Os anjos maus da nossa natureza
O Brasil se tornou um país saturado de emoções ruins. Uma metade da nação observa a outra com raiva e ressentimento. Desprezamos o nosso vizinho, quando ele não nos causa pura e simples aversão. Somos um país indiferente, onde é possível que milhares de pessoas fiquem entregues à própria sorte, para morrer de malária e...

O Brasil se tornou um país saturado de emoções ruins. Uma metade da nação observa a outra com raiva e ressentimento. Desprezamos o nosso vizinho, quando ele não nos causa pura e simples aversão. Somos um país indiferente, onde é possível que milhares de pessoas fiquem entregues à própria sorte, para morrer de malária e desnutrição, como os yanomamis de Roraima.
Vi as imagens de crianças indígenas reduzidas a pele e osso enquanto me recuperava de uma cirurgia ortopédica, daquelas que deixam você dependente de ajuda para quase tudo. Já conheci médicos e enfermeiros que tratam seus pacientes com displicência. Mas não dessa vez. Todos com quem estive foram invariavelmente cuidadosos e gentis.
Não sei se eles agem assim em todas as circunstâncias do seu dia a dia. Talvez não. Mas foi assim que se comportaram comigo, o que me fez pensar que o cuidado para com estranhos é, no mínimo, um hábito que se pode cultivar. Fiquei imaginando se isso só vale para ambientes específicos como um hospital, ou se esse "hábito da empatia" pode também ser projetado na vida pública de um país.
Um amigo sugeriu que eu lesse o livro Political Emotions (Emoções Políticas), da filósofa americana Martha Nussbaum. As emoções são um tema recorrente de sua obra. Nesse livro, de 2013, ela trata das emoções voltadas "à nação, seus objetivos, suas instituições e líderes, sua geografia e seus cidadãos, vistos como habitantes de um espaço público comum". O livro é realmente muito bom, mas não vou tentar resenhá-lo aqui, apenas destacar algumas de seus pontos centrais.
É bem conhecida a ideia que populistas usam as emoções para conquistar e preservar o poder. Segundo Nussbaum, isso não significa que emoções políticas sejam apenas ferramentas de manipulação, destinada a produzir adoração por um líder e hostilidade contra seus adversários.
Nussbaum sustenta que toda ordem política, boa ou má, depende de emoções para garantir a estabilidade de suas instituições ao longo do tempo, bem como mobilizar energia para tarefas que demandam sacrifícios. A questão, portanto, é delinear o que ela chama de "psicologia de uma sociedade decente" – uma sociedade que acostuma seus cidadãos a enxergar nos outros o mesmo valor que atribuem a si mesmos ("essa é uma das conquistas mais difíceis e frágeis da humanidade", diz a autora).
Nussbaum discorre sobre o papel da educação e da cultura – artes, símbolos, narrativas, memórias – no despertar das emoções que dão unidade e propósito a um país.
Um dos aspectos mais surpreendentes de seu livro, pelo menos para mim, é o peso que ela atribui ao patriotismo na educação emocional dos cidadãos. Como disse o inglês James Boswell, ainda no século 18, o patriotismo tende a ser "o último refúgio dos canalhas". O amor a uma pátria abstrata é absolutamente compatível com o desdém e até mesmo a violência contra aqueles cidadãos que são vistos como indignos.
Mais uma vez, no entanto, Nussbaum argumenta que deixar a ideia de pátria entregue aos que abusam dela é um erro. Ela mostra que essa ideia permite às pessoas "passar de simpatias estreitas para outras mais expansivas". "Ao amar sua nação, as pessoas podem, se tudo for bem, abraçar princípios políticos gerais", diz a autora.
A retórica dos políticos ocupa um papel importante na reflexão de Nussbaum. Ela analisa discursos de líderes como Abraham Lincoln, que ocupou a presidência dos Estados Unidos durante a sangrenta Guerra Civil, em meados do século 19; e Jawaharlal Nehru, que participou das lutas de Gandhi e foi o primeiro a governar a Índia depois da independência, em 1947. Ambos procuraram despertar as emoções necessárias para a construção de sociedades decentes.
