Eleições no México: a privatização deixada pelo governo López Obrador
Falta de investimento e reformas desordenadas afastam mexicanos do sistema público de saúde; situação se intensificou na atual gestão presidencial
Guillermina Velázquez Carillo, de 60 anos, está há três horas na calçada em frente ao pronto-socorro do Hospital Geral Dr. Eduardo Liceaga, maior centro hospitalar público do México, com 1.200 leitos.
Ela acompanha seu neto, Emiliano, de 23 anos, que, do lado de dentro, espera ser atendido por um problema renal.
Carillo se junta a outras dezenas de parentes que não podem entrar no hospital. Os pacientes têm direito a trazer apenas um acompanhante.
Sob sol e um calor de 30ºC, os familiares repousam sob árvores e marquises, mas a sombra não é suficiente.
Enquanto uns se abanam com leques, outros se refrescam com água comprada nas tendas ao lado. Os comerciantes de rua, tradicionais no México, sentem a demanda.
Os parentes também estão conscientes de que não deixarão tão cedo aquela calçada. Algumas crianças usam cobertores como leito improvisado e se deitam no chão.
Essa cena é comum na entrada de hospitais públicos do México. Crusoé viu filas ou aglomerações com ao menos três pessoas nas calçadas de seis de outras oito instituições médicas públicas de norte a sul da Cidade do México.
“O atendimento é muito lento. Até agora, meu neto não foi atendido, porque ele não é considerado um caso de extrema urgência. Eu até entendo. Passou gente esfaqueada”, diz a Crusoé Guillermina, com um cigarro aceso na mão.
“Espero que meu neto seja atendido nas próximas horas. Não sei. Que ele saia o mais rápido o possível. Não acredito que ele deva ser internado”, acrescenta.
Em busca de melhor tratamento, cada vez mais mexicanos têm se hospitalizado no setor privado. Esse fenômeno se intensificou ao longo dos seis anos de mandato do atual presidente, Andrés Manuel López Obrador, o AMLO, que se encerra em 2024. As eleições ocorrem em 2 de junho.
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Quatro a cada 10 mexicanos receberam atendimento no setor privado em 2018, último ano do governo anterior. Em 2022, foram 6 a cada 10. Os dados são do think tank mexicano Centro de Investigação Econômica e Orçamentária (CIEP, em espanhol).
A privatização da Saúde no México não reflete a ascensão do poder de compra. Os gastos das famílias com saúde aumentaram em 30% no período, enquanto o salário médio corrigido pela inflação caiu.
“Essa atenção aos serviços ou estabelecimentos privados mostra a falta de capacidade do sistema público em atender às necessidades da população”, diz Judith Senyacen Méndez, investigadora do CIEP.
“E a demanda deve aumentar com as mudanças demográficas”, acrescenta, em referência ao envelhecimento da população. De acordo com os dados oficiais mais recentes, datados de 2022, 14% da população mexicana está acima dos 60 anos de idade, índice semelhante ao do Brasil.
Para além da demora no atendimento, o sistema público de saúde no México também sofre com a falta de medicamentos.
A maior escassez é de remédios ligados à saúde mental, de acordo com o especialista em saúde pública Andrés Castañeda, que coordena a organização não governamental Nosotrxs, que lida com o tema do desabastecimento.
Castañeda também aponta como o setor privado avançou para atender à demanda negligenciada pelos hospitais públicos: “Há um sentimento de insuficiência e podemos vê-lo com o crescimento estratosférico dos consultórios farmacêuticos”.
Esses consultórios são clínicas privadas vinculadas a farmácias. Na última década, o número de consultórios farmacêuticos cresceu em 38% no México, segundo a Associação Nacional de Farmácias. Hoje, há mais de 18 mil deles.
Na rua da entrada do Hospital Geral Dr. Eduardo Liceaga, há dois consultórios farmacêuticos. Eles recebem cerca de 10 pacientes ao dia cada nesta época do ano, primavera no hemisfério norte. O número de atendimentos aumenta durante o inverno, claro.
