O rock morreu? Se deus quiser, sim
A sensação é parecida com chegar na festa de aniversário de um desconhecido e apagar um cigarro no bolo — mas, em pleno dia mundial do rock, a intenção é bem essa: lembrar que a pergunta mais clichê da música tem sim uma resposta definitiva. Sim, o rock morreu. Há décadas ele não responde ao...
A sensação é parecida com chegar na festa de aniversário de um desconhecido e apagar um cigarro no bolo — mas, em pleno dia mundial do rock, a intenção é bem essa: lembrar que a pergunta mais clichê da música tem sim uma resposta definitiva. Sim, o rock morreu. Há décadas ele não responde ao que originalmente servia. E...bem, tá tudo bem.
A foto que ilustra este artigo — de felizes casais dançando Charleston há exatos 100 anos — poderia ser o memento mori mais cabível para o fã de rock: com uma música altamente engessada e pouco criativa há décadas, é de se imaginar que os fãs de rock fiquem tão datados quanto estes dançarinos em pouco tempo. Sem muito de novo o que mostrar, sua importância vai ficar relegada aos corredores da Galeria do Rock ou então a uma fase na Dança dos Famosos.
Até os anos 70 — quando o gênero viveu seu auge — a figura do roqueiro era, por si só, uma forma de contestação e da construção de algo novo. Filhos dos sobreviventes do pós-guerra, inundados de bem-estar social e novas tecnologias, renegavam a moralidade de pais assombrados por Holocausto e bomba atômica para imaginar novas utopias. Métodos contraceptivos trouxeram o sexo para o campo do prazer. Os aviões que sobraram da guerra agora levavam jovens da Europa para Índia, que voltaram com novas palavras e religiões no vocabulário. Na casa de todos agora há um microondas, uma TV, e um saco de pipocas. Em poucos anos, abrimos a terra como um envelope, e passamos a olhar para fora da carta.
Narcísicas ou coletivas; minimalistas ou colossais; irreverentes ou mesmo religiosas — todas estas utopias acabam cruzadas em algum momento por solos de guitarra e batidas 4/4. As centenas de milhares de fãs unidos para ver Jimi Hendrix tocar o hino americano em Woodstock em 1969, em protesto à guerra do Vietnã, sugerem um mundo radicalmente diferente do Pink Floyd em um show para ninguém nas ruínas de Pompeia dois anos depois. Ambos são rock e são momentos definidores da cultura no século XX, por mais que existam em oposição um ao outro.
O raiar dos anos 90 — quando as forças liberais do Ocidente vencem o comunismo soviético e Francis Fukuyama decreta o "Fim da História"— traz a última onda de real utopia do rock: o grunge, com suas guitarras distorcidas, uma visão niilista do mundo e um primeiro sinal de desconforto entre ser uma figura contestadora com os bolsos lotados de dinheiro.
Kurt Cobain não resiste a esse dilema em 1994. Nesse instante, frente ao resultado de décadas de contestação cada vez mais insustentável, o rock parece dar meia volta e se revisitar — cada onda mais ineficaz que a anterior: em um primeiro momento, uma busca desesperada por quem reponha o Nirvana, a última galinha dos ovos de ouro (e aí aparecem Foo Fighters, Creed, etc.); há tentativas de ressuscitar o punk e o metal (hardcore) e o rock gótico (emo). A última vertente sólida de rock, o chamado indie rock, tem fãs na casa dos 40 anos.
E assim, geram-se cenas constrangedoras: quando, em 2014, os fãs do Metallica foram convidados a escolher que músicas gostariam de ouvir em um show no estádio do Morumbi. Escolheram as mesmas que a banda sempre tocou. A utopia de sempre tá ótima e vai muito bem, obrigado.
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A própria data de aniversário é um lembrete: o 13 de julho foi batizado como o dia do rock porque, em 1985, o cantor Bob Geldof realizou o Live Aid, o padrão-ouro dos shows de rock, como uma ação beneficente contra a fome na Etiópia. Durante várias horas, dois estádios cheios, um em Londres e outro na Filadélfia, presenciaram o maior desfile de bandas jamais visto. O Queen fez sua performance mais relembrada em 20 minutos; um acabado Eric Clapton arrasou a plateia; o U2 usou do palco para seu cartão de visitas na América; Dire Straits, David Bowie e outros nomes fora do rock, como Madonna, deram o ar da graça.