E o Brasil? O Brasil é um país saturado de emoções ruins e nossos líderes não se mostram aptos a transformar essa situação. Lula e Bolsonaro são dois mestres na mobilização política das emoções, mas usam essa habilidade, sobretudo, para dividir o país entre bons e maus. Sim, as ideias de solidariedade e compaixão estão presentes na retórica de Lula – e também, é preciso dizer, nas ações de seu governo para os yanomami. Mas elas surgem em contraponto permanente com a intolerância em relação àqueles que pensam diferente.
O PT jamais soube usar a ideia de pátria, talvez porque resuma a história brasileira a "500 anos de exploração": um longo período de tempo do qual quase nada se salva, além dos períodos em que o partido esteve no poder. Bolsonaro, por outro lado, apoiou-se magistralmente no sentimento patriótico. Infelizmente, a pátria que ele defendia era aquela do regime militar, sempre pronta a exilar e liquidar os descontentes.
Como mostram os enfermeiros que me atenderam e o livro de Martha Nussbaum, é possível cultivar as emoções que conduzem a um país mais decente e mais voltado ao cuidado dos seus cidadãos. Falta, no entanto, um ambiente político capaz de despertar aquilo que Abraham Lincoln chamou, em um de seus discursos mais famosos, "os anjos bons de nossa natureza".
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Comentários (10)
Renata
2023-02-13 17:13:36Falta empatia e tb principalmente educação.
Fernando Antonio Freire De Andrade
2023-02-13 15:53:21Pelo texto nos faz sentir se tratar se um ótimo trabalho compensando a leitura integral, afinal não temos "bons" mas simplesmente "Maus governos".
ROMEU
2023-02-13 11:11:01Gostei do texto Graieb! Boa colocação no tempo e no espaço. O que mais me entristece nos discursos e nos métodos bolsolulistas é o uso indevido da mídia para incitar o ódio, tipo "nós contra eles". Para essa tarefa comumente são utilizados os terríveis recursos das fake news, ancorados nas facilidades do anonimato que a Internet propicia. Lamentável! Tudo poderia ser muito melhor para o nosso país se os canais de comunicação fossem voltados para o fortalecimento das pessoas e suas instituições.
DEMETRIO ZACHARIADIS
2023-02-13 10:44:53Para a esquerda lulista a noção de pátria é apenas mais uma alienação da classe dominante burguesa que deve ser substituída pela revolução proletária universal. A "integração bolivariana da américa latina", que se pretende atingir neste período ditatorial do "lula3" seria o 1o passo, seguido pela integração americana total etc. São esses delírios que os "estrategistas" que estão por trás dos que "tumaram u pudê" alimentam nas suas mentes depravadas.
CARLOS ALBERTO PORTO
2023-02-13 10:39:43Faltam também políticos competentes, HONESTOS e de boa reputação.
Ricardo
2023-02-13 10:17:27Só podia ser texto do graieb.
Amaury G Feitosa
2023-02-13 09:39:49A matéria diz o óbvio mas não mostra a realidade ... metade do país tem consciência do mal perpetrado à nação em séculos mas não tem opção racional de saída e a OUTRA METADE jaz em ignorância e fanatismo sob ódio instigado por uma quadrilha a quem tudo lhe perdoam e de rabos arriados se submetem à criminosa manipulação de toda sorte inclusive de parte da imprensa cúmplice e tudo por migalhas.
Albino
2023-02-13 08:52:40Excelente!
Sillvia2
2023-02-12 23:22:29Triste constatar que o povo brasileiro participa do espetáculo do circo mambembe da imprensa mal caráter como palhaços 🤡 no picadeiro…
Eduardo
2023-02-12 16:00:37Primeiro: o bolsoptismo é (e continuará tendo) esse protagonismo de filme de terror classe c graças aa midia nacional, que alimentando o perfil inculto do povo oferece ao povo esse circo. Todo dia e toda a hora. Segundo: seu artigo começa com o traço errado do médico “bonzinho”, solidário e sensivel, que circulou no seu hospital. Talvez pra’ pousar nas fotos com “indiozinhos” esfomeados, cadavéricos. Como sempre são, né? Estão “sendo salvos” pois tornaram-se excelente produto de mídia