Brexit Reset: um golpe branco contra a democracia britânica?
Pense o que quiser sobre o Brexit — mas ele foi aprovado pelo eleitor. Ao reverter seu resultado no tapetão, as elites progressistas revelam seu desprezo pela vontade popular

O Reino Unido não está voltando formalmente à União Europeia. Mas está sendo puxado de volta, pouco a pouco, por vias indiretas.
Sem novo referendo. Sem debate público. Sem aprovação popular.
Sob o pretexto de um “acordo de cooperação”, o governo trabalhista de Keir Starmer firmou com Bruxelas um pacto que restaura compromissos regulatórios, obrigações jurídicas e vínculos institucionais que haviam sido rompidos pela escolha soberana dos britânicos em 2016.
“Reset”
Chamam de “reset”. O que realmente está sendo implementado, porém, é um tipo de golpe branco — silencioso, insidioso, dissimulado — que mina a democracia por dentro. Um processo deliberado de erosão institucional, no qual a vontade popular é esvaziada por tecnocratas e políticos que se consideram moralmente superiores ao eleitor comum.
O Brexit foi mais do que uma decisão administrativa. Foi um gesto de ruptura com o projeto de dissolução das fronteiras nacionais, de erosão da soberania democrática e de entrega dos destinos do país a burocracias supranacionais.
Foi uma reafirmação histórica da ideia de que os povos devem governar a si mesmos.
Thatcher
Não por acaso, os britânicos rejeitaram, já nos anos 1990, a proposta de substituir a libra esterlina pelo euro. Margaret Thatcher, em seus últimos anos no poder, alertava para os riscos de perder o controle da moeda e da política monetária nacional.
Sua recusa em aderir ao euro causou tensões internas no Partido Conservador, acelerou sua queda e marcou o início do fim de seus onze anos como primeira-ministra. Mas foi, acima de tudo, uma renúncia honrada em nome de um princípio: a defesa da soberania britânica.
O referendo de 2016, convocado por David Cameron — que imaginava que o país diria “ficar” — acabou surpreendendo o mundo com a vitória do “sair”.
Cameron renunciou. E deu início a uma operação silenciosa de reversão do resultado. Desde então, o que se viu foi uma operação contínua de cerco à vontade popular pelas elites dos dois grandes partidos do Reino Unido, com honrosas exceções.
Christopher Lasch
Christopher Lasch já alertava, com precisão profética, que as elites modernas “não querem mais governar, mas apenas administrar” — e administram com desprezo pelas massas que não se deixam tutelar.
Em A Revolta das Elites e a Traição da Democracia (1995), Lasch descreveu uma nova classe dirigente que “se refugia em comunidades homogêneas, cosmopolitas, distantes do sofrimento popular, cultivando o cinismo em relação à democracia como se fosse uma ilusão arcaica”.
A elite britânica — política, judiciária, acadêmica, midiática — tratou o Brexit como um colapso, uma anomalia. Tentou reverter o resultado nos tribunais, em manobras parlamentares, em pressões econômicas e diplomáticas.
Até mesmo lideranças do Partido Conservador agiram como freios, não como motores do processo. Theresa May negociou um acordo que Boris Johnson só conseguiu destravar a duras penas, apelando diretamente à população.
Frustração das elites
Roger Eatwell e Matthew Goodwin, em Nacional-Populismo: A Revolta contra a Democracia Liberal (2018), documentaram como o populismo nacional emerge justamente da frustração com elites que fingem escutar, mas decidem por conta própria.
“As decisões fundamentais passaram a ser tomadas fora das arenas nacionais, por organismos que não respondem diretamente aos eleitores. O populismo é, em parte, uma tentativa de devolver essas decisões ao povo”, explicaram.
O novo pacto com a UE, assinado em maio de 2025, reintegra o Reino Unido a uma série de regras e estruturas comunitárias defendidas pela burocracia europeia.
Padrões europeus
Padrões alimentares europeus voltam a ser mandatórios. Decisões da Corte Europeia são aceitas em setores específicos. As águas britânicas são reabertas à pesca estrangeira por mais 12 anos. Jovens britânicos e europeus passam a circular e trabalhar com mais facilidade, e programas como o Erasmus+ voltam a ser discutidos.
