A Inglaterra está reencontrando sua alma católica?
A fé católica ressurge entre jovens britânicos, reacendendo questões históricas e uma oportunidade de reconciliação com o passado

A história da Igreja Anglicana começa com uma ruptura dramática e sangrenta.
No início do século XVI, o rei Henrique VIII, obcecado por garantir um herdeiro masculino, pediu ao papa Clemente VII a anulação de seu casamento com Catarina de Aragão.
Diante da recusa do papa, Henrique decidiu romper com Roma e se declarou chefe supremo da Igreja na Inglaterra, criando uma nova religião estatal.
Para consolidar seu poder religioso e político, Henrique VIII não hesitou em eliminar opositores.
Sua fúria se voltou até mesmo contra São Thomas More, seu antigo amigo e chanceler, um dos maiores intelectuais de sua época. More se recusou a trair sua fé católica e a jurar lealdade ao novo regime religioso.
Por sua fidelidade à Igreja e à sua consciência, foi preso, julgado por traição e decapitado em 1535.
Tirania
O confronto entre Henrique VIII e Thomas More não é apenas um episódio histórico – é um retrato do choque entre a tirania e a integridade.
Essa luta foi imortalizada no clássico do cinema A Man for All Seasons (O Homem que Não Vendeu Sua Alma), vencedor do Oscar de Melhor Filme em 1966.
Na obra, More é fielmente retratado como um homem íntegro, disposto a morrer em defesa da verdade, enquanto Henrique aparece como um monarca obcecado pelo controle, disposto a sacrificar vidas e princípios para satisfazer sua vontade.
Henrique não parou por aí. Em sua busca obsessiva por um herdeiro, teve seis esposas, duas das quais – Ana Bolena e Catarina Howard – foram executadas sob acusações fabricadas de adultério e traição.
O monarca transformou o matrimônio em um jogo político e religioso, coroando a si mesmo como chefe de uma igreja que parodiava o catolicismo, mas que obedecia apenas aos seus caprichos.
Divisão religiosa
O reinado de Elizabeth I, filha de Henrique VIII, aprofundou a divisão religiosa.
A rainha adotou uma política de repressão brutal contra os católicos, que foram perseguidos, presos e executados. Padres eram caçados como criminosos, e missas eram celebradas em segredo.
Sua prima, Maria Stuart, rainha católica da Escócia, foi aprisionada e, por fim, executada em 1587, acusada de conspirar contra Elizabeth.
Até mesmo William Shakespeare (ao lado do papa Francisco na ilustração), o maior gênio literário da Inglaterra, parece ter carregado em segredo a marca do catolicismo.
Descendente de uma família profundamente católica, Shakespeare viveu em um mundo onde revelar sua fé poderia significar prisão ou morte.
Para muitos estudiosos, sua obra contém ecos dessa fé oculta – alusões discretas à esperança, ao perdão e ao sofrimento redentor, além de temas católicos que seriam sugeridos nas peças, como o purgatório em Hamlet, a confissão em Medida por Medida ou a maneira como Shakespeare recriou o papel do frade Lourenço em Romeu e Julieta, um personagem ridicularizado e demonizado nas versões protestantes da história.
Volta ao catolicismo?
Uma volta da Inglaterra ao catolicismo seria também, em certo sentido, uma reconciliação com a família Shakespeare e com as raízes culturais do país.
A Escócia e a Irlanda, historicamente ligadas ao catolicismo, tornaram-se palco de conflitos sangrentos após a conversão da Inglaterra ao anglicanismo.
Na Escócia, o movimento da Reforma liderado por John Knox consolidou o protestantismo como religião dominante, mas uma parcela significativa da população, especialmente nas Terras Altas, manteve-se fiel à fé católica. Essas comunidades viveram sob perseguição, tratando sua fé como uma herança a ser protegida em segredo.
Na Irlanda, a situação foi ainda mais dramática.
A tentativa da coroa inglesa de impor o anglicanismo sobre uma população majoritariamente católica gerou séculos de resistência e sofrimento.
A fé católica se tornou não apenas uma expressão espiritual, mas um símbolo de identidade nacional irlandesa e de resistência à dominação inglesa. Famílias irlandesas transmitiam sua fé em segredo, padres celebravam missas em esconderijos, e a igreja clandestina se tornou um refúgio espiritual e cultural.
Despertar católico
O catolicismo na Inglaterra nunca desapareceu completamente.
No século XIX, um novo despertar católico emergiu, não mais entre cidadãos comuns perseguidos, mas entre intelectuais de elite.
O Movimento de Oxford, liderado por estudiosos de Cambridge e Oxford, trouxe de volta à Inglaterra uma reflexão profunda sobre as raízes católicas do cristianismo.
Entre eles, destacou-se São John Henry Newman, que começou como ministro anglicano, mas encontrou na Igreja Católica a plenitude da fé. Sua conversão em 1845 foi um choque para a sociedade inglesa, e seu legado teológico influenciou gerações.
Outro grande intelectual católico britânico, Christopher Dawson, historiador e ensaísta do século XX, viu na história da Europa uma luta constante entre a fé cristã e as forças do secularismo.
Para Dawson, o catolicismo não era apenas uma religião entre outras, mas a alma da civilização europeia. Ele enxergava o retorno à fé como uma redescoberta da verdadeira identidade cultural da Inglaterra e da Europa.
A nova Inglaterra católica
Hoje, essa redescoberta parece ganhar novo fôlego.
A pesquisa da Bible Society, uma instituição cristã não católica, revela que o catolicismo é agora a denominação mais popular entre os jovens cristãos que frequentam igrejas no Reino Unido.
Entre os que têm entre 18 e 34 anos, 41% se identificam como católicos, superando os anglicanos, que representam apenas 20%.
Esse crescimento não significa que a Inglaterra esteja automaticamente voltando às suas raízes católicas. No entanto, indica uma abertura crescente dos jovens para uma fé que seus antepassados foram forçados a abandonar. E, mais do que isso, pode sinalizar uma possibilidade de reconciliação espiritual para o país.
Se o catolicismo está realmente ressurgindo entre os jovens, isso não é apenas um retorno ao passado, mas uma oportunidade para o futuro.
Uma fé que já foi motivo de divisão pode se tornar um ponto de encontro para uma nova geração de cristãos britânicos – anglicanos, católicos e outros – que buscam algo mais profundo e transcendente em um mundo fragmentado.
O crescimento do catolicismo entre os jovens não apaga os séculos de conflito e perseguição, mas oferece a chance de transformar essa história em uma lição de unidade e redescoberta espiritual.
A Inglaterra e sua alma católica podem não estar totalmente reconciliadas, mas o diálogo entre tradição e modernidade, entre memória e esperança, está mais vivo do que nunca.
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