ReproduçãoApoiadores do partido França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, festejam em Paris

Extremo engano

Preocupação com a direita não pode acobertar perigos da esquerda
12.07.24

Definir os fatos que nos cercam da maneira mais precisa possível é indispensável para entender o mundo e interferir sobre ele. Esse processo nunca esteve isento de vieses políticos, ideológicos e de posição social. Contudo, nas últimas semanas, declarações de políticos e textos na imprensa foram prófugos em usar os termos mais criativos e exagerados para se referir a uma ameaça à democracia vinda da direita. Só o presidente Lula usou vagamente as expressões a “extrema-direita“, “experiências ultraliberais”, “nacionalismo arcaico”, “golpistas” e “antipovo”.

É imprescindível que qualquer pessoa possa soar o alarme ao identificar alguma ameaça à democracia. Quando preocupações são incluídas no debate público, perigos podem ser neutralizados. O problema das últimas semanas é que as advertências foram feitas unicamente em relação a partidos e políticos da direita, sem qualquer crítica para a esquerda. Por causa disso, a veia revolucionária do francês Jean-Luc Mélenchon foi ignorada ou relativizada. Trata-se de um alarmismo seletivo, que faz rotulações genéricas para apenas um lado do espectro político.

Nas eleições legislativas francesas, que tiveram o segundo turno no domingo, 7, o estardalhaço foi todo com o partido Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, que segundo diversos veículos de imprensa seria de “extrema-direita“. Há alguns anos, porém, Marine tem conduzido seu partido mais para o centro, assim como tem feito a italiana Giorgia Meloni, do Irmãos da Itália. O RN não apenas eliminou os traços de antissemitismo, como tem se posicionado a favor de Israel após a invasão do Hamas, em 7 de outubro (leia a reportagem “Radicalmente moderadas“, de Alexandre Borges, nesta edição da Crusoé).

Ao final, o RN teve uma votação abaixo da esperada, ainda que tenha sido o partido que, individualmente, recebeu mais votos (coalizões de centro e de esquerda se saíram melhor). Isso ocorreu por causa da desistência de candidatos do centro e da esquerda que estavam em terceiro lugar em centenas de distritos no segundo turno, o que tirou a chance de a RN ficar em primeiro em várias cidades. O corolário dessa estratégia foi a ascensão da Nova Frente Popular, NFP, uma coalizão heterogênea de esquerda. Das 182 cadeiras que a NFP terá direito na próxima Assembleia Nacional, o partido França Insubmissa, de Mélenchon, terá a maior bancada, com 71 deputados.

Ainda que cientistas políticos debatam a melhor maneira de definir ideologicamente Mélenchon, há bons motivos para incluí-lo dentro da “extrema-esquerda“. Isso porque o francês, ainda que dispute eleições, tem um declarado ímpeto revolucionário. Seu objetivo é refundar o sistema político francês nos seus próprios moldes. Mélenchon, assim, estaria um passo além do que se considera como “esquerda radical”, na definição do cientista político holandês Cas Mudde, um dos principais teóricos do populismo.

Para Mudde, que é professor da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos, a “far-right” pode ser dividida em “radical” e “extrema”. Em comum, todos usam a retórica do “nós contra eles”. Eles têm uma visão estreita do que seja o “povo” ou a “nação”, e rejeitam pessoas com valores e interesses diferentes, como imigrantes e muçulmanos. Mas os radicais aceitam as regras da democracia, como as eleições, e não querem substituí-la por outra coisa. Os extremistas, por outro lado, querem trocar o jogo democrático por outro. “Os partidos considerados extremos, sejam eles de esquerda ou de direita, não lidam bem com as restrições institucionais. Na realidade, tais partidos têm uma natureza anti-institucional”, diz o cientista político Carlos Pereira, autor do livro Por que a democracia brasileira não morreu? (Assista à entrevista com Pereira nesta edição da Crusoé).

Quando Mélenchon concorreu na eleição de 2022, que deu um segundo mandato para o presidente Emmanuel Macron, seu programa incluía a instalação de uma Sexta República para acabar com o que ele considerava uma monarquia presidencial absolutista. “Mais do que nunca, é hora de virar a página da Quinta República. É uma Constituição datada, concebida para um homem, o general de Gaulle, que morreu há 52 anos”, diz o texto. Citando a Revolução Francesa de 1789, o programa pedia uma Assembleia Constituinte com uma “estratégia revolucionária” com vistas a uma “ruptura profunda” e que levaria a uma “convulsão democrática”. A maneira como a nova Constituição seria escrita seria definida por decreto, que teria de ser aprovado em um referendo. Alguns constituintes seriam escolhidos por sorteio (sério!). Pessoas que já exerceram algum mandato parlamentar seriam proibidas de participar. A Assembleia Constituinte teria centros municipais para estimular a participação de pessoas normalmente excluídas, como os mais pobres, os jovens e os “residentes nos bairros da classe trabalhadora”. O França Insubmissa ainda sugeria que os cidadãos fossem capazes de reunir abaixo-assinados para “propor ou revogar leis, modificar a Constituição ou destituir funcionários eleitos”. Qualquer frase dessa, se aparecesse no programa do Reagrupamento Nacional, geraria um escândalo, mas no programa de Mélenchon elas acabaram passando batido.

A inspiração de Mélenchon não é nenhum país democrático, mas a ditadura venezuelana e grupos terroristas muçulmanos. O francês disse que Hugo Chávez tinha instalado “um governo que compartilhava a receita petrolífera com o povo e com os pobres”. Já no período de Nicolás Maduro, Mélenchon propôs a adesão de seu país à Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América). Mais recentemente, após o atentado terrorista do Hamas em Israel no dia 7 de outubro, o partido de Mélenchon, França Insubmissa, considerado a ação como “uma ofensiva armada das forças palestinas”.

Adular tiranos, ocultando o caráter repressivo deles, não é exclusividade de extremistas. O presidente Lula esta semana defendeu que a ditadura da Venezuela seja novamente incluída no Mercosul, mesmo o bloco tendo uma cláusula democrática, o Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998. “Esperamos também poder receber logo e muito rapidamente, de volta, a Venezuela. A normalização da vida política venezuelana significa estabilidade para toda a América do Sul. Por isso, fazemos votos de que a eleição ocorra de forma tranquila e que o resultado seja reconhecido por todos”, disse o petista. A diferença, nesse caso, é que Mélenchon propõe uma refundação da república francesa em outros moldes, algo que Lula não ousa fazer.

Voltando à definição de extremismo, alguns cientistas políticos entendem que a principal evidência de que um partido entra nessa categoria é sua recusa em fazer alianças com outras forças, mesmo defendendo ideias parecidas. Isso indicaria, no fundo, a rejeição das regras democráticas. Ao contrário, um partido que forma alianças é obrigado a negociar com os demais e fazer concessões, o que atenuaria traços autoritários. “Os partidos extremistas rejeitam os outros partidos. Eles não aceitam o jogo político”, diz o francês Thomas Charrayre, professor de ciência política na Universidade SciencesPo, em Paris.

Pois bem, o França Insubmissa entrou na Nova Frente Popular, enquanto o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, seguiu sozinho. Mas vale notar que o isolamento do RN não ocorreu por vontade própria. Antes das eleições legislativas, o líder do partido de centro-direita Os Republicanos, Eric Ciotti, propôs uma aliança com a RN e conversou com seus principais líderes. Marine Le Pen afirmou que o gesto era uma “escolha corajosa” e que mostrava “senso de responsabilidade”. Uma reação contrária, contudo, ocorreu dentro do partido Os Republicanos, impedindo a aliança com o RN.

Ressalvas como essa mostram como é difícil aplicar os conceitos de partido radical ou extremista às legendas atuais. “O que podemos apontar são algumas tendências. Quem vai saber melhor sobre isso são os historiadores do futuro”, diz Charrayre. “A principal pergunta que ainda não tem resposta é o que fariam esses partidos se um dia alcançarem o poder. Eles tentarão usar o Judiciário para perseguir rivais? Respeitarão os demais partidos? São coisas que não temos como saber agora.”

Na terça, 9, o partido França Insubmissa, de Mélenchon, pressionou para que Macron indicasse um primeiro-ministro da Nova Frente Popular, algo que o presidente se recusa a fazer. “Único no mundo democrático: o presidente recusa-se a reconhecer o resultado das sondagens que colocaram a Nova Frente Popular na liderança em votos e assentos na Assembleia. É o regresso do veto real ao sufrágio universal”, escreveu Mélenchon no X, o antigo Twitter. Nesta quinta, 11, o político acusou Macron de ter dado um “golpe presidencial“.

Para a sorte dos franceses, a probabilidade de que Macron nomeie Mélenchon como primeiro-ministro é ínfima. No centro e dentro da NFP, há partidos que não gostam do seu pendor revolucionário. “Mélenchon é muito impopular na esquerda francesa, que é bastante liberal na política”, diz o cientista político Carlos Gustavo Poggio. Mesmo na eventualidade de um governo de Mélenchon no futuro, seu autoritarismo acabaria esbarrando nas cláusulas democráticas da União Europeia, assim como ocorre hoje com o governo de Viktor Orbán, da direita radical, na Hungria. A ameaça, como se vê, pode vir de todos os lados. Pelo bem da democracia, é importante que o alarme funcione para todos.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Muito bom, Duda. É um prazer estar ao lado de quem discute os problemas sem nenhum apego à partidos ou ideais. Especialmente esses loucos extremistas!

  2. Se a imprensa se coloca maioritariamente dentro de um lado do espectro político, ela apenas agitará o espantalho do seu antagonista. Triste assistir à morte da imprensa. Salve a Crusoé/ o Antagonista!

  3. Agradeço pelo áudio. Coloquem sempre, por favor! Valeu! Sou leitora, ouvinte e fã da Crusoé e dO Antagonista. Parabéns pelo trabalho! 👏

  4. O Lula mostra seu viés autoritário de várias formas, seja adulando autocratas, ou usando estatais pra fins politiqueiros , como vemos agora no regresso da Petrobras à Bolívia e no cabide de empregos pros companheiros

  5. Lula só não usou no caso do Galinheiro Brazyllis o país da ladroíce o termo correto e neutro para não melindrar os muy amiguitos é claro ... no censor.

Mais notícias
Assine agora
TOPO