Michelle e os demônios da mediocridade
Já passei da idade para isso, eu sei, mas resolvi dar uma chance a Sandman, da Netflix, série de fantasia baseada em um aclamado gibi (que não li e não lerei porque, bem, já passei da idade). Trata-se de um desconjuntado pot-pourri de mitologias, protagonizado por uma divindade pálida e esquálida que governa o mundo...
Já passei da idade para isso, eu sei, mas resolvi dar uma chance a Sandman, da Netflix, série de fantasia baseada em um aclamado gibi (que não li e não lerei porque, bem, já passei da idade). Trata-se de um desconjuntado pot-pourri de mitologias, protagonizado por uma divindade pálida e esquálida que governa o mundo dos sonhos. Aguentei várias paisagens oníricas em CGI, até minha paciência se esgotar no quarto episódio, quando o herói da série desce aos infernos para duelar com Lúcifer. Ele vence o Diabo com uma só frase: “eu sou a esperança”. Podemos dispensar o Juízo Final, pois o Mal será derrotado com clichês motivacionais dignos de um life coach.
Eu imaginava que as hostes infernais não poderiam sofrer humilhação maior que essa. Mas então Michelle Bolsonaro veio contar que no passado recente demônios assombravam o Palácio do Planalto. Ao que parece, os tinhosos foram expulsos por obra do maridão de Michelle. Jair Bolsonaro e sua Bic ungida dispensaram os serviços de Belzebu e Astarote como se eles fossem meros ministros da Educação.
Michelle revelou esse segredo esotérico durante um culto evangélico em Belo Horizonte – ou, para ser exato, durante um evento de campanha do marido em uma igreja evangélica. "Podem me chamar de fanática, podem me chamar de louca”, disse então, preparando o público para a notícia terrível que viria a seguir (a propósito, eu não a chamaria de louca: Michelle, afinal, não rasga dinheiro – nem cheques). Na mesma levada profética, ela se referiu em seguida à sede do Executivo: “Por muitos anos, por muito tempo, aquele lugar foi consagrado a demônios. Cozinha consagrada a demônios, Planalto consagrado a demônios. E, hoje, consagrado ao Senhor Jesus”.
O antecessor imediato de Bolsonaro no Planalto ganhou certa fama folclórica que o associava ao submundo demoníaco. Em um pronunciamento na Câmara, em 2016, o também folclórico Cabo Daciolo clamava: “Presidente Temer, abandone o satanismo e a maçonaria”. Mas não acredito que Michelle tenha se referido a Temer. Mulher fina – tão fina quanto as duas letras L de seu nome –, a primeira dama não cometeria a indelicadeza de ofender o homem cujo talento de missivista conseguiu debelar (por um tempo, ao menos) a crise institucional entre o atual presidente e o STF.
Michelle quis dizer, todos sabemos, que os demônios ocuparam o Planalto durante os governos petistas. Eu não duvido. A afirmação de Michelle me conduziu a uma improvável associação entre o poeta francês Stéphane Mallarmé e a ex-presidente Dilma Rousseff. Em um poema em prosa, Mallarmé se dizia perseguido pelo "demônio da analogia”, enquanto Dilma deve ter sido possuída pelo demônio do anacoluto. E se existem demônios que provocam desvios do pensamento e vícios de linguagem, deve haver também diabinhos especializados em perversões administrativas e pecados políticos. No plano sobrenatural do PT, teríamos, entre outros, o demônio da farra fiscal, cujo falso evangelho começa com a frase “gasto público é vida”, o demônio da corrupção, muito atarefado com o Mensalão e o Petrolão, e o demônio do diversionismo, que era conjurado com a repetição do mantra “mas e o Aécio?”.
Só não entendo que razão essas entidades malignas teriam para hoje abandonar o palácio presidencial. É possível até que a população diabólica do Planalto tenha se multiplicado nos últimos anos, com a chegada de novas e estranhas criaturas. Para ficar em um exemplo: no auge da pandemia, a Peste – um dos cavaleiros do Apocalipse – certamente mandou que um auxiliar seu se instalasse sobre o ombro do general Pazuello. Entre os poucos serviçais de Satã que de fato deixaram o Planalto, estará o demônio da corrupção. Consta que, ao contemplar o orçamento secreto, ele declarou, com um sorriso aberto de chifre a chifre: “Meu trabalho aqui está concluído”. E depois foi passar as férias em um quadro de Bosch.
