Para que ainda servem os comícios?
Se a missa com a presença de um monarca embasbacava os camponeses no século XIX, o carro de som com um demagogo ainda eletriza os militantes do século XXI. Mas conquista novos eleitores?
Julien Sorel desfila, garboso, entre os cavaleiros que fazem a guarda de um rei estrangeiro em visita à pequena cidade francesa de Verrières. A certa altura, seu cavalo, assustado pelo disparo de um canhão, sai da fileira, mas o jovem retoma facilmente o comando da alimária. Nobres e burgueses provincianos observam Sorel com inveja. Por que, perguntam-se, o prefeito concedeu ao filho de um reles carpinteiro a distinção de participar da recepção a um rei?
Quem desejar saber mais sobre a felicidade e a desgraça do ambicioso Julien Sorel deve buscá-las – se já não o fez – em O Vermelho e o Negro. Cito essa passagem do grande romance de Stendhal apenas para chegar à observação passageira mas muita aguda com que o autor fecha a descrição da missa a que o rei de *** (os asteriscos, presentes no texto original, mantêm em sigilo a identidade do tal monarca) assistiu em Verrières:
“Houve Te Deum, nuvens de incenso, infinitas descargas de mosquetões e de artilharia; os camponeses estavam ébrios de felicidade e de sentimentos pios. Um dia como esse destrói a obra de cem números dos jornais jacobinos.”
Os eventos de O Vermelho e o Negro transcorrem na década de 1820, durante o período da Restauração, no qual a dinastia dos Bourbon ocupou pela última vez o trono da França. Jacobinos e republicanos estavam em baixa, mas seguiam ativos. Seus jornais não tinham como fazer frente, segundo fica sugerido em O Vermelho e o Negro, à pompa de uma missa com incenso, pólvora e um rei devoto. O espetáculo sobrepuja a palavra: essa ideia seguiu ecoando para além do tempo em que a imprensa era a última palavra em tecnologia da comunicação.
Nas últimas décadas do século XX – tempos que já começam a parecer tão remotos quanto a Restauração na França –, ouvia-se falar muito na decadência da palavra escrita. Antes das redes sociais, o inimigo era a televisão. Anunciava-se uma civilização audiovisual que destruiria a galáxia de Gutenberg. Essas profecias tecnológicas às vezes celebravam o admirável mundo novo que estaria nascendo com as telecomunicações – a “aldeia global” preconizada por Marshall McLuhan. Com maior frequência, porém, as projeções de um futuro televisivo ganhavam contornos de fim dos tempos. Umberto Eco, aliás, consagrou o adjetivo “apocalíptico" para caracterizar os críticos mais alarmistas dos meios de comunicação de massa.
Então veio a internet, que de início parecia ter revigorado a palavra escrita. O blog era exaltado como uma forma de transformar o consumidor em produtor: ninguém mais dependeria do aval de uma editora ou de um veículo de imprensa para se converter em escritor, crítico, humorista, poeta. De início, as letras do alfabeto sentiram-se revalorizadas, mas então veio o YouTube (e, mais recentemente, o TikTok). O próprio Umberto Eco converteu-se ao apocalipse ao afirmar que a internet deu voz a “uma legião de imbecis”.
E a política digitalizou-se, com as consequências que se conhecem e sobre as quais não vou me estender. Só acho curioso observar que os memes e as fake news em grupos de WhatsApp ainda não extinguiram uma instituição da democracia analógica: o comício.
Se a missa com a presença de uma cabeça coroada embasbacava os camponeses de Verrières no século XIX, o carro de som com um demagogo ao microfone ainda eletriza os militantes do século XXI. Mas terá força para conquistar novos eleitores? Ninguém se submete ao aperto e ao risco de ter o celular furtado no meio da massa só para tirar dúvidas sobre o que um candidato propõe. Para tanto, é preciso ter no mínimo alguma simpatia prévia por esse candidato. Pois a mensagem que os comícios propagam não vem tanto do palanque, mas do público à frente deles. Comícios existem para demonstrar a força dos números, e por isso guardam sempre uma incômoda ambiguidade: a multidão que ovaciona um político estará convidando o eleitor sem convicções partidárias a se juntar à festa – ou estará tentando intimidá-lo?
Comícios não foram determinantes nas últimas eleições presidenciais no Brasil, cujo vencedor passou boa parte da campanha em leitos de hospital, abatido por um atentado em praça pública. Agora, em busca da reeleição, Jair Bolsonaro aproveitou as celebrações dos 200 anos da independência para fazer comícios eleitorais em Brasília e no Rio de Janeiro. A julgar pelas pesquisas recentes, esses eventos produziram mais ações contra sua candidatura no TSE do que aumento nas intenções de voto em sua chapa.
