O nosso George Washington e o deles
O original derrotou um poderoso império colonialista e ajudou a estabelecer as bases da hoje tão maltratada democracia liberal. O nosso tentou levantar uma insurreição mequetrefe

George Washington. Responda rápido, leitor: em quem você pensou ao ler esse nome? Em circunstâncias normais de um país normal, qualquer pessoa com conhecimento mínimo de história pensaria no primeiro presidente da primeira república democrática moderna. Como nenhuma condição de normalidade se aplica ao Brasil, é mais provável que hoje se pense antes no terrorista malogrado preso pela polícia civil de Brasília na véspera do Natal.
Seu nome completo é George Washington de Oliveira Sousa. Ele tem 54 anos e é gerente de postos de gasolina em Xinguará, município do Pará, de onde viajou até Brasília, carregando armas, munição e explosivos, para se juntar à Horda Canarinha em frente a um quartel – e para causar o caos, segundo confessou à polícia. Ao que parece, ele imaginava que explosões e tiros incentivariam os militares indolentes a botar os tanques na rua para anular a eleição.
A trama criminosa ainda está por ser esclarecida enquanto escrevo este artigo. Colaboradores do suspeito preso seguem soltos, e falta apurar quem financiou a empreitada (em sua audiência de custódia, Washington disse que ganhava de quatro a cinco mil reais por mês, mas o valor do armamento e das munições com que foi preso chega a 160 mil). Mas eu estou mais intrigado é com as motivações do homem de nome esdrúxulo.
O George Washington de Xinguará não agiu por grana, mas por convicção. Foi tudo em prol da liberdade e contra o comunismo, segundo declarou em depoimento transcrito no auto de sua prisão em flagrante. Washington apoiava Jair Bolsonaro (esta frase teria outro sentido se Trump ainda ocupasse a Casa Branca). Em sua opinião, o agora ex-presidente é “um patriota e um homem honesto”. Washington andava se armando bem antes de sua atrapalhada ação criminosa, pois acreditava no slogan bolsonarista: “povo armado jamais será escravizado” (vale lembrar que, quando era oficial do exército, Bolsonaro também planejou explodir umas “espoletas" para protestar contra o soldo baixo).
A conta de Washington no Twitter traz outro lema, em caixa alta e com exclamações: “PRA FRENTE E FRONTALMENTE COM DEUS À FRENTE!!!”. Suas últimas postagens são anteriores ao segundo turno. Não trazem quase nenhuma opinião própria: ele apenas compartilha vídeos de políticos bolsonaristas e de jornalistas chapa-branca. Às vezes, adiciona um comentário breve, quase sempre xingando Lula de ladrão. Não se encontram ali motivos sólidos para que alguém se locomova 1300 quilômetros até um acampamento de patriotas na capital federal. E Washington percorreu essa distância carregando armas que, segundo seu depoimento à polícia, pretendia distribuir aos acampados. Montou bombas, uma das quais teria sido entregue a um sujeito que ele mal conhecia mas que se dispôs a explodi-la junto a uma torre de transmissão elétrica. Que desespero, que loucura teria levado um gerente de posto a se converter em terrorista?
Embora fale com aparente franqueza sobre seus mal concebidos planos, Washington não parece compreender a extensão do que tencionava realizar. A bomba que ele deixou com um quase desconhecido foi parar nos arredores do aeroporto, onde foi descoberta pela polícia, mas suas instruções para detoná-la teriam sido outras. “Não sou criminoso”, alegou Washington em um interrogatório, querendo dizer que sua intenção era explodir instalações elétricas para deixar Brasília no escuro, e não matar inocentes no aeroporto – como se o primeiro ato não fosse também um crime.
Em um lance curioso, Washington pediu ao delegado que excluísse de seu depoimento no auto de prisão todas as menções a Lula e Bolsonaro. Seu protesto, disse o acusado na audiência de custódia em que foi decretada sua prisão preventiva, não era contra o presidente eleito, mas contra as eleições. Estaria sugerindo que sua luta não se dava contra este político ou a favor daquele outro – que suas ações seriam movidas por… princípios? Não consigo distinguir bem que princípios seriam esses. Mas sei que não são bons.
“O que há em um nome?”, perguntava Julieta a Romeu, para então concluir que nomes são desprovidos de substância: uma rosa com outro nome teria o mesmo perfume. De forma inversa (e bem menos lírica), pode-se dizer que um gambá não cheira bem apenas porque o chamamos de Rosa. À frente de seus patriotas na Guerra da Independência, George Washington, o original, derrotou um poderoso império colonialista e ajudou a estabelecer as bases da hoje tão maltratada democracia liberal. Nosso George Washington tentou levantar uma insurreição mequetrefe e foi preso sem dar um só tiro – felizmente. Povo armado não será escravizado, mas preso e processado segundo a lei.
No momento em que Lula tomar posse, Jair Bolsonaro estará no país que George Washington fundou. O George Washington do Pará estará na Papuda.
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Comentários (3)
Eliana Teixeira
2023-01-02 21:58:10Excelente artigo!!!
Marcone Ulisses Cardoso
2023-01-01 15:01:27Jerônimo só uma correção ao seu primoroso texto, a cidade do Estado do Pará se chama Xinguara (paroxítona) e não Xinguará (oxítona). No mais, parabéns!
Odete6
2023-01-01 13:14:15É. Exatamente. E nós, pra variar, estaremos revivendo mais 4 anos sucedendo o inferno anterior, o que tornou-se um processo de retrocesso corriqueiro. A continuar assim, Pero Vaz de Caminha ainda será contratado pela Crusoé, o único que, afinal das contas, pôde dar boas notícias nossas.