Guillermina recorreu a essas farmácias na virada de março para abril, quando ela passou por uma cirurgia no rim no Hospital Geral Dr. Eduardo Liceaga. Ela precisou desembolsar 5.000 pesos, ou 1.700 reais, em medicamentos para o tratamento.
“Faltava alguns dos remédios para o tratamento no hospital. Então, eu precisei comprá-los por fora”, relata a sexagenária.
Dermatologista em residência no Hospital Geral Dr. Manuel Gea González, na região sul da Cidade do México, Edgar Medina, de 28 anos, afirma que os médicos do sistema público não podem prescrever medicamentos que estejam fora da lista de fornecedores do governo.
“Mesmo que haja outro medicamento que seja mais eficiente, nós não podemos nem prescrever a receita para que o paciente comprasse em uma farmácia”, diz Medina a Crusoé.
O médico também explica como o desabastecimento discrimina pela doença do paciente. Em alguns hospitais, é quase impossível conseguir um medicamento específico para lúpus, uma doença não letal que inflama a pele, dentre outros órgãos. “Pacientes com diabetes também precisam desse remédio e eles têm prioridade”, afirma Medina.
Décadas de falta de investimento
O sistema público de saúde mexicano sofre com falta de investimento há décadas. Nos anos 2000, o governo gastava cerca de 3% do Produto Interno Bruto (PIB), metade do sugerido pela Organização Mundial da Saúde.
A situação piorou desde então e chegou a um piso de 2,3% em 2019, no primeiro ano completo da gestão de López Obrador. A pandemia elevou os gastos a apenas pouco mais de 2,5%. Em comparação, no Brasil, o investimento do Estado oscilou entre 3,6% e 4,2% do PIB ao longo da última década.
No vácuo deixado pelo sistema público, as famílias desembolsam 39 de cada 100 pesos gastos com saúde no México, de acordo com o Centro de Investigação Econômica e Orçamentária (CIEP).
O índice é alto até mesmo para padrões latinoamericanos. No Brasil, por exemplo, as famílias respondem diretamente apenas por cerca de 20% dos gastos com saúde no país.
Os governos mexicanos tendem a atribuir a escassez de investimento na Saúde à responsabilidade fiscal, com base no trauma da sociedade com a dívida pública desde a década de 1980.
A parcimônia é reforçada, mesmo durante a pandemia, pelo discurso anti-corrupção de López Obrador, que o distingue do restante da esquerda na América Latina.
Desordem na gestão AMLO
Se, por um lado, López Obrador manteve a tradição de governos anteriores com o baixo investimento, por outro, as reformas que ele tentou implementar desordenaram o sistema público de saúde.
“Em geral, houve retrocesso na gestão AMLO. O governo não conseguiu concretizar nenhuma proposta, porque houve muitas mudanças ao longo do mandato”, diz Andrés Castañeda, o coordenador da ONG Nosotrxs.
Em janeiro de 2020, com um ano e um mês de mandato, López Obrador extinguiu o convênio básico do sistema público de saúde, existente desde 2003. O Seguro Popular, como se chamava, era a única alternativa para quem não contribuísse à seguridade social nem fosse funcionário público.
Quando AMLO assumiu a presidência, em dezembro de 2018, o programa atendia a mais de 53 milhões de pessoas, o equivalente a quase 45% da população mexicana.
O governo alegou ineficiência e corrupção no Seguro Popular para encerrá-lo. Esses problemas existiam, relata a Crusoé o médico Juan Francisco Martínez Campos. Ele trabalhou em cargos de gestão no sistema público em dois governos anteriores ao de López Obrador.
Entretanto, a resposta de AMLO foi inaugurar um novo convênio básico, o Insabi, na chegada da pandemia. Os primeiros casos de covid-19 no México foram registrados em fevereiro de 2020, com um mês do novo programa.
“As pessoas que dirigiam o Insabi não tinham ideia de como funcionava o sistema público de saúde no México. A pandemia nos mostrou a fragilidade do sistema”, diz Campos, hoje presidente da entidade civil Sociedade Mexicana de Saúde Pública.
Entre 2018 e 2020, da posse de López Obrador ao primeiro ano de covid-19, cerca de 16,5 milhões de pessoas declararam deixar de estar filiadas a qualquer convênio do sistema público de saúde.
