Madonna, objeto de estudo
Há páginas na Wikipedia inglesa, espanhola e hebraica para o que se denominou "Madonna Studies", expressão cunhada pelos colaboradores da enciclopédia como "abordagens interdisciplinares incorporando estudos culturais e estudos de mídia", ou, simplesmente "qualquer estudo acadêmico dedicado a ela". Seus impactos culturais, as repercussões de suas ações, seus divórcios: tudo pode ser cientificamente discutido (e...
Há páginas na Wikipedia inglesa, espanhola e hebraica para o que se denominou "Madonna Studies", expressão cunhada pelos colaboradores da enciclopédia como "abordagens interdisciplinares incorporando estudos culturais e estudos de mídia", ou, simplesmente "qualquer estudo acadêmico dedicado a ela". Seus impactos culturais, as repercussões de suas ações, seus divórcios: tudo pode ser cientificamente discutido (e a Wikipedia dá uma longa lista de como isso ocorreu).
Não é uma área definida como, digamos, a filatelia ou a heráldica, mas ela existe. E Madonna existe. No momento que este artigo vai ao ar, ela está a algumas horas de subir ao palco para o maior show da sua carreira, frente a quase 2 milhões de pessoas na Praia de Copacabana — uma cortesia do banco líder em valor de mercado no sistema financeiro nacional brasileiro.
Para quem não é um fã convicto da cantora, é um pouco complicado entender como a cantora, hoje com 65 anos, ainda é capaz de levar um número tão absurdo de fãs a um show, que lhe renderá um cachê próximo a 17 milhões de reais.
Pois bem, vamos a eles: com cerca de 400 milhões de discos vendidos na carreira, ela é ainda a artista feminina mais bem-sucedida da história (sob esse critério). Apenas Beatles, Elvis Presley e Michael Jackson venderam mais que a rainha do pop.
Suas canções fazem parte da memória inconsciente do fim do século 20, e não são poucas: se você esteve em algum centro urbano brasileiro recentemente, capaz de ter ouvido alguém assobiar "Like a Prayer" ou "Holiday" ou "La Isla Bonita" , ou mesmo o tema meio chiclete de "Four Minutes to save the world", gravada há vinte anos com Justin Timberlake, mas que ainda faz algum eco por aí.
Prestes a entrar na lista dos maiores shows gratuitos da história, ela já faz parte da história dos shows pagos no Brasil: em 1993, colocou 120 mil pessoas em no Estádio do Morumbi, quando o atual Morumbis ainda comportava isso tudo de gente.
Duas coisas gravadas nos 41 anos de carreira de Madonna Louise Ciccione que são invejáveis. A primeira é a disciplina invejável da cantora em fazer, de um show, um espetáculo. De alguém que chegou em Nova York atrás de uma carreira na dança e que, na epítome do sonho americano, virou o que virou. Talvez apenas Michael Jackson tenha capitalizado tão bem o nascimento da MTV em benefício próprio. Para se manter a rainha, ela ainda recorre a extremos: cantora correu risco de morte, no início da turnê atual, por supostamente se esforçar demais em acompanhar o ritmo de dança e treino de seus dançarinos, uns fedelhos de 20 anos.
A segunda só se pode entender conversando com fãs da cantora, alguns deles que estão neste momento sob o sol infernal carioca. Para esses, Madonna sempre foi a melhor fiadora de suas brigas, e nunca deixará de ser recompensada por isso.
Um exemplo: quando cantar "Live to Tell", no show deste sábado, o monstruoso palco em Copacabana exibirá imagens de Cazuza e Betinho, algumas das mais famosas vítimas da primeira onda de HIV no país, ainda nos anos 1990. Em um momento que a desconhecida doença se espalhava por todo o mundo e afetava principalmente a comunidade LGBT, Madonna incluiu em seu disco "Like a Virgin" uma cartilha ensinando como evitar o contágio pela doença
"O simples ato de colocar uma camisinha pode salvar sua vida, se ela for usada corretamente e toda vez que fizer sexo", se lia em inglês no encarte do vinil, antes da conclusão "Aids não é uma festa". Mensagens como essa viraram parte da educação sexual básica, governos como o brasileiro fabricam e dão o preservativo gratuitamente hoje e, apesar de não se saber ao certo quantas vidas foram salvas por mensagens educativas como essas, algumas delas facilmente estarão nas areias cariocas esta noite.
A aposta da cantora na sua base de fãs levou gays ao palco: seus dançarinos, músicos e produção eram abertamente homossexuais em um momento de estigmatização do grupo. Quando, a médio prazo, a transmissão do HIV desacelerou, novos medicamentos garantiram uma longa sobrevida aos soropositivos e relacionamentos homoafetivos foram normalizados em quase todo o mundo ocidental, os fãs de Madonna eram adultos, agora no holofote da sociedade.
(E, com isso, uma segunda geração de homens e mulheres pôde se colocar abertamente no mundo. Dada como sucessora natural de Madonna, Lady Gaga é uma máquina de sucessos que igualmente veste a camisa da sua base, os "little monsters", em sua maioria homens gays, em um discurso sobre aceitação e celebração de diferenças. Essa base muito fiel não deu o mesmo crédito a outros ícones LGBT, como George Michael ou Elton John.)
Mas, de volta à estrela da noite, os seus fãs que passaram por esses momentos no vale da morte sobreviveram e, de alguma maneira, prosperaram. Quando a sexualidade ainda era universalmente um tabu dentro de casa, ou em um momento de descoberta sobre garotos e/ou garotas, eles explicam, era Madonna e seu corset pontudo assinado por Jean Paul Gaultier que ofereciam uma saída do outro lado do Mar Vermelho. Ela, que não poucas vezes provocou polêmica com o uso de temas cristãos em sua obra (Like a Virgin, hey!), acabou por levar seu povo para o outro lado, onde havia uma praia de Copacabana, uma noite estrelada e um palco gigantesco.
Independentemente de qualquer ameaça futura que estes fãs vejam no futuro próximo, todos eles sentem que a hora é mesmo de "Celebração". A turnê mundial que se conclui hoje tem exatamente este nome. Se não for sair pra jantar nesse sábado, devo ligar a TV e dar uma espiada. Talvez você também devesse. Afinal de contas, não é todo dia.
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Comentários (6)
Amaury G Feitosa
2024-05-06 17:49:28Quem não tem colírio usa óculos escuros . toca Raul ...
Renata
2024-05-05 20:07:11Lady Gaga é muito melhor, tanto de voz como de repertório. Madonna é um dos maiores resultados de marketing já conseguidos. Tremendo sucesso de embalagem nova pra produto velho, fazendo-se de feminista e ousada como se fosse novidade e nunca tivesse havido nada antes.
MARCOS ANTONIO RAINHO GOMES DA COSTA
2024-05-05 15:55:06NÃO HOUVE NENHUMA CORTESIA DE FINANCIAMENTO POR PARTE DA TV GLOBO, DO ITAÚ OU DOS GOVERNOS ESTADUAL E MUNICIPAL. QUEM ESTÁ PAGANDO ESSA ENORME CONTA É O POVO CARIOCA.
Marcia Elizabeth Brunetti
2024-05-05 11:50:18Admiro muito a carreira de Madonna, sobretudo pela originalidade. As cantoras dessa geração sugaram da criatividade de Madonna. Só não sei até agora porque esse show de "graça"? Qual a finalidade? Estou sendo ingênua?
Odete6
2024-05-04 19:44:39Well...... ai.... ai.... "tempos estranhos".....
KEDMA
2024-05-04 11:58:50Sucesso para ela. Cresci com ela então não tenho muita ligação.