Os ministros do STF não leram Machado de Assis
Em um dos livros mais marcantes de minha pré-adolescência – e que minha memória de pré-velhice faz pensar ser Quincas Borba – a certa altura, o narrador afirma: que abismo há entre o espírito e o coração, entre intenção e gesto. Guardei a frase como um ensinamento que Machado de Assis por camaradagem me ofereceu...
Em um dos livros mais marcantes de minha pré-adolescência – e que minha memória de pré-velhice faz pensar ser Quincas Borba – a certa altura, o narrador afirma: que abismo há entre o espírito e o coração, entre intenção e gesto. Guardei a frase como um ensinamento que Machado de Assis por camaradagem me ofereceu em troca de ter encarado ainda menino sua obra. Entre coração e espírito, entre intenção e gesto há, de fato, abismos. E se engana quem, na tentativa de entender o mundo, dedica seu olhar às coisas, e não à tensão e ao abismo existentes entre elas.
Faço essa introdução pretensamente literária primeiro, porque estou ficando velho – entro naquela fase da vida em que nos permitimos divagar e as pessoas interpretam sempre como se fosse algo sábio – e segundo, porque observar o mundo, sobremaneira o do Direito, a partir da Literatura, é realmente algo sábio, afinal tanto o Direito quanto a Literatura reinventam o mundo para entendê-lo melhor.
No entanto, talvez por falta de termos mais Literatura no Brasil, ficou quase exclusivamente para o Direito a tarefa de fabular os mundos mais absurdos. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem sido sobrecarregado com essa função e tem se saído um proeminente autor de fantasiosas decisões autoritárias, advindas de inquéritos políticos que não se escoram em lei alguma, justificando-se apenas na defesa da democracia.
Na semana passada, escrevi a respeito da busca e apreensão determinada pelo ministro Moraes a empresários bolsonaristas acusados de pretenderem dar um golpe de Estado. No artigo, afirmei que a medida era equivocada, que as manifestações golpistas em grupos de WhatsApp eram uma baboseira permitida pela liberdade de expressão e que os empresários eram tão perigosos quanto a minha avó acamada. Muitos leitores disseram: “aguardemos, não se precipite”. Obviamente, levantado o sigilo das investigações, ficou demonstrado que não havia nada que motivasse a medida de força.
Na última quinta-feira, a imprensa noticiou amplamente que Moraes, na função de presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), criou com a Polícia Militar um grupo de trabalho voltado às eleições, atribuindo-se prerrogativas tão amplas quanto duvidosas. Como muito bem lembrado por Claudio Dantas, em ótimo artigo publicado sobre o tema, não causará surpresa se Moraes mantiver tudo o que for realizado pelo grupo em sigilo, fora do alcance da sociedade e do Ministério Público, assim como tem feito com seus inquéritos políticos, dentre os quais o das fake news.
O que afinal querem o STF e seus ministros? Preservar a democracia a qualquer preço, na força bruta? Nesse sentido, certeiro o artigo da semana passada de William Waack, observando que criticar o STF deixou de ser coisa de bolsonaristas ou de pessoas pouco afeitas à democracia. A Corte, na verdade, tem conseguido chamar para si a crítica de todos aqueles que possuem bom senso.
Não vale tudo em nome da democracia porque a democracia não é um vale-tudo. Não é conciliável a intenção democrática com o gesto autoritário. Machado ensinou isso ao menino que fui e ao homem que sou. Poderia muito bem também ter ensinado a nossos fabulosos ministros.
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Comentários (10)
Ronalde Segabinazzi
2022-09-05 10:53:29André, quanto maior o ataque às instituições democráticas praticadas pelo bando bolsonarista na atual fase, qualquer medida de proteção aos mesmos ainda é pouco por parte do STF. "O preço da liberdade é a eterna vigilância".
Pronto falei !
2022-09-04 18:14:09Democracia com uma polícia militar? E isso nem é questionado? Existe um gesto mais autoritário que isso?
Walkiria
2022-09-04 13:48:34👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏 Parabéns, Marsiglia! E obrigada por mais essa aula de Direito e Democracia!!! Obrigada, Crusoé e O Antagonista por nos proporcionar leituras como essa, que deveriam ser matéria obrigatória nas escolas! Grande abraço.
Maria Terezinha Espinosa De Oliveira
2022-09-04 12:46:07👏👏👏👏👏👏
Eduardo
2022-09-04 10:27:12Meu caro André, seu artigo peca em um fundamento: Democracia. Não existe democracia no Brasil. Só falta a mídia, por medo (e esta é a causa de mais e mais não rejeitarem o STF,abertamente) tentando não ferir os senhores supremacistas q estão reinventand uma "coisa" q, por acobertamento conivente, chamam de democracia. Como o tal do garantismo (alemão? hitheriano?) q solta bandidos a três por dois, de forma desigual (para os poderosos o tal garantismo, para os outros a justiça), injusta.
Juliana
2022-09-04 09:52:21Achei super legal seu artigo, André, mas o q me impressionou, mesmo, foi vc ter começado a ler Machado de Assis na pré adolescência! Eu gosto muito e, ainda hj, rebolo pra entender 😬😜...
Odete6
2022-09-04 03:18:39Que ótima abordagem, Dr. ANDRÉ MARSIGLIA SANTOS! Obrigada por nos proporcionar esse excelente texto.
Odete6
2022-09-04 02:10:46As 3 funções do Estado - legislativa, executiva e judiciária entrelaçam-se, fato constitucionalmente previsto. Entretanto, essa realidade é em geral interpretada pelos seus representantes, não como entrelaçamento mas, como uma disputa de sobreposição de uma sobre as demais, o que é um erro extremamente grave, tanto mais grave por ter como motivação interesses pessoais, desordenando assim o desempenho de todos em seus exercícios.
Davidson
2022-09-04 01:42:12👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
José Roberto Rezende Fully
2022-09-03 22:51:06Gostei muito do artigo do advogado MARSIGLIA mostrando os absurdos perpetrados por alguns ministros da nossa Suprema Corte. Com certeza todos ou quase todos os ministros da citada corte leram QUINCAS BORBA e os outros livros do VELHO BRUXO! Entretanto, suas excelências ao cometerem disparates jurídicos mês a mês, estão pouco preocupados com as finas ironias machadianas! Eles estão acima do bem e do mal e assim sentem -se infalíveis ao contrário dos pobres mortais por eles governados!