Um segundo turno abaixo da linha da miséria
Um amigo me manda, por WhatsApp, a gravação de uma mulher alertando para os perigos da ideologia de gênero. Parece ser parte de uma conversa entre pessoas próximas, talvez colegas de trabalho (e sempre há um amigo da onça para vazar o que é dito em grupos privados, para alegria de fofoqueiros e jornalistas). A...
Um amigo me manda, por WhatsApp, a gravação de uma mulher alertando para os perigos da ideologia de gênero. Parece ser parte de uma conversa entre pessoas próximas, talvez colegas de trabalho (e sempre há um amigo da onça para vazar o que é dito em grupos privados, para alegria de fofoqueiros e jornalistas). A mulher está em campanha: insiste para que seus interlocutores busquem convencer “as famílias” a votar em Bolsonaro. Diz a que o projeto petista de governo ambiciona transformar todos em homossexuais – uma ameaça não só à Civilização Ocidental, mas à sobrevivência da humanidade, já que relações entre pessoas do mesmo sexo não geram prole.
De acordo com o amigo que me passou o áudio, a mulher preocupada com o fim iminente do sexo reprodutivo (me vem à mente, fora de contexto, um verso de Leonard Cohen em Everybody Knows: “o homem e a mulher nus são só um artefato resplandecente do passado”) trabalha para uma empresa da área de saúde. Certo jargão e referências à vida acadêmica confirmam que ela passou por bancos universitários, embora não demonstre muito cuidado com suas fontes. Ela aponta, como arquiteta da tão temida ideologia de gênero, uma tal Judite Bitler. Suponho que estivesse se referindo a Judith Butler, professora de Berkeley.
A implementação do programa da dona Judite no Brasil teria começado no governo Lula, com a “lei PNDH3” – que na verdade não é uma lei: trata-se da terceira edição (as duas primeiras são do governo FHC) do Programa Nacional de Diretos Humanos, de 2009, cuja breve seção sobre direitos LGBT recomenda, entre outras medidas modestas, o apoio a projetos de lei que garantam o matrimônio homoafetivo (nem o governo Lula nem os legisladores petistas se coçaram para tanto, e o casamento gay hoje se ampara em uma decisão do STF). Não vejo nada no PNDH3 que devesse alarmar a frágil comunidade heterossexual.
A mulher do áudio ainda fala sobre o perigo dos hormônios que estariam sendo administrados a crianças identificadas como trans e alerta para casos de meninas precocemente submetidas à remoção cirúrgica dos seios. Isso é pânico moral extremo, talvez até ultrapassando, na escala do desvario, a pregação de Damares Alves sobre exploração sexual de crianças desdentadas. Existe, no entanto, uma crítica séria sobre as políticas que a militância trans tem defendido – com sucesso – no Reino Unido e nos Estados Unidos, entre outros países. Autores respeitáveis e responsáveis como Helen Joyce, editora da The Economist, vêm denunciando a prescrição indiscriminada de bloqueadores de puberdade para adolescentes que estão apenas confusos com sua sexualidade.
Nessa discussão, a histeria da direita populista serve apenas para turvar as águas. Aliás, já disse nesta coluna – e repito agora – que o bolsonarismo é uma monstruosa tilápia de cativeiro, consumindo todo o oxigênio livre do debate público. O bolsonarismo perverte toda ideia em que toca, inclusive aquelas que na origem eram inteligentes e sensatas. (Para a semana que vem, na proverbial boca da urna, planejo um artigo sobre o mal que Jair Bolsonaro e seus devotos fizeram ao liberalismo no Brasil).
Pois a tilápia venceu. O Brasil é o país das águas lamacentas.
Não estou fazendo previsões sobre o imprevisível resultado do segundo turno, pois pesquisa eleitoral é retrato de momento etc. Estou falando de uma realidade presente e incontornável: ainda que Bolsonaro não se reeleja, o bolsonarismo venceu. Tem uma bancada forte no Congresso e uma adesão grande entre a população. Enquanto escrevo este texto – e enquanto o TSE tenta conter as fake news cruzando descaradamente a linha da censura –, estarão circulando pelas redes incontáveis áudios, memes e mensagens sobre a conspiração comunista para pôr fim à cópula heterossexual. E essas pautas comportamentais vêm ditando o rumo da campanha, com a adesão entusiasmada da candidatura adversária. Bolsonaro já foi acusado de canibalismo, de pedofilia e de desrespeito à religião (a meu julgamento, só a última acusação se sustenta – mas, não sendo religioso, careço do tal “lugar de fala” para tratar do assunto).
Lula ainda fala, é verdade, das pautas sociais que estão no centro do programa de seu partido. Mas esse programa, que nunca teve contornos muito definidos – a ideia é social-democracia europeia ou comunismo bananeiro? –, nunca foi tão indistinto quanto nesta campanha. Lula, sempre o demagogo, diz que pretende "cuidar do pobre”. Mas como fará isso? Com que recursos, com que apoio no Congresso, com que ministro da Fazenda?