Além disso, o Reino Unido entra em um fundo comum de defesa de 150 bilhões de euros, com objetivos compartilhados e compras conjuntas. Tudo isso sem voto e sem representação formal nas instituições da UE.
Nigel Farage denunciou o acordo como “a rendição final da classe política ao projeto europeu”. E a frase não é exagerada.
O Reino Unido passa a ser regulado por um poder que não elege, não controla e não influencia.
“Apartheid social reverso”
Trata-se, como bem definiu Christophe Guilluy, de um “apartheid social reverso”, em que a elite abandona o espaço comum nacional e se entrega à lealdade de um projeto transnacional — deixando o povo órfão de representação.
Guilluy explicou com clareza, em O Crepúsculo da Elite: Prosperidade, Periferia e o Futuro da França (2019), como o novo populismo nasce não da ideologia, mas da geografia. “A elite se concentrou nos centros urbanos globais, enquanto a maioria social foi deslocada para as periferias invisíveis.”
O Brexit foi o grito dessas periferias: das cidades pequenas, dos trabalhadores industriais, dos agricultores e pescadores, dos aposentados esquecidos pelos centros de decisão.
O “reset” representa o silêncio que agora se tenta impor novamente a eles.
Liberalismo
Patrick Deneen, em Por que o Liberalismo Fracassou? (2018), demonstrou que o liberalismo falhou porque triunfou. A promessa de autonomia individual virou solidão. A rejeição às tradições virou desintegração.
O Brexit foi, nesse sentido, um gesto conservador no mais profundo sentido do termo: o desejo de conservar a capacidade de decidir, localmente, como viver.
Os argumentos a favor do Brexit eram muitos, mas um se sobressai: o direito de um povo de se autogovernar.
“Retomar o controle”, dizia o lema. Não sobre os outros, mas sobre si mesmo. Controlar fronteiras. Controlar leis. Controlar impostos. Controlar decisões. Governar sem precisar pedir permissão a instâncias estrangeiras.
Isso não significa fechar-se ao mundo, mas redefinir os termos da política internacional.
Liberdade
O Brexit queria liberdade, não isolamento. E foi exatamente essa liberdade que agora se esvai por acordos não referendados, por tratados de gabinete, por uma engenharia política que dissolve as decisões populares sem jamais confrontá-las diretamente.
O que está em jogo é a integridade da democracia representativa.
Quando uma decisão clara como o Brexit pode ser sabotada por dentro, sob o pretexto de ajustes técnicos, fica claro que as elites nunca aceitaram a vontade popular. Sequer respeitam a democracia.
Como escreveu Lasch: “A democracia exige uma fé no julgamento comum, uma confiança de que as pessoas comuns são capazes de entender sua própria condição e expressar suas necessidades legítimas.”
O Brexit foi a expressão dessa fé. O Brexit Reset é sua negação silenciosa.
Dignidade política
Não se trata de nostalgia, como dizem os detratores. Trata-se de dignidade política. E o que hoje se assiste não é uma correção de rumo, mas um processo deliberado de desidratação das decisões democráticas.
Pense o que quiser sobre o Brexit. Você pode ter sido contra. Pode continuar achando que foi um erro. Mas ele foi aprovado pelo eleitor.
Foi decidido por voto direto, livre e democrático. E se essa decisão não for respeitada, então a democracia — na prática — já não existe mais por lá.
O Brexit mudou o mundo em 2016.
Expôs as rachaduras de um sistema que se dizia irreversível. Provou que o povo ainda pode decidir. O que se tenta agora é mostrar que não pode. Que decidir é inútil. Que tudo será revertido, com paciência e tecnicalidade, desde que se controle o processo.
O cidadão britânico não está reingressando na União Europeia. Mas está deixando de ser verdadeiramente soberano. E, desta vez, sem sequer ser perguntado.
We will reverse this terrible deal at the first opportunity. https://t.co/CSiDEk5be5
— Kemi Badenoch (@KemiBadenoch) May 19, 2025
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Comentários (1)
Joaquim Arino Durán
2025-05-20 11:41:48Lá, como cá, reescrevem a história na maior cara de pau.