Lula, de seu lado, discursou recentemente para uma multidão no centro de Curitiba, cidade em que esteve preso. “A cadeia me fez aprender a amar Curitiba”, disse o ex-presidente. E explicou suas razões afetivas: foi na capital paranaense que ele conheceu Janja, sua atual mulher. "Então tenho gratidão por Curitiba, tenho respeito por Curitiba e tenho muito mais carinho pelos homens e mulheres desta cidade e deste Estado que não mediram esforços para ficar 580 dias pedindo a minha liberdade”, acrescentou o candidato. Convenhamos: essa não foi uma declaração de amor a Curitiba, mas sim aos petistas de Curitiba. Toda a conversa sobre respeito e carinho mal consegue encobrir o sentimento que de fato anima a campanha petista: o desejo de desforra.
De preferência, desforra já no primeiro turno. No mesmo comício, o senador Randolfe Rodrigues, em um lance baixo de chantagem eleitoral, mandou um recado para os que pretendem votar em Ciro Gomes ou Simone Tebet no primeiro turno: eles têm o direito de votar assim, mas esse mesmo direito pode lhes ser roubado se o “fascismo" vencer as eleições. Engraçado: nos últimos quatro anos, Lula não moveu sequer seu único mindinho pelo impeachment do suposto fascista, embora houvesse fartas razões para tanto – e agora, de súbito, a vitória petista no primeiro turno converteu-se em nossa única chance de escapar à ditadura.
Bolsonaro anda dizendo – contra todas as evidências, como é de seu costume – que é ele quem vai levar a eleição já no primeiro turno. O presidente reafirmou essa convicção para os apoiadores que conseguiu reunir em Londres, onde foi obter imagens para a campanha – sim, a foto em que ele aparece com um sorriso parvo ao lado do rei Charles III certamente conquistará os 20% do eleitorado que lhe faltam para virar o jogo. Na sóbria cerimônia fúnebre de Elizabeth II, a vulgaridade barulhenta da trupe bolsonarista era um elemento incongruente. Stendhal não teria imaginação para tanto: é como se um jacobino comparecesse à missa em Verrières.
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (10)
Nelson
2022-09-27 15:33:09Atualmente os comícios, ao menos os de Bolsonaro, servem para mostrar que há algo de muito errado com nosso povo ou com os institutos de pesquisas, não necessariamente nesta mesma ordem, ou haverá com o TSE? Que Deus nos ilumine a todos e abraços fraternos em agnósticos e ateus! Namastê!
CARLOS ALBERTO NASCIMENTO
2022-09-27 09:32:14Vermelho, verde e amarelo, qual é a cor do povo?
eRita
2022-09-26 13:21:10interessante cmentaro, acredita-se sim ,amassa humana evoluvel,porem ha um mundo de inteligencia nessa massa, assim nao convencera a uma indole sadia , so nterssa aos espertalhoes que pensam qie sao perfeitos na sua imaginacao. perfeita esplanacao.
Paulo Jacomo Negro
2022-09-26 10:54:22Esperemos a eleição vença a liberdade ética e patriota .
KEDMA
2022-09-26 09:01:12Ótimo artigo Jeronimo.
Eduardo Frederico de Castro Borges
2022-09-26 01:40:30O comício ainda serve para legitimar a parvoíce que é o espetáculo de um candidato equilibrando-se no alto de um carro de som, ou de um palco, desfiando as mais deslavadas mentiras que prometem realizar se forem eleitos. Há honrosas exceções como o que prometeu JK no comício realizado em Jataí-GO, em 1955, onde respondendo a um jovem eleitor (Toniquinho das farmácias) reviveu a promessa de edificar a nova Capital dos brasileiros no Planalto Central. O resto é balela epromessas vãs
Nyco
2022-09-26 00:23:58Esse Gerônimo gayúcho parece que só vive chapado.
Marcello
2022-09-25 20:24:11O que JB fez, no que era para ser a comemoração pelos 200 anos de independência do Brasil, e no funeral de rainha Elizabeth, são penas alguns exemplos do quão desqualificado para o cargo, e desprovido de qualidades morais, é o ocupante do cargo máximo da república brasileira.
Ivan
2022-09-25 19:23:48Jerônimo , temo que seu texto. assim como eram os de Sabino, repleto de citações e referências históricas e literárias esteja acima da capacidade cognitiva de alguns leitores. Quanto a comícios, nessa era de internet, servem apenas como ritos de comunhão para os fiéis dos respectivos ídolos e de cenas para propaganda política. Não mudam um voto sequer.
Odete6
2022-09-25 17:51:01Os Curitibanos devem estar é muitíssimo ofendidos com essas.... """referência""" e """deferência""".... partindo de um marginal!!! Cruzes!!!! Mas eles têm um contraponto espetacularmente concreto e motivos pra lá de elevados para se orgulharem: o 🌞🇧🇷🇧🇷🇧🇷🇧🇷🌞DR. SÉRGIO FERNANDO MORO 🌞🇧🇷🇧🇷🇧🇷🇧🇷🌞, o CIDADÃO BRASILEIRO que colocou esse bandido militante na cadeia!!!!