O verbo “cuidar" aparece até na Carta aos Evangélicos, reforçado por uma citação bíblica sobre o amparo a viúvas e órfãos. Essa linguagem paternalista não permite vislumbrar a possibilidade de que o pobre, afinal, deixe de ser pobre. No espírito de uma nova esquerda com a qual Lula não dialoga tão bem, a pobreza converte-se em traço identitário.
A propaganda petista aponta para o passado, para a relativa bonança da primeira década do século, e finge ignorar que o contexto internacional hoje é bem menos favorável. Mesmo que não estivéssemos em tempos recessivos, será que a muito celebrada e muito fugaz ascensão das classes C e D poderia se repetir sem os fundamentos econômicos que o primeiro governo Lula herdou de seu antecessor? Henrique Meirelles, que foi presidente do Banco Central de governos petistas, lançou recentemente dúvidas sobre os rumos econômicos de um possível terceiro mandato de Lula (a quem, no entanto, prestou apoio). Armínio Fraga, outro ex-presidente do BC, prefere o wishful thinking ao realismo de Meirelles: publicou na Folha de S. Paulo uma "entrevista telepática" com Lula, na qual o candidato se compromete com a racionalidade econômica. Mas até o Lula imaginário dá pelo menos uma resposta evasiva: perguntado pelo entrevistador sobre certas propostas com “jeito meio velho” (indústria naval, bancos públicos etc.), ele se limita a dizer que vai tratar bem do “dinheiro do povo”.
Aliás, sobre as tais propostas velhas: no debate da Band, Lula falou, meio de passagem, em Amazônia e economia verde, mas demonstrou mais entusiasmo pelo projeto de construir refinarias e pelo incentivo à indústria automobilística. Dava até para ouvir, ao longe, a voz de Greta Thunberg gritando “how dare you?” (“como ousa?”).
Os eleitores que temem Judite Bitler estarão convictos do candidato em que votarão no dia 30, como também estarão muitos dos que escolhem o outro presidenciável movidos pela nostalgia de uma era lendária na qual o pobre comia picanha. Desconfio, porém, que parte considerável do eleitorado votará no primeiro porque não é o outro, ou no outro porque não é o primeiro. Não há programa assistencial que nos socorra da miséria política.
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Comentários (10)
Lucia
2022-10-27 11:21:37Excelente artigo!
JOÃO
2022-10-24 21:15:34Lucidez e coerência. Ótima observação. Quem vai nos salvar?
Arthur
2022-10-24 16:01:20Infelizmente, tenho a lamentar, a falta de maior cultura do Lula, apesar da sua antiga esperteza política, bem como a psicopatia do outro, que diz barbaridadesmas que envolve os incautos do outro lado. Infelizmente, apesar de nunca ter votado no PT ou no Lula, lastimo ver como este fica inteiramente perdido, quando se fala em corrupção, que ele na soube explicar. O atual presidente, e família, permitiu, e pactuou, com tão grande corrupção quanto a ocorrida no governo Petista!!! Lamentável!!!
JULIANA
2022-10-24 15:53:58Eu amo (quase) todos os seus artigos! (Aquele da Sanna Marin, ficou meio bagunçado 🙈). Esse está ótimo como (quase) todos😜! É custoso tentar imaginar como as pessoas conseguem pensar tantas abobrinhas e sair contando por aí pra qm nem qr ouvir...
luiz antonio-rj
2022-10-24 15:30:14Brasil é um pais amakdiçoado e mais uma vez teremos que escolher entre os 2 piores. Só que agora a escolha será entre os 2 piores. E ambos são os mais mentirosos. Da picanha o lula vai entregar só a metade. E vai ser a p i c a.
JAIR PEREIRA DE SOUSA
2022-10-24 14:27:11Pra qualquer lado que formos tem um precipício!!!
Ana Lucia Dourado Quintaes
2022-10-24 13:04:11É exatamente isso que está acontecendo. Repetiremos 2018, onde Bolsonaro ganhou pq ninguém aguentava mais a ganância e a vergonha do PT. Agora ninguém aguenta mais as loucuras ditas pelo Bolsonaro. Pra não estarmos sempre rodando no mesmo lugar, e estarmos tirando um pq não aguenta o outro, era só ter dado chance de um terceiro e novo candidato pra mudar essa eterna aversão e o Brasil poder seguir outro rumo, quem sabe mais digno e próspero.
MARIA TERESA GIMENEZ
2022-10-24 12:59:58MISÉRIA POLÍTICA, ISSO SIM. Jerônimo Teixeira sempre brilhante nas análises. Aliás, Lula só promete CUIDAR, CUIDAR, CUIDAR.....ABUSANDO DA PALAVRA. O que ele pretende? Fazer-se de pai e mãe dos brasileiros? Não precisamos de paternalistas. Precisamos de dirigentes lúcidos, não populistas, não demagogos.
Vanderlan
2022-10-24 11:06:26Meu caro, o que é mesmo comunismo bananeiro ? Qual a razão de denigrir preconceituosamente essa atividade que tão bem serve a humanidade!
Radjalma Costa
2022-10-24 10:26:49Excelente análise.