Roque de Sá / Agência Senado

Áudio de Ramagem revela extensão do filhotismo no Estado brasileiro

16.07.24 10:39

O áudio cujo sigilo foi derrubado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes e que estava nos equipamentos do então diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, revelam como o ex-presidente Jair Bolsonaro via o Estado brasileiro como uma extensão de sua própria família.

Em outras palavras, Bolsonaro não enxergava qualquer empecilho em usar os recursos do Estado em prol do bem-estar de seus filhos.

No artigo “De pai para filho“, escrito há dois anos na Crusoé, o antropólogo Roberto DaMatta discorreu sobre esse comportamento típico do brasileiro de se aproveitar de um cargo público para beneficiar os filhos.

 

Leia em Crusoé: De pai para filho

 

DaMatta lembrava que tanto Lula como Jair Bolsonaro tinham esse mesmo hábito, e que o problema todo estava na intersecção entre dois mundos: o da casa e o da rua.

O mundo da casa é aquele das relações entre parentes próximos. Todos nós que vivemos em família temos de cumprir com uma série de obrigações morais, as quais são pouco faladas, mas muito praticadas. O mundo da rua é aquele da sociedade, em que vicejam inúmeras regras que exigem anonimato, neutralidade e isenção“, escreveu DaMatta.

No mundo casa, que foi inventado pelos “velhos reis”, segundo DaMatta, o importante era deixar o legado das “obrigações de família”, que batiam em seus corações.

A aristocracia é fundada justamente nesse ‘direito’ de herdar dos pais. Um bom brasileiro não pode negar o que tem — seja um objeto ou uma capacidade, como um nome honrado — para um filho. Seria algo condenável“, afirma o antropólogo.

Em uma república em que as leis estão acima de todos, e onde todos têm os mesmos direitos e obrigações, há uma separação entre o mundo da casa e o mundo da rua, o qual deve ser regido pela impessoalidade. As obrigações de família, portanto, seriam neutralizadas no ambiente público.

Em Brasília, esse não é o caso. “Há, pelo contrário, uma personalização de tudo, e aqueles que ocupam cargos públicos continuam seguindo as mesmas regras da casa“, afirma DaMatta. “Como é possível ser presidente da República e não ‘arrumar’ algo para seus filhos, cunhado, sobrinhos e tios?

Os áudios de Ramagem mostram que Jair Bolsonaro não titubeava ao colocar o Estado a serviço de seu filho, Flávio Bolsonaro (foto).

Em uma reunião de apenas uma hora, fala-se em usar o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a Associação Brasileira de Inteligência, o Supremo Tribunal Federal e a Dataprev (do ex-ministro Gustavo Canuto, que Bolsonaro confunde com o Serpro) para tentar livrar Flávio das investigações sobre rachadinhas.

Por outro lado, os auditores da Receita Federal, que estariam investigando Flávio, deveriam ser contidos.

Bolsonaro parece não hesitar em tentar usar os recursos do Estado por algum princípio republicano, mas sim porque teme ser descoberto. “A gente nunca sabe se alguém tá gravando alguma coisa. Que não estamos procurando favorecimento de ninguém“, afirma ele no áudio.

O general Augusto Heleno, do GSI, afirma que o “troço” tem que permanecer “fechadíssimo“.

Segue o antropólogo DaMatta, em seu artigo para a Crusoé: “Honestamente, não sei qual é a melhor maneira de sanar o filhotismo. Afirmo, porém, que países nos quais o espaço público tem leis que valem para todos são nações onde reina o cidadão, não o súdito“.

Seria então o filhotismo o nosso enorme e invisível entulho que nos impede de ter um estilo de vida mais igualitário e mais democrático?“, pergunta DaMatta.

É uma pergunta para todos os brasileiros.

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  1. O problema se agrava que dono filhotismo na acepção maior da palavra, se confunde com o filhotismo da putismo dos Bolsonaros, no sentido mais amplo do conceito de gang criminosa ou associação criminosa.

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