Na minha imaginação, todos esses demônios são minúsculos e ridículos, diabinhos arrastando tridentes pouco maiores que um garfo pela Praça dos Três Poderes. Vamos combinar que não é preciso um Mefistófeles para tentar o coração de um aspone petista ou de um milico bolsonarista. Tampouco se espera que o Diabo com maiúscula enfrente o calor do Cerrado. Neste ponto, rendo homenagem à sutileza teológica (ou demonológica?) de Michelle Bolsonaro. Reparem que ela falou em demônios, plural. A distinção de número é importante, pois o demônio, singular, seria o chefe de todos os demônios – Satã ou Satanás, o adversário da humanidade.
Satã fez uma aposta com Deus sobre a fé do infeliz Jó e tentou Jesus Cristo no deserto. Em sua longa carreira extrabíblica, conquistou uma sinistra dignidade no Paraíso Perdido de Milton e engravidou Mia Farrow em O Bebê de Rosemary. Ninguém com a mínima sensibilidade literária imaginará esse personagem envolvido em esquemas para comprar ônibus superfaturados ou entregar tratores a prefeitos amigos no interior de Alagoas. Satã atua apenas nos eventos que mudam o rumo da história. Ele pode ter insuflado os bolcheviques na Rússia – como é sugerido em Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones –, mas jamais se misturaria aos bolivarianos da Venezuela.
Michelle Bolsonaro está sendo chamada a participar da campanha do marido para conquistar o eleitorado feminino, mas não sei se o delírio demoníaco da primeira dama terá apelo para quem já não é bolsonarista. Posso dizer apenas que, como ficção, a ideia de demônios frequentando o Planalto é pobre. Não renderia nem mesmo uma série vagabunda como Sandman. Pois um país capaz de conduzir Bolsonaro e Lula para o segundo turno sofre de uma falha grave da imaginação.
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Comentários (10)
Douglas Domingues De Sena Alves
2022-08-20 12:32:08Esse povo que atualmente ocupa o planalto,ainda trem na religião um instrumento de manipulação política!! Saravá!
MARCEL
2022-08-20 08:41:42O autor deixa claro que analisa Michelle (com dois elles) como um brasileiro normal e Sandman como um intelectual prepotente. Gostei muito da primeira análise mas não concordo que chame Sandman de série vagabunda. Afinal é uma visão cinematográfica de HQ e só merece elogios. Principalmente na parte quem que ele concede vida eterna a um humano, desde que se encontrem no mesmo pub a cada cem anos. Achei criativo e inovador.
Marcelo
2022-08-16 15:23:10não há duvida quanto à falta de imaginação, sendo este texto uma prova dela ( da falta) e que empáfia, de alienado, sair pichando o Sandman, apenas para encontrar um gancho para puxar o assunto desse biscate que é a Micheque! Muito pobrinho seu texto!
Humberto
2022-08-16 11:10:03Excelente kkkkkkkkkkkk
Cida
2022-08-16 02:35:08👏👏👏👏👏
Neide Alves Dias De Sordi
2022-08-15 21:10:21Adorei o texto.
Quim
2022-08-15 19:43:47Essa oligofrenia parece ser pior que a Dilma.
ROBERTO Borges Gallego Soares
2022-08-15 17:04:39É muito fácil colocar a culpa nos demônios, pelos atos praticados por humanos endemoniados, sejamos responsáveis pelos nossos atos e ações, os demônios não tem nada a ver com o descaso a omissão e o desprezo , está no homem ruim perverso cruel e desumano todas as maldades por ele consentida contra o seu próximo , nada se faz de ruim aos outros, a não ser com o nosso consentimento, vamos parar de culpar quem nada tem com os nossos atos insanos e irresponsáveis, temos que assumir nossos erros.
Paulo Simardi
2022-08-15 15:31:33Chamar de "Imbecil" essa energúmena é elogio
Luiz Carlos Alonso
2022-08-15 15:10:21Falta de imaginação realmente...