O golpe foi patético, mas a democracia não passa bem
A Horda Canarinha passou debaixo da minha janela. Eu estava no sofá em frente à TV, procrastinando a entrega do texto da semana passada, quando as buzinas histéricas vieram perturbar a indolência do meu home office. Uma carreata bolsonarista percorria a avenida. Cartazes no capô dos veículos diziam não ao comunismo; das calçadas e apartamentos...
A Horda Canarinha passou debaixo da minha janela.
Eu estava no sofá em frente à TV, procrastinando a entrega do texto da semana passada, quando as buzinas histéricas vieram perturbar a indolência do meu home office. Uma carreata bolsonarista percorria a avenida. Cartazes no capô dos veículos diziam não ao comunismo; das calçadas e apartamentos em volta, pessoas vaiavam o fascismo. Era como uma versão tropical da República de Weimar, só que sem cabarés.
Duas motos da Polícia Militar de São Paulo acompanhavam o cortejo golpista. Os policiais desceram das motos para barrar o trânsito de uma rua lateral, facilitando a passagem da carreata.
No dia seguinte, um vídeo no UOL mostrou um participante da carreata descendo do carro para dar um tapa no rosto de uma mulher na calçada. Testemunhas ouvidas pela reportagem dizem que havia policiais por perto, e que eles deixaram o agressor retornar ao veículo.
Isso se deu na quinta-feira, dia 6. No domingo 8, a Polícia Militar de Brasília escoltou a Horda Canarinha até a Praça dos Três Poderes.
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Jair Bolsonaro não promulgou seu AI-5, mas conquistou o guarda da esquina.
Será um dos legados mais nefastos do seu governo: a radicalização difusa das forças de segurança. Bolsonaro começou sua carreira política defendendo no Congresso as reivindicações corporativas de policiais e militares. Como presidente, seguiu adulando essas categorias. Mandou seu ministro da Justiça levar mensagens de paz para a PM amotinada no Ceará e passou a mão na cabeça dos policiais rodoviários que torturaram e mataram Genivaldo de Jesus Santos com gás lacrimogêneo (“Eles queriam matar? Acho que não. Erraram? Erraram. Acontece, lamentavelmente”, disse na época). Sempre encontrou tempo na agenda para comparecer a formaturas de academias de polícia. Os formandos tiravam selfies com o presidente e ouviam dele a promessa de que teriam licença para matar (o termo técnico é “excludente de ilicitude”). A TV Brasil transmitia esses eventos.
Como resultado, vimos em Brasília policiais que confraternizam alegremente com terroristas, bebendo água de coco enquanto Congresso, Planalto (foto) e STF eram vandalizados.
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(Parênteses para uma digressão histórica. Embora bem conhecida e muito repetida, a história do AI-5 e do guarda da esquina, a que aludi acima, parece ser apócrifa. Tal como foi consagrada pelo folclore político nacional, a coisa teria se dado mais ou menos assim: ao se opor à decretação do AI-5, Pedro Aleixo, vice-presidente de Costa e Silva, fez questão de assegurar que não o fazia por desconfiar dos mandatários do regime. Os generais que governavam o país, dizia ele, fariam uso responsável dos poderes ditatoriais que o novo ato institucional lhes franqueava. O receio de Aleixo era outro: “O que me preocupa é o guarda da esquina”, teria dito.
A reunião ministerial em que se decidiu promulgar o AI-5 foi gravada. O registro mostra que Aleixo de fato levantou objeções, mas nada falou sobre a propensão autoritária do guarda da esquina. Talvez tenha dito isso em outra ocasião.)
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Na noite do ataque aos três poderes, quando anunciou a intervenção federal na segurança de Brasília, Lula chamou os baderneiros de “stalinistas fanáticos”. Por um momento, pensei até que a guerra cultural havia atingido um novo ápice de insanidade: em resposta à direita histriônica que diz que o nazismo é de esquerda, o grão-petista proclama que o stalinismo é de direita! Mas o presidente em seguida se corrigiu: queria dizer “fascistas fanáticos”. E pouco depois cometeu um lapso mais sutil e intrigante.
