Ricardo Stuckert / PRLula: sem conseguir reduzir juros na marra, nem fazer leilão do arroz

Resistência civil

Como conter o autoritarismo dos "salvadores da democracia"
05.07.24

Os últimos dias não têm sido fáceis para as instituições democráticas brasileiras. Lula tem atacado sem cessar o Banco Central, exigindo uma redução na taxa de juros com total desprezo pela autonomia da instituição. Também começou a fazer campanha para candidatos municipais, antes do prazo eleitoral, e chamou jornalistas de “cretinos” porque o culparam pela subida do dólar. No Judiciário, ministros do Supremo Tribunal Federal, STF, assumiram as funções do Legislativo e definiram a quantidade de droga que cada pessoa pode possuir para consumo próprio. Em seguida, seis ministros da Corte viajaram para participar em Lisboa de um evento organizado pela faculdade de Gilmar Mendes, o IDP, em que se encontraram com empresários cujas companhias têm ações no tribunal.

Ao final, nenhuma dessas iniciativas foi bem-sucedida. Elas foram duramente criticadas ou caíram no vazio. Em comum, todas foram protagonizadas por pessoas que se colocam como os paladinos da democracia e consideravam o ex-presidente Jair Bolsonaro como um autoritário, justamente pelo seu desrespeito às instituições. “Lula, na verdade, resgatou a democracia no Brasil”, disse Gilmar, no início do ano passado. Contudo, são esses pretensos salvadores da democracia os que mais a maltratam atualmente. Felizmente para os brasileiros, a democracia, com todos os seus defeitos e virtudes, tem se mostrado resiliente. Se foi capaz de resistir a Bolsonaro, é capaz de aguentar Lula e o ativismo do STF.

Todo populista, seja de esquerda ou de direita, tem uma dificuldade muito grande de lidar com restrições. Então, eles ficam sempre tentando meios de driblar as regras do jogo”, diz o cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas, coautor do livro Por que a democracia brasileira não morreu?. “Em seus primeiros dois mandatos, Lula teve seguidos problemas com as agências reguladoras. Agora, ele entra em conflito com o Banco Central”, afirma Pereira. Seu livro, lançado este ano em parceria com o cientista político Marcus André Melo, analisa as características da democracia brasileira que permitem suportar tentativas autoritárias, seja da esquerda ou da direita.

O que garante a resiliência da democracia brasileira não é a ação de alguns que se consideram iluminados, mas principalmente o vigor da sociedade civil organizada brasileira, o que engloba a imprensa independente, as organizações não governamentais e entidades formadas pelas empresas privadas. Outra explicação é o controle que os três poderes, Executivo, Judiciário e Legislativo,  exercem entre si, sob vigilância constante da opinião pública.

Um exemplo recente de regulação democrática ocorreu dentro do Banco Central. Desde o ano passado, Lula tem mirado o presidente da instituição, Roberto Campos Neto. Já o chamou de “infiltrado de Bolsonaro” e sabotador. “Definitivamente, acho que ele tem viés político”, disse o presidente esta semana. Lula sonha com uma redução da taxa Selic para aquecer a economia e ajudar o PT nas eleições municipais. Até o momento, o presidente já nomeou quatro dos nove diretores do BC. A diretoria de política monetária foi colocada a cargo de Gabriel Galípolo, que tinha sido recomendado por Fernando Haddad e já foi considerado como “menino de ouro”, por Lula. Na última reunião do Copom, no mês passado, tudo indicava que o presidente conseguiria a redução nas taxas de juros que ele tanto deseja.

Não funcionou. O Copom manteve a taxa de juros no patamar de 10,50% ao ano, em uma decisão tomada por unanimidade. Ou seja, todos os nove diretores votaram juntos. A ata divulgada pelo Copom trouxe as explicações técnicas para a decisão, mas o mais interessante nesta história é que as questões individuais não interferiram. Os diretores nomeados por Lula não buscaram agradar ao chefe. Apoiar uma decisão claramente equivocada de queda de juros poderia ser prejudicial quando se considera que presidentes em uma democracia são provisórios, enquanto a carreira de cada um deles, não.

Há muitos incentivos para os diretores do Banco Central indicados por Lula não sucumbirem às pressões do presidente. Todos eles sabem que a crise econômica de 2015 começou quando a presidente Dilma Rousseff forçou uma redução da taxa Selic. Repetir o erro teria um impacto negativo na reputação deles, que não seriam mais convidados para eventos acadêmicos ou para ocupar a presidência de um banco“, diz o economista Maílson da Nóbrega, da Tendências Consultoria. “Além disso, a população brasileira se familiarizou com as discussões do Copom, e os erros não passam mais despercebidos como no passado.”

Lula não tardou a reclamar da decisão do Copom: “Quem quer o Banco Central autônomo é o mercado”. Mas aquilo que o presidente entende como mercado na realidade é a força da sociedade brasileira organizada, que não quer ser jogada novamente em uma crise sem qualquer motivo.

No Supremo Tribunal Federal, a reação ao ativismo da Corte de descriminalizar a posse de maconha veio de todos os lados, até mesmo de dentro do STF. O Senado reagiu aprovando uma lei que proíbe a posse de qualquer quantidade de entorpecente. O presidente Lula deu declarações dizendo que o “STF não pode se meter em tudo”. E o mais surpreendente: três ministros da Corte deram declarações contundentes contra o ativismo judicial. André Mendonça afirmou que descriminalizar a posse de drogas seria “passar por cima do legislador”, no caso, o Congresso. Luiz Fux disse que, em referência aos demais ministros: “Nós não somos juízes eleitos, o Brasil não tem governo de juízes”. Edson Fachin pediu “parcimônia, comedimento e compostura” do Judiciário. Segundo ele, “abdicar dos limites é um convite para pular no abismo institucional”.

O cenário já era nebuloso quando o evento apelidado de Gilmarpalooza aconteceu em Lisboa. Doze empresas que participaram do evento tinham processos em andamento no Supremo. Ao entrar no evento de Gilmar Mendes, o objetivo delas é influenciar as decisões da principal Corte do país. Para acomodar dezenas de políticos, o Fórum de Lisboa precisou até mudar de nome e tirou a palavra “Jurídico” do seu título. Três ministros do STF recusaram o convite: Kassio Nunes Marques, Cármen Lúcia e Luiz Fux. Uma notícia no portal UOL publicada na terça, 2, dizia que “alguns ministros” estariam criticando internamente o encontro, incluindo André Mendonça e Edson Fachin. A reação tem ocorrido todos os anos, mas nunca foi tão forte. Nas pesquisas de opinião, cerca de metade dos brasileiros diz não confiar no STF e em seus ministros. A indignação é tão grande que um evento desse tipo seria impensável no Brasil, como admitiu o ministro do STF Flávio Dino: “Por que fazer esse fórum em Lisboa? Porque talvez no Brasil fosse impossível, infelizmente”.

Essa pressão da sociedade civil, que influencia os votos no Copom e impede a realização de eventos como o Gilmarpalooza no Brasil, é difícil de ser mensurada e não impede retrocessos no futuro. Mas a existência dessa força é inegável. Só nas últimas semanas, a sociedade civil organizada brasileira barrou o desastroso leilão do arroz estatal e o PL do Aborto no Congresso. Assim que o governo anunciou a vontade de importar grãos após as enchentes no Rio Grande do Sul, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, CNA, veio a público para dizer que, além de desnecessária, a medida prejudicaria os produtores nacionais. A ideia foi engavetada, com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, anunciando o cancelamento “desses leilões” pois “os preços do arroz caíram”. No Congresso, a Frente Parlamentar Evangélica conseguiu a proeza de, em um país majoritariamente contra o aborto, obter a oposição de 66% da população em um projeto de lei, segundo o Datafolha. A rejeição se deu porque a punição para a mulher estuprada seria superior à do seu estuprador. Acabou sendo mais uma iniciativa abortada.

A força da sociedade civil foi muito bem documentada pelo aristocrata francês Alexis de Tocqueville, após uma viagem de quase um ano pelos Estados Unidos. Em seu livro Democracia na América, de 1835, Tocqueville declarou-se impressionado com a capacidade de organização do povo. “Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos, unem-se sem parar. Não apenas têm associações comerciais e industriais, das quais todos tomam parte, como também têm milhares de tipos: religiosas, morais, sérias, fúteis, muito gerais e extremamente específicas, imensas e pequenas”, escreveu Tocqueville. O hábito de se unir pelo bem comum foi herdado pelos americanos da Inglaterra, que já tinha realizado a maior campanha de mobilização da opinião pública para abolir a escravidão e o tráfico negreiro, no final do século 18.

O movimento iniciado na Inglaterra ainda daria frutos em solo americano, repercutindo nas posições abolicionistas do presidente Abraham Lincoln. Na década de 1960, foi também por pressão da opinião pública que o presidente Lyndon Johnson assinou a Lei dos Direitos Civis, proibindo a discriminação com base em raça, cor, religião, sexo e nacionalidade, e a lei para garantir o voto dos negros. “Essas ideias não partiram da Casa Branca. Elas foram o resultado de um movimento extremamente organizado, que teve ampla participação de líderes religiosos”, diz Lucas de Souza Martins, professor de História dos Estados Unidos na Temple University, na Filadélfia. “Essa e outras transformações da sociedade não ocorreriam sem pressão da sociedade civil.”

No Brasil, a sociedade civil foi capaz de prosperar apesar de um governo forte e pesado, mas que na maioria das vezes se mostrou ineficiente e caro. Após as enchentes no Rio Grande do Sul, ficou claro a capacidade organizativa da sociedade, que preferiu não esperar pela ajuda estatal. Fenômeno parecido ocorreu nos Estados Unidos, quando a rede logística do hipermercado Walmart foi a que mais conseguiu distribuir alimentos e roupas após o furacão Katrina, que arrasou a cidade de New Orleans, em 2005.

É uma boa notícia que o brasileiro esteja se enxergando cada vez mais como o ator principal da preservação da democracia do país”, diz Souza Martins. “Um povo maduro não pode terceirizar a preservação da democracia para o Supremo, para a Presidência ou para o Congresso. A manutenção da democracia passa, acima de tudo, pelo eleitor. É esse o caminho.”

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  1. Perfeita análise Duda. Mas a sociedade precisa dar um passo além e assumir o protagonismo. Chega de sermos reféns de quem não nos representa. Precisamos estabelecer fóruns de representação, mas também de pensamento. Para uma nova arquitetura de Estado com base em valores, princípios e viabilizada pela tecnologia. Se a democracia direta é utópica, deveríamos buscar algo muito melhor do que essa distopia atual da qual somos vítimas.

  2. Sou eleitor. Jamais votei em Lula. Ignorante, votei em Bolsonaro cheio de esperança. Na 2ª vez votei em Bolsonaro a contragosto, tapando o nariz por falta de opção. No 1º turno votei em Luiz Felipe Dávila. D'Ávila é anos-luz melhor do que os dois idiotas que foram oara o 2º turno em 2022. Tristeza...

  3. Duda acabei de ler sua matéria e confesso que ao final ficai mais sossegada. A democracia respeitada favorece a todos tanto a governados como a governante. Parabéns, excelentes colocações.

  4. Parabéns. Um jeito leve para descrever assuntos tão pesados. E pões pesados nisso. Agora só falta extirpar as origens dos pesos.

  5. A harmonia entre os poderes atualmente serve mais para eles se blindarem contra punições pelos seus excessos. Creio que o fim da reeleição de governantes e a limitação do mandato de ministros do STF fariam um bem enorme pra nossa democracia

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