O Seguro Popular/ Insabi perdeu quase 18 milhões de afiliados nesse período.
Os dados são do Instituto Nacional de Estatística e Geografia, o IBGE mexicano.
O fracasso do Insabi frente à pandemia levou à sua extinção em 2023. Os mexicanos fora da seguridade social passaram a ser atendidos por um novo convênio, o IMSS-Bienestar.
Com o novo programa, AMLO mira em uma reforma do sistema de saúde ainda maior. O presidente tenta, desta vez, encerrar uma década de coparticipação dos governos estaduais na atenção aos mexicanos fora da seguridade social.
Novamente, o plano de López Obrador se faz sem coordenação. Até maio de 2023, oito estados recusaram o plano de federalização do IMSS-Bienestar, que envolve a concessão de hospitais estaduais.
“A dúvida para a governabilidade da próxima gestão na área de Saúde é saber o que acontecerá com esses oito estados”, afirma Castañeda.
De todos os três candidatos que disputam a Presidência do México nestas eleições de 2 de junho, apenas a candidata da situação reconhece esse problema em seu plano de governo.
Chefe de governo da Cidade do México, Claudia Sheinbaum, entretanto, não explica como convencerá os governadores desses oito estados a juntarem-se ao IMSS-Bienestar.
Se confirmar o favoritismo e vier a ser eleita presidente, ela dependerá deles para avançar com o programa sobre essas unidades da federação, que representam 20% da população mexicana sem seguridade social.
Pandemia
Apesar de ser o décimo país mais populoso do mundo, o México é o quarto com mais “mortes em excesso”. A estatística, criada pela Economist, estima o aumento na média de mortes em decorrência da pandemia. O levantamento considera qualquer causa de óbito, não apenas covid-19.
Foram mais de 650 mil mortes em excesso, em um país com 127 milhões de habitantes.
Em comparação, o Brasil, em terceiro, teve 938 mil, mas com uma população de 215 milhões. Considerando apenas países da América Latina, México e Brasil são seguidos pelo Peru, na longínqua 14ª posição do ranking geral, com 210 mil.
A Economist atribui as “mortes em excesso” do México a diversas medidas políticas de AMLO, como, por exemplo, a falta de incentivos financeiros a trabalhadores afetados pela quarentena.
Em 2020, ano mais crítico da pandemia, o México foi o país latinoamericano que registrou o maior aumento da pobreza extrema, quer dizer, do número de pessoas incapazes de aceder a uma cesta básica de alimentos. O índice foi de 10,5% a 18% da população. No Brasil, a pobreza extrema caiu de 5,5% a 1,5%.
Para Juan Francisco Martínez Campos, o presidente da Sociedade Mexicana de Saúde Pública, “o governo mexicano também não teve uma boa comunicação durante a pandemia. Muitas pessoas morreram, porque cancelaram seus tratamentos em hospitais que atendiam pacientes com covid-19”.
Edgar Medina, o dermatologista com experiência no sistema público, presenciou esses casos. Ele esteve na linha de frente por oito meses, entre final de 2020 e começo de 2021, no único hospital público do município de Villa de Alvarez, com 150.000 habitantes, no estado de Colima.
“O que mais me marcou foram os pacientes que acreditavam que nós, os médicos, os matávamos. Havia muita desinformação, como histórias de que roubávamos órgãos”, relata Medina.
Um de seus pacientes, um senhor de 75 anos, recusou-se a ser entubado e assinou um termo de consentimento para ser liberado para casa em meados de dezembro de 2020. “Ele nunca voltou a ser internado. Não sei o que aconteceu, mas provavelmente faleceu, porque ele não conseguia respirar por conta própria”, acrescenta o médico.
A desinformação durante a pandemia também envolveu a candidata de AMLO à sua sucessão nas eleições de 2 de junho, Claudia Sheinbaum.
Como chefe de governo da Cidade do México, equivalente a governador do DF, ela distribuiu Ivermectina como medicamento para covid-19. O tratamento não tem eficácia comprovada.
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