Foi quando Lula buscou nos tempos da ditadura um referencial para a destruição promovida pela Horda Canarinha: “Nem no auge da chamada luta armada nesse país, nos anos 1970, houve qualquer tentativa de qualquer grupo fazer quebra-quebra na Praça dos Três Poderes”.
Inadvertidamente, um dogma da esquerda brasileira foi quebrado aqui: a ideia de que a guerrilha representou uma reação extremada mas necessária à ditadura, e de que foi o único caminho possível para a juventude progressista lutar por um país melhor. Documentário amado pelos petistas, Democracia em Vertigem reforça essa idealização nas sequências em que a diretora Petra Costa fala de seus pais, militantes de um grupo clandestino. A propaganda eleitoral de Dilma “Coração Valente” Rousseff também recorria ao mesmo timbre heroico quando apresentava sua participação nos grupos COLINA e Var-Palmares.
O lapso aqui não está em uma simples palavra trocada, mas no que a frase deixa implícito. Imagine um comentário sobre o desastre sanitário do governo passado que se encerrasse do seguinte modo: “Nem Trump causou tanto estrago durante a pandemia”. Estará claro que Trump foi danoso, mas que Bolsonaro foi pior, certo? Da mesma forma, ao lembrar que nem a luta armada ousou defecar no plenário do STF e furar o Di Cavalcanti do Planalto, Lula estabeleceu uma diferença de grau, mas não de substância, entre os guerrilheiros e os bolsonaristas radicais. Os dois grupos estão no mesmo polo – o polo da destruição. Duvido que Lula pense assim: eis aí o lapso.
Se a guerrilha nunca atacou Brasília, é porque nunca teve força para tanto. A luta armada não era um movimento popular. Seus integrantes decerto se imaginavam como a ponta de lança do proletariado, a pequena vanguarda que abriria caminho para a revolução. O bolsonarismo, ao contrário, é um fenômeno de massas – que, no entanto, não quer tomar o poder por conta própria: a devastação superlativa do domingo tinha a modesta ambição de pressionar as Forças Armadas a depor o governo recém-empossado. É o que dizia a patética pichação que um idiota fez na cúpula do Senado: “SOS FFAA”.
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Punição exemplar é a promessa que todas as autoridades vêm fazendo. Na quarta-feira, em discurso de agradecimento ao Congresso pela aprovação expedita da intervenção em Brasília, Lula disse que todos os que atacaram a democracia serão processados. Um dia antes, Alexandre de Moraes excedeu-se na retórica policial: disse que não há conversa possível com os extremistas, pois eles não são “civilizados”. Prometeu xilindró para todos e esclareceu que prisão não é “colônia de férias”.
Sou a favor da punição para todos os criminosos, sim. Admito até que a gravidade do que ocorreu em Brasília exija certas medidas excepcionais. Ao mesmo tempo, temo pela tentação que o estado de exceção oferece a quem já vem concentrando poder.
Também me assombra a perspectiva de viver em uma democracia que se afirme não pelo convencimento, mas pela coerção. Ainda não chegamos lá, mas talvez estejamos perto. Uma pesquisa da Atlas Intelligence divulgada esta semana trouxe dados preocupantes: 39,7% dos brasileiros não acreditam que Lula tenha recebido mais votos do que Bolsonaro. A aprovação dos ataques aos três poderes no domingo passado foi relativamente alta: 10,5% acham que a barbárie foi inteiramente justificada, e 27,5% responderam que ela se justifica em parte. O que se faz com esse vasto contingente de brasileiros? Concluímos que eles não são civilizados e portanto devem ser isolados da conversa política?
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Resistência. A palavra, com suas evocações de clandestinidade e bravura, costumava ser própria da esquerda. “Se ameaça minha existência, sou resistência”, dizia uma palavra de ordem "antifascista" da mesma safra que nos deu “ninguém solta a mão de ninguém”.
Pois a direita que depreda prédios públicos também adotou a palavra. Em uma compilação de vídeos de vândalos bolsonaristas feita pelo Estadão, uma mulher muito entusiasmada proclama, sob aplausos das companheiras de verde e amarelo que a cercam: “Nós somos a resistência”.
