O dia em que Salman Rushdie desafiou os aiatolás com um hino gay
“Longo caminho para a recuperação.” A expressão apareceu em virtualmente todos os sites de noticia nos dias que seguiram ao atentado à vida de Salman Rushdie, em Chautauqua, estado de Nova York, na sexta-feira 12. Foi Andrew Wylie, agente literário do autor de O Último Suspiro do Mouro, quem empregou esses termos ao comunicar, no...
“Longo caminho para a recuperação.”
A expressão apareceu em virtualmente todos os sites de noticia nos dias que seguiram ao atentado à vida de Salman Rushdie, em Chautauqua, estado de Nova York, na sexta-feira 12. Foi Andrew Wylie, agente literário do autor de O Último Suspiro do Mouro, quem empregou esses termos ao comunicar, no fim de semana, que seu cliente já não dependia de respiração mecânica. Começava assim o “caminho para a recuperação”, que seria longo.
Essas cinco palavras – longo caminho para a recuperação – condensam toda a covardia do crime cometido por um fanático a mando dos aiatolás. Esfaqueado no rosto, no braço e no abdome, um senhor de 75 anos agora se vê obrigado a uma custosa temporada no hospital. Quando receber alta, ainda terá de se adaptar a sequelas e limitações físicas, incluindo a perda da visão de um olho.
O longo caminho também me impressiona por extrapolar nossa capacidade de atenção. Por ora, recebemos atualizações regulares sobre o ainda precário estado de saúde do ficcionista indiano-britânico. Aos poucos, porém, as notícias começam a ficar mais espaçadas. Em algum momento nas próximas semanas – assim espero –, ouviremos que Rushdie está saindo do hospital. Virá depois a sua primeira entrevista depois do atentado, e então o nome de Salman Rushdie deixará