O show foi reeditado em 2005 como forma de pressão pelo perdão da dívida dos países pobres — mas ali, o destaque era menos o ineditismo da coisa: no palco principal em Londres, os destaques foram The Who, o Pink Floyd (em sua última atuação conjunta) e Paul McCartney. Entre os três, a música mais nova era Comfortably Numb, composta por Roger Waters em 1979.
Estamos às vésperas do quadragésimo dia do rock. A fome no mundo não diminuiu e problemas sociais e geopoliticos existem aos montes. Um novo Live Aid teria espaço de sobra para encher estádios. Mas, para chamar a atenção a todos estes problemas, vamos tocar as mesmas músicas? Se valer dos mesmos hinos de nossos pais e avós?
Nem o hip hop, que substituiu o rock como o símbolo de contestação de uma geração, está em sua plena forma hoje. O funk, apesar de nichado ao Brasil, consegue aparecer com alguma força política capaz de gerar ódio e admiração em iguais medidas — tal como o rock na sua gênese. O sucessor ainda segue em aberto.
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Claro, o rock não "morreu". Ainda se toca rock. Ainda se vende camisa de banda na Galeria do Rock e, ao menos em São Paulo, duas estações ainda disputam o ouvido do ouvinte do gênero. E, principalmente, ainda se cria rock. Neil Young ainda faz álbuns incríveis. St. Vincent é uma das referências na guitarra desta geração, como citamos algumas colunas atrás.
Mas são exceções da exceção. O cenário brasileiro está congestionado com o revival dos anos 2000, onde bandas como a Fresno, NXZero e Forfun podem fazer o que jamais sonharam — cobrar preço de show internacional para tocar as músicas de sempre a um estádio lotado de saudosistas. Bandas realmente inovadoras, como são os potiguares do Far From Alaska, não romperam a bolha apesar dos anos de carreira.
Lá fora, a situação é ainda mais cômica: os maiores destaques da última década são verdadeiros pastiches desenhados de acordo com as necessidades fas plataformas de streaming. Quando se notou que o Led Zeppelin ainda atraía ouvintes, casualmente surgiu, dos confins dos EUA, o Greta Van Fleet: a sensação de ouvi-los é a mesma de comprar um Jimmy Page e um Robert Plant na Galeria Pagé.
Sobre os italianos do Måneskin, é até difícil de comentar. Para um país que criou uma música de rock simplesmente balbuciando o que os americanos pareciam cantar, é difícil dizer se esse quarteto hipersexualizado, altamente instagramável e vivendo da terceira geração de uma música da década de 1960, está de fato cantando — ou então tirando com a minha cara e a de todo mundo.
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Por um acaso, nessa semana, um dos poucos artistas a fazer rock realmente moderno deu mostras do que será seu novo álbum. Trata-se de Michael Kiwanuka, um guitarrista britânico que lançou "The Floating Parade".
Kiwanuka usa fartamente do arcabouço do rock para fazer uma música de fato mais sensível e menos cínica que aquelas a que chamamos de "clássicos". Uma das mais conhecidas, "Cold Little Heart", evoca as longas composições do Pink Floyd, mas com uma roupagem e letra bem mais pessoais. É um dos solos de guitarra mais bonitos nos últimos 10 anos. Talvez ele nos faça ter esperança.
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Comentários (3)
beatriz pitrez
2024-07-14 21:00:01Andei por SP em junho, ignorava a quantidade de fãs clubes de rock. Fiquei impressionada, e é por todo o país. Então, acredito que o rock não morreu!
Thomas
2024-07-14 01:30:26Quanto a fome, em 2000 eram 1,7 bilhões abaixo da linha da pobreza. Agora são 700 milhões. Uma evolução sensacional para 29 anos. Quanto ao rock, Led Zeppelin, Deep Purple, Hendrix não estão mais aí como nos anos 70. Mas há muita coisa nova, muito rock de excelente qualidade atualmente. O autor do texto precisa se atualizar, superar Woodstock…mas o tempo irá dizer se o rock continua ou não. Na minha opinião o Rock está tão forte como sempre esteve.
MARCOS ANTONIO RAINHO GOMES DA COSTA
2024-07-13 18:01:11SIM, INELIZMENTE O ROCK MORREU E HOJE SÓ EXISTEM BARULHOS E GEMIDOS. TUDO BOSTA.