O mal que Bolsonaro fez ao liberalismo
Eu vi a esquerda e a direita jogarem dados sobre o destino do Brasil. Não, não foi nada disso, me perdi no exagero dramático. O que eu vi de fato foi uma aposta em mesa de bar, uma simples brincadeira. E nem é com essa história que o texto deve começar. Primeiro, preciso contar da...
Eu vi a esquerda e a direita jogarem dados sobre o destino do Brasil.
Não, não foi nada disso, me perdi no exagero dramático. O que eu vi de fato foi uma aposta em mesa de bar, uma simples brincadeira. E nem é com essa história que o texto deve começar.
Primeiro, preciso contar da ocasião em que fui convidado a trabalhar em um site bolsonarista.
Foi no final de 2019. Poucos meses antes, eu fora demitido da revista onde trabalhei por 15 anos. Um jornalista que estava para assumir um novo projeto me convidou para almoçarmos. A novidade era uma revista digital, com site de notícias. Ele seria o diretor de redação. Pensou em mim para o posto de editor.
Já nos conhecíamos havia um tempo, e a conversa fluiu fácil e agradável. Meu companheiro de mesa citou dois nomes do conselho editorial de seu site, veneráveis homens de imprensa que, acreditava ele, teriam o dom de conferir um selo de qualidade ao empreendimento; eu expressei, digamos, certa reticência a esses nomes. De partida, ficou claro que eu não seria a pessoa certa para o cargo.
O site entrou no ar no ano seguinte. Todos os colunistas eram bolsonaristas, todo o noticiário era favorável ao governo.
Em momento algum do nosso aprazível almoço, meu colega disse que o novo veículo seria francamente bolsonarista.
Ele disse que seria um site liberal.
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Com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, um contingente expressivo de políticos, economistas, empresários, jornalistas que se declaram liberais gravitaram insensivelmente para a órbita do governo, e muitos aí permanecem a despeito da instabilidade institucional, do negacionismo sanitário, das ameaças à democracia, do orçamento secreto, dos furos no teto de gastos e dos rombos no céu da razão – a despeito, em suma, de Bolsonaro.
A justificativa costuma ser pragmática: Bolsonaro é ruim, mas não é a esquerda, e com ele as reformas andam. Só que, na conta das reformas e privatizações, o governo de Fernando Henrique Cardoso ainda ganha com folga do desgoverno atual – e sem ter jamais recorrido à gritaria histérica e hidrofóbica que é a marca de Bolsonaro em sua permanência beligerância com o STF, com a imprensa e com Leonardo DiCaprio. De resto, pode-se reconhecer a importância de algumas medidas do governo – só um negacionista da aritmética acreditaria que não era necessário reformar a previdência – sem nem por isso abraçar o pacote bolsonarista completo. A reforma da previdência, afinal, foi aprovada com o apoio do então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que fez mais para conter os descalabros bolsonaristas do que toda a bancada parlamentar da esquerda.
O liberalismo não pode dispensar seus princípios econômicos. Mas a liberdade de mercado não é a única liberdade que importa, nem a principal. Em sentido amplo, liberalismo compreende direitos civis, liberdade religiosa em uma sociedade secular, liberdade de expressão, tolerância à diferença e todo um vasto conjunto de garantias individuais que não se coadunam com o bolsonarismo. Bolsonaro não comunga dessa ideia ampla de liberdade, palavra que ele emprega de forma casuísta: com razão, chia contra os arroubos censórios do TSE, mas esquece que 01, seu filho senador, ainda outro dia tentou, por via judicial, censurar as reportagens do UOL sobre seus vultosos negócios imobiliários.
A liberdade suprema, para o presidente, é aquela que se carrega o coldre. “Povo armado jamais será escravizado” é um de seus bordões. Ele não parece perceber que essa estranha noção de uma democracia sustentada à bala provoca um curto-circuito em seu próprio sistema de valores. Pois se a tal ditadura viesse a ser instalada, em quem o cidadão insurrecto teria de atirar, se não nos agentes do Estado opressor – nos militares e policiais que Bolsonaro tanto exalta?
Quando jogou granadas e deu tiros nos agentes da Polícia Federal que vieram prendê-lo, Roberto Jefferson estava apenas levando o ideário bolsonarista à sua conclusão natural.
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O autoproclamado liberal que engrossa as fileiras bolsonaristas referenda anos de propaganda esquerdista que pintaram o liberalismo como a ideologia da elite que tem nojo de pobre. Em torno dessa caricatura, criou-se até um subgênero jornalístico: a entrevista com a perua sem noção que vota na direita porque a empregada doméstica ficou insolente depois que ganhou carteira de trabalho. Pois o bolsonarismo poupou aos diligentes repórteres o trabalho de buscar essa personagem em clubes exclusivos e restaurantes caros: as caricaturas mais odiosas saíram às ruas, lambendo canos de escopeta e negando marmita ao miserável que declara voto no PT.
