Bolsonaro já não manda nem em seus seguidores delirantes
O presidente talvez tenha influência efetiva sobre uma minoria dentro da minoria: a turma que não quer "se adequar”, preferindo fantasias à realidade do país que voltará a ser governado pelo PT

Já houve um tempo em que eu me dizia de esquerda. Em um período mais recente dos meus 54 anos recém-completados, eu passei a me declarar de direita. Hoje, tenho certa preguiça de gente que bate no peito para dizer “sou de esquerda” ou esmurra a mesa para afirmar “sou de direita”.
Sei bem que essas categorias herdadas da Revolução Francesa ainda conservam sua relevância. Direita e esquerda constituem balizas indispensáveis, embora imprecisas, na conversa política média. Eu não teria problema em escolher um lado – digamos, a centro-direita – se os dois marcos não houvessem se convertido em receituários burros, pacotes de ideias prontas comprados por pessoas que se consideram politizadas. Como já devo ter dito aqui antes, quando alguém se declara contra ou a favor do aborto, muitas vezes já dá para saber sua opinião sobre maioridade penal, ou o que ela pensa sobre a privatização de bancos públicos. Eu prefiro considerar cada problema em seus próprios termos. Ou simplesmente não considerar certos temas, pois não precisamos ter opinião sobre tudo.
Esse introito vem a propósito dos dois minutos de Jair Bolsonaro na terça-feira, 1 de novembro. Ao longo de seus quase dois dias de silêncio, pairou a dúvida angustiada: ele iria reconhecer a vitória eleitoral de Lula, ou questionaria as urnas eletrônicas? Pois ele não fez nem uma coisa, nem outra. Declarou-se o líder orgulhoso de “milhões de brasileiros” que "defendem a liberdade econômica, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, a honestidade e as cores verde e amarelo da nossa bandeira”. Líder, em suma, da direita.
O engraçado é que, antes do pronunciamento, vi mais de um comentarista, na GloboNews, dizer que Bolsonaro, ao não falar à nação, deixava de prestar o devido reconhecimento aos 58 milhões de eleitores que votaram nele. E então ele lê uma declaração endereçada apenas a essa parcela do eleitorado. "A direita surgiu de verdade em nosso país”, celebrou. Não está errado nesta constatação – tema, aliás, de uma capa recente de Crusoé.
Uma pesquisa da Genial/Quaest realizada em outubro descobriu que 40% dos brasileiros se definem como de direita, contra 19% de esquerda, outros 19% de centro, e 22% que não têm posição. Devo esses dados à newsletter de Thaís Oyama. Ela observa que esta é a primeira pesquisa do gênero em que a direita aparece como opção ideológica da maioria dos brasileiros, e isso se deve à força de Bolsonaro. "O ex-capitão tirou a direita do armário —e ela agora não depende dele para se fazer ouvir”, conclui Thaís. Bolsonaro talvez não concorde com a última oração. Pois na terça-feira ele se apresentou como a voz e a liderança da direita.
Bolsonaro nunca deixará de ser um guerreiro cultural. Vê a si mesmo com um paladino do conservadorismo, um cruzado cristão rompendo o cerco dos sarracenos da esquerda, um santo cavaleiro da Ordem da Tilápia de Itaipu. O maniqueísmo estreito dessa visão de mundo se revelou no recado que o grande líder mandou aos soldados rebeldes que, durante seu período de recolhimento no Alvorada, bloquearam estradas país afora – recado que seria repetido em um apelo em vídeo na quarta-feira, sem o efeito esperado: enquanto escrevo, na quinta-feira de manhã, ainda há 73 bloqueios em sete estados.
Eis o recado da terça-feira: "As manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir.”
Por “nossos", entenda-se, claro, da direita. Houve um tempo em que de fato a baderna era monopólio quase exclusivo de movimentos sociais de esquerda, como o MST – o “exército de João Stédile”, como certa vez disse Lula. Mas a ideia de que a direita defende a lei e a ordem foi para o ralo nos últimos quatro anos. Este é, afinal, o governo que mandou um ministro da Justiça ao Ceará para passar a mão na cabeça de policiais amotinados que rasgavam pneus das próprias viaturas. Na pandemia, bolsonaristas promoveram buzinaços em frente a hospitais, e o próprio presidente, em uma live, sugeriu que seus seguidores invadissem hospitais de campanha para verificar se neles havia mesmo doentes. Se os caminhoneiros hoje se sentem autorizados a tocar o terror nas estradas porque não gostaram do resultado da eleição (eu já não gostei do resultado do primeiro turno, mas estou aqui, tranquilo, escrevendo e ouvindo uma música triste do Nick Cave), é porque o então deputado Jair Bolsonaro lhes deu apoio quando paralisaram o país na greve de 2018.
A direita carga-pesada idolatra Bolsonaro, mas cabe perguntar se seus militantes o têm como o líder em quem buscam orientação em todas as atividades políticas. Os caminhoneiros que se reuniram em Brasília no 7 de setembro do ano passado cultivavam uma esfera própria de delírio: em dado momento, circulou entre eles a notícia de que o presidente havia declarado estado de sítio, e que os onze ministros do STF haviam sido derrubados. Houve celebração e choro – uma cena que me provocou ao mesmo tempo riso e constrangimento. Enquanto isso, Bolsonaro buscava ajuda de Michel Temer para redigir uma cartinha conciliatória à nação.
Desde a divulgação do resultado das urnas, outras implosões do senso de realidade vêm se replicando nas redes bolsonaristas. Para todos os fins, a vitória de Lula foi reconhecida na terça-feira, com Ciro Nogueira anunciando o início da transição. Mas ainda há maluquinhos no Twitter anunciando que Bolsonaro em breve vai mostrar provas de que foi o verdadeiro vitorioso das eleições. Em uma manifestação bolsonarista em Porto Alegre, viu-se uma reedição da cena dos caminhoneiros em Brasília: uma multidão de verde e amarelo celebrou a notícia da “prisão em flagrante” de Alexandre de Moraes, nêmesis de Bolsonaro. (A conhecida máxima de Marx sobre a história começar como tragédia e repetir-se como farsa não se aplica ao Brasil: aqui já é farsa da primeira vez.)
No seu recadinho pós-eleitoral, Bolsonaro, sempre a vítima, reclamou de ser “rotulado de antidemocrático”. O caso é que ele tem uma concepção bem esquisita de democracia: seria, em suas próprias palavras, o regime em que “as leis protegem as maiorias” e “as minorias têm de se adequar”. Pois é como orgulhos líder de uma minoria que ele falou na terça-feira – não mais como presidente de todos os brasileiros, embora seu mandato ainda se estenda até o fim do ano. Será ilusório imaginar que ele é o líder efetivo dos 58 milhões que votaram nele no dia 30. Talvez Bolsonaro tenha influência efetiva somente sobre uma minoria dentro da minoria: a turma que não quer "se adequar”, preferindo fantasias sobre ministros do STF presos à realidade do país que voltará a ser governado pelo PT.
Eu disse "influência"? A palavra mais apropriada seria inspiração: os delírios de uma minoria barulhenta e bagunceira são inspirados por Bolsonaro. Mas ele não tem controle sobre eles.
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Comentários (10)
José Roberto Rezende Fully
2022-11-12 20:21:06JERÔNIMO TEIXEIRA colocou muito bem o assunto na sala, p/ não dizer aquele velho bordão: O bode na sala de jantar! Efetivamente os BOLSONARISTAS delirantes negam a realidade dos fatos porque lhes é conveniente e uma parcela dos mesmos, mais esclarecida, óbviamente sabe que o socialismo morreu e esqueceu de enviar notas na imprensa do Nosso País, e outra parte muito menos esclarecida está esperando a volta de STÁLIN p novamente enviá -lo aos infernos! Vamos aceitar a volta dessa infantil.
Max Botelho Victor Rodrigues
2022-11-08 11:08:47Excelente texto. Concordo plenamente!
ATÍLIO DE SOUZA BORGES
2022-11-08 09:46:55Realmente estamos em uma encruzilhada sem saber qual é a melhor direção. A carência de novas mentalidades no comando da Política Brasileira é uma fatalidade incontestável. Aliás, se renova o manejo da política como direito patrimonial, transferível de pai para filhos, às custas do erário público. De um lado, estimulando a miséria através de migalhas, de outro, incentivando a vadiagem com o que se arrecada daqueles que ainda trabalha e produzem. A tendência é o estrangulamento como resultado.
Amyr G Feitosa
2022-11-08 08:25:03A comunicação é importante estratégia do poder e isto Bolsonaro nunca fez de forma adequada e como todos presidentes pós CF de 1988 cometeu o grave erro de mudar e compraram a peso de ouro a reeleição na raiz de tantos males à nação tanto quanto à desbragada corrupção havida em todos governos e AO QUE PARECE menos neste já que ninguém pode frear um ladrão ou desonesto e neste país ridículo sob clara ditadura do STF a impunizar ladrões e soltar traficantes ... e os poderes violados viraram lixo.
Marcelo Guirro
2022-11-08 01:22:19Antagonista deixou de ser um Jornal imparcial. Vcs chegaram a analisar os dados do TSE e supostas anomalias apontadas pelo argentino ou é mais fácil chamar tds de delirantes? Eu assinei hj a Gazeta do povo, jornal bem melhor e ta R$120 anual, preço muito bom.
Luís Antônio Soares Da Silva
2022-11-07 18:58:16Delirante? Vcs agora são mídia esquerdopata? O que aconteceu? Colocaram galho dentro? Que houve c o jornal que eu assinei?
angela maria mansur rego
2022-11-07 18:30:56NAO IREI RENOVAR MINHA ASSINATURA. VOCES ACOLHEM O LADRAO E TODA A CORJA QUE O ACOMPANHA. CONTINUEM APLAUDINDO E AVALISANDO A ROUBALHEIRA
Paulo
2022-11-07 12:50:36Aos arautos da discutível vitória do meliante, é bom sempre lembrar que a maioria dos eleitores NÃO votou nele. Ele teve 60 milhões de votos; Bolsonaro teve 58 milhões. Mas brancos, nulos e abstençôes somaram cerca de 38 milhões. Assim 58+38=96 milhões de eleitores que não sufragraram o ex-presidiário, numero muito mais expressivo que os 60 que o preferiram. A insatisfação que se manifesta nas ruas é apenas um reflexo espontâneo da injustiça e truculência processo eleitoral comandado pelo TSE.
Marcello
2022-11-07 12:41:15Lula e JB, os preferidos do “Mecanismo”!
Juca
2022-11-07 12:28:42Manda, SIM!