Sobre leis indecentes e pontos de virada
A mudança na Lei das Estatais promovida pela Câmara dos Deputados na calada da noite desta terça-feira me fez lembrar do best seller do jornalista americano Malcolm Gladwell, O Ponto da Virada. O tema de Gladwell, caso você não tenha lido o livro, são as ideias e comportamentos que se espalham de maneira súbita, em...
A mudança na Lei das Estatais promovida pela Câmara dos Deputados na calada da noite desta terça-feira me fez lembrar do best seller do jornalista americano Malcolm Gladwell, O Ponto da Virada.
O tema de Gladwell, caso você não tenha lido o livro, são as ideias e comportamentos que se espalham de maneira súbita, em altíssima velocidade, a partir de um evento pequeno e localizado.
Uma das muitas histórias relatadas em O Ponto da Virada poderia ser a das grandes manifestações públicas que aconteceram no Brasil em 2013. Protestos sobre o preço das passagens de ônibus na cidade de São Paulo se transformaram, em poucos dias, em passeatas por todo o país, expressando uma insatisfação profunda com a política nacional.
O Brasil mudou muito desde 2013. Na superfície, a política se organizou em torno de dois sentimentos negativos: antipetismo e antibolsonarismo. Seria quase impossível reavivar no país dividido de hoje o espírito ecumênimo das "jornadas de junho".
Mas isso não quer dizer que a velha indignação com a arrogância e a desonestidade dos "donos do poder" tenha desaparecido. Ela volta a borbulhar cada vez que um projeto de lei casuístico como o desta terça-feira é aprovado de forma sorrateira, na esperança (sempre vã) de que ninguém perceba.
A modificação proposta na Lei das Estatais reduz de 36 meses para 30 dias a quarentena para que alguém que atuou no diretório de um partido político ou trabalhou numa campanha eleitoral possa ocupar a diretoria de uma empresa estatal.
A deputada Margarete Coelho (PP-PI), relatora do projeto, justificou seu voto pela aprovação dizendo que gestores de pequenos municípios, que assumem diretórios locais de partidos políticos por serem os únicos com a qualificação desejável, são penalizados com dureza excessiva por uma legislação que prevê quarentena tão longa. "O que se entende é que há um certo exacerbamento nesse prazo", disse Margarete.
Ninguém acreditou nem por um segundo que a medida tivesse como alvo esses administradores anônimos dos rincões do Brasil. Pode até ser que alguns deles acabem mesmo se beneficiando. Mas, como observou o deputado Marcel van Hattem, a nova regra tem nome e sobrenome: Aloizio Mercadante.
Lula quer Mercadante na presidência do BNDES. Como ele trabalhou na campanha eleitoral, coordenando a redação do programa de governo do PT, estaria sujeito à espera de 36 meses definida na legislação vigente. Se o prazo cair para 30 dias, o petista estará livre para assumir a chefia do banco de desenvolvimento.
Incidentalmente, é preciso reconhecer que uma redução tão drástica da quarentena, de três anos para um mísero mês, também representa um "exacerbamento". A preocupação em proteger as estatais expressa na regra original vira fumaça com a regra nova.
Vemos somar. A lei foi votada às pressas. Tarde da noite. Com justificativas esfarrapadas. Para beneficiar um político. O resultado já é ruim o bastante. Mas o pior de tudo talvez seja a prepotência que um episódio como esse revela (pela enésima vez).
Haveria muitos outros nomes capacitados para presidir o BNDES. Na verdade, muitos outros nomes infinitamente mais capacitados do que Aloizio Mercadante. Mesmo assim, quem está assumindo o poder em Brasília resolveu impor sua vontade. Em vez de simplesmente cumprir a lei, a opção foi desfigurá-la. Para garantir uma única nomeação.
O poder em Brasília aprova a PEC da Gastança e busca maneiras de perpetuar as emendas do relator. São coisas grandes. O poder em Brasília também se ocupa de bagatelas e atropela as regras apenas porque pode fazê-lo. Como neste caso da Lei das Estatais.
Passam-se anos sem que nada aconteça, exceto o acúmulo da indignação. Mas a política – e isso os políticos teimam em ignorar – tem os seus pontos de virada.
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Comentários (10)
Míriam
2022-12-16 22:55:40O Brasil cansa.
Beatriz Pitrez Carpes
2022-12-16 16:37:00Para surpresa de ninguém.
ADRIANO
2022-12-15 18:09:28Anotem: vamos recuar 50 em 4. JK deve estar se revirando no túmulo.
André Januário Martinez
2022-12-15 16:45:51Ah os pintinhos no lixo! Só não conseguimos mais diferenciar os pintos do lixo... "Dormia, a nossa pátria, mãe tão distraída". - Chico Buarque
SÉRGIO SL
2022-12-15 13:57:08Arrombaram a pontapés as portas das Estatais para ter acesso ao caixa. Pode isso Arnaldo? (ou melhor, STF ).
Fabio
2022-12-15 13:48:41Essa lei é um deboche, um escárnio; mas como muitos que a gente viu nos últimos anos. O Lula e o PT deveriam reconhecer que foram pegos com a mão na massa (de dinheiro) e pegar mais leve. Mas não é isso que parece estar acontecendo. A história se reescreve.
Manoel Carlos
2022-12-15 13:48:07Brasília... Cafajestes a serviço da Cleptocracia
C. PAULO
2022-12-15 13:14:32A ditadura do bem já começou. Tudo em defesa da democracia. Tudo em defesa dos pobres. O ódio venceu em nome do amor.
Marcello
2022-12-15 13:06:03Da série: Tranqueiras do Brasil, como destruir um país.
Eduardo
2022-12-15 13:05:19Excelente artigo. Essa mais que centenária indiferença e pouco caso da privilegiatura brasileira com as leis e com os brasileiros, um dia terá resposta. Brasília faz bastante força para um dia se tornar nossa Versailles.