Há até uma caricatura à frente do ministério da Economia.
O impagável e indispensável Ruy Goiaba já conferiu a Paulo Guedes o Troféu Caco Antibes, por ele ter dito que estava na hora de acabar com a farra das empregadas domésticas que viajam para a Disney. Vergonha maior é ouvir as contribuições do vetusto Chicago boy à reunião ministerial de maio de 2020, cuja gravação o então ministro do STF Celso de Mello mandou divulgar. Guedes lá pelas tantas sugere que as forças armadas absorvam de 200 mil a um milhão de jovens em uma versão castrense do Programa Jovem Aprendiz. Ele não fala em jovens pobres – e nem precisa falar, pois é óbvio que não submeteria um rapaz bem-nascido à rotina que propõe para os aprendizes de milico. Pela manhã, o aluno começará sua educação com calistenia e OSPB (Organização Social e Política do Brasil, disciplina doutrinária que a ditadura impôs aos currículos escolares). "Faz ginástica, canta o hino, bate continência. De tarde, aprende a ser um cidadão, pô!”, ensinou Guedes, o pedagogo. De quebra, o aprendiz ainda usaria seu tempo “construtivamente”, como “voluntário" na construção de estradas, o que sairia muito barato para o governo: "nós vamos pegar um bilhão, dois bilhões e contratar um milhão de jovens”.
Os quartéis seriam transformados em reformatórios juvenis para garotos que cometeram o crime de não serem ricos.
Paulo Guedes não existe. Ele só pode ser personagem de uma fanfic esquerdista sobre a perversidade do pensamento liberal.
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Afinal chego à noite em que testemunhei o jogo de dados sobre os rumos do país. Mas ninguém lançou dados de verdade: houve apenas uma aposta entre um homem de esquerda e outro de direita sobre o futuro da economia brasileira.
Foi no final de julho, em uma mesa de bar reunindo jornalistas, professores universitários, psicanalistas, economistas. Naquela altura, a eleição de Lula parecia quase certa, e ninguém esperava o resultado apertado que as pesquisas projetam enquanto escrevo. A aposta foi entre o homem que armou aquele grande encontro, um acadêmico da área de Humanas, e um conhecido economista que se definiu, jocosamente, como um faria limer. O professor previa que o terceiro governo Lula repetiria a licenciosidade fiscal que conduziu o país à recessão e a presidente petista ao impeachment; o economista especulava que um novo governo petista respeitaria o tripé macroeconômico. Para fulanizar o debate: o primeiro apostava que o ministro da Fazenda de Lula faria a linha Guido Mantega; o segundo, que ele seria mais parecido com Henrique Meirelles. O valor apostado foi módico: uma caixa de cerveja. No melhor espírito de fair play, decidiu-se que o árbitro da aposta seria o próprio economista, que afinal entende do riscado.
O leitor já adivinha que o professor de Humanas é o homem de esquerda, e o economista é o da direita liberal. Isso é bem previsível. Não tão típica é a concordância fundamental entre os dois. Pois a aposta não se deu sobre o que eles desejavam que acontecesse, mas sobre o que eles achavam que aconteceria. O acadêmico de Humanas entendia perfeitamente que o voluntarismo no trato das contas públicas leva ao desastre, coisa que muito economista brasileiro resiste em admitir. Uma lição básica do liberalismo econômico era consensual na aposta: ao contrário do que propunha Dilma Rousseff, gasto público não é vida.
Havia um consenso maior naquela mesa de boteco: a civilidade. Declarava-se voto neste ou naquele candidato sem constrangimento, e o voto em branco ali não era sinônimo de desprezo ou desinteresse pela democracia. Quase todos os convivas demonstravam desilusão com as opções políticas que teriam de fazer dali a pouco mais de dois meses, e alguém até disse que desejava ver Lula eleito já no primeiro turno – pois assim não seria obrigado a votar nele. Mas todos riam, bebiam, se divertiam. Nem tudo é política, política não é tudo.
Os dois integrantes mais jovens da mesa – teriam em torno de 25 anos, ou pouco mais – entabularam uma conversa de alto nível com o economista apostador. Falaram de economia, claro, e também de Nietzsche, e de alguma coisa mais que não entendi então ou não lembro agora. Os jovens eram membros do Livres, grupo liberal que não se enredou no bolsonarismo (aliás, Crusoé publicou há algumas semanas um bom artigo do cientista político Magno Karl, diretor-executivo do Livres)
Quando o bar fechou, o economista liberal, que morava perto, generosamente ofereceu seu apartamento para dar seguimento à conversa – e para beber mais. Acompanhei o grupo até parte do caminho, mas então tomei o rumo da minha própria casa. Era tarde e no dia seguinte eu teria de escrever meu texto semanal para esta coluna.
Sempre há um texto para escrever quando se é jornalista free lancer. Será que eu teria uma vida mais fácil como editor de um site bolsonarista?
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Escrevo dias antes do segundo turno. Quero crer que o tema permanecerá válido, qualquer que seja o vencedor.
Meu temperamento soturno pede que eu encerre decretando a morte do liberalismo no Brasil, seja lá qual for o resultado. Mas quero retomar o espírito leve da noite em que testemunhei a aposta, e não desejo desanimar os jovens militantes do Livres, que talvez me leiam. Termino então afirmando que é possível que as grandes ideias tenham vida longa, enquanto os homens públicos que as atacam e que as deturpam acabam soterrados pela história. É possível até que o Brasil ainda venha a ser um país liberal, no sentido amplo e generoso do termo.
(Mas eu não apostaria nisso.)
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Comentários (10)
ROBERTO GARRIDO RUSSO
2022-11-04 15:39:15Excelente artigo.
MAXBOM
2022-11-01 10:11:45De qualquer maneira o capitalismo máximo como regime econômico tem que ser tentado. Um pedreiro ganha R$ 20 mil mensais nos EUA e R$ 500,00 em Cuba; não tem conversa, pois o pobre vive bem em economia de mercado e não na ilha museu esquerdalha. Não se esqueçam que 2 anos de pandemia retirou qualquer esperança do governo Bolsonaro; só militante do MST não sabe disso. A preocupação com a reeleição foi importante também; e não tem jeito, o povão só pode entender propaganda e nunca a essência.
MARIO CAVALCANTI GAMEIRO DE MOURA
2022-11-01 07:38:26Jerônimo... concordo contigo em GÊNERO, NÚMERO e GRAU. Porém meu voto foi no menos ruim e no que seria menos danoso ao meu País....em Bolsonaro, infelizmente. Lula nesse momento representa um CINISMO, UMA ARROGÂNCIA e um REVANCHISMO quem não será bom pro Brasil. Além claro....de Lula ser Lula....com ideias e concepções que foram sepultadas pela história mundo a fora.
Cláudia
2022-11-01 01:07:50muito bom
Márcia Eliza Vanzo
2022-10-31 18:34:03Muito fácil falar discorrendo sobre os problemas, falta apresentar soluções..
ROSA
2022-10-31 12:44:50SR JERÔNIMO O SR. DIZ QUE BOLSONARO FEZ MUITO MAL AO LIBERALISMO !! JÁ O ÍDOLO DE VOCÊS, SR LULA, FEZ MUITO BEM AO PAÍS COM A SUA CIA LTDA . DURANTE OS 14 ANOS DE GOVERNO, FORAM ÓTIMOS NÃO É, AGORA VOCÊS TERÃO A GRANDE LEGRIA DE VER A COMPLEMENTAÇÃO DA GRANDE OBRA DESSES GENIOS, ESTÃO TODOS DE VOLTA, MAIS UNIDOS E SEDENTOS QUE NUNCA PRA TERMINAR A GRANDE OBRA !! BRAVO, BRAVO 👏 👏 VOCÊS DO GRANDE SISTEMA PODEROSO CONSEGUIRAM !!
Maria
2022-10-31 12:40:35Gostei mto: liberalismo no sentido amplo e generoso do termo!
ROSA
2022-10-31 12:01:11SR. JERONIMO O SR. É UM PETISTA DE CARTEITINHA DEVE TER CAMISA VERMELGA POR BAIXO DA SUA, ESTÁ SUPER FELIZ NÉ, REALMENTE CRUSOÉ ESTÁ FICANDO QUASE TODA PETISTA !!
luiz antonio-rj
2022-10-31 11:39:23Partimos da premissa errada. Bolsonaro não é de direita,não é liberal nem nunca foi.Sempre foi patrimonialista,deixou que os filhos vivessem de mesadas como funcionários fantasmas,criou uma franquia familiar e ensinou-os como sobreviver e usufruir nas mamatas do legislativo.Seu grande legado foi definir para depois destruir o que seria uma direita democrática e liberal.Pelo menos ficou claro para o Brasil que nem todo mundo é psdb e pt. Acho até que o seu desejo + íntimo seria que o pt voltasse
Elvio Bernardes
2022-10-31 08:37:40Paulo Guedes deu Graças à Deus. Vai largar tudo isso. Já vai tarde