concordo com o texto no que ressalta o imenso valor de Vinicius e de Senna, no entanto, me pergunto em que serviu a diminuir outros grandes esportistas brasileiros. Certas comparações poderiam ser retiradas do texto, sem qualquer prejuízo ao assunto. .

  2. Vini Jr. pode ser considerado fora da bolha dos jogadores de futebol que enriquecem rápido e não sabem lidar com suas conquistas profissionais. Estes "jogam tudo pelos ares" pela ostentação com carros importados, mulheres, drogas e orgias.

  3. 👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏 (de pé). Artigos assim fazem valer cada centavo dessa assinatura.

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