A resistência não conquistou o poder, mas tomou o noticiário. E isso tem sido ótimo para a imagem do governo. Escrevo este texto na quinta-feira, e nos dias que se passaram desde domingo quase não ouvi gente falando, por exemplo, das amizades milicianas da nova ministra do Turismo. Tampouco se tem questionado as indefinições da área econômica – o mercado até andou mais calmo. A ficção da “frente ampla” corporificou-se na foto do presidente acompanhado de 27 governadores, a caminho do STF depredado.
A democracia brasileira balança em suas bases: o consenso social em torno dela anda fraco. No entanto, por obra da bandidagem bolsonarista, vai se consagrando a ideia de que Lula e o PT estão restaurando a democracia.
Se a democracia brasileira fosse funcional, o governo não estaria enfrentando a “resistência”: estaria lidando com a oposição.
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Comentários (10)
Eduardo Virgílio Nunes Coelho
2023-01-17 15:45:28No que diz respeito à democracia os exemplos recentes não poderiam ser piores: o presidente que sai deixa a marca evidente de apego ao autoritarismo. Por outro lado o que volta traz consigo a marca da corrupção desenfreada, ao mesmo tempo que namora descaradamente com regimes totalitários, anti-democráticos; até financiou!. Enquanto isso a nossa Corte Suprema, guardiã oficial da Constituição, não se cansa de pisoteá-la, condená-la ao lixo, passar por cima dos princípios básicos da Democracia.
Eduardo Virgílio Nunes Coelho
2023-01-17 14:11:21Lembrando Pedro Aleixo; a ditadura poderia ter acabado com ele. Conta a literatura que, antes de ser deposto pelo regime militar (assumiria no lugar de Costa e Silva), foi instado por Israel Pinheiro e José M. Alkimin a vir pra Minas Gerais e aqui tomar posse como Presidente. Não o fez com receio de um banho de sangue. Foi para o Rio a chamado dos generais e ali tirado do cargo. Deu no que deu: fomos brindados com o período Médici, o mais sangrento da ditadura. Menos uma oportunidade ao Brasil.
NESTOR
2023-01-17 11:11:11O país está podre, prestes a cair da árvore. Impossível a Abin não haver informado sobre o risco de invasão ao presidente, ao Min da Defesa, ao Min da Justiça. No mínimo. Fácil prender velhotes, acusar guarda da esquina e outros fracotes. Difícil é identificar os invasores vestidos de preto, os mesmos que queimaram ônibus em Brasília. A verdade é que deve ser difícil a um militar honrado assistir os desmandos de um paranoico do STF e ainda bater continência para bandidos ...a corda vai estourar
Linda Maria Soares Bezerra Sereno
2023-01-16 21:55:08Muito bom!
Rosangela Maria Halfeld Bonicontro Miranda
2023-01-16 19:00:34"Tá dominado, tá tudo dominado" Duvidam???
lcar
2023-01-16 15:28:46Jerônimo não decepciona: texto consistente, ideias claras, linguagem escorreita. Pena que não adivinhou o que me vai na cabeça - o retrato da destruição do 08/01 - lamentável! - não é nada perto do que a lava-jato desvendou - uma terra arrasada pela sanha de pilhagem de agentes que hoje são espectadores, mas que então, como protagonistas produziram destruição ainda maior, não suficientemente ilustrada, mas suficiente para também gerar indignação.
Sônia Adonis Fioravanti
2023-01-16 13:18:24ESSE É O TESULTADO DE UM ANEN CEFALO PSICO PATA NA PRESIDÊNCIA ,assessoradopor RACHIDS e oportunista .sai a tchutchuca entra o quadrilhão
ROMEU
2023-01-16 11:53:57Sim, a democracia brasileira não está bem. Nem bem nos livramos de um golpista patético corremos o risco de alimentar a sanha de ditadores de plantão apoiados pelo mesmo grupo de políticos oportunistas de sempre. Tem muita gente se empodeirando indevidamente às custas das patacoadas de uma considerável massa de manobras. Acorda Brasil!
lcar
2023-01-16 11:51:18Os artigos do Jerônimo são da melhor qualidade. Por ora, por não ter tempo de lê-lo neste momento, o deixei na tela para ler tão logo consiga, sabendo que se trata de algo muito bem pensado e escrito.
Francisco Cianfarani
2023-01-16 11:09:20temos a operação tabajara mais mal feita do universo, poxa é da dar vergonha em dizer que somos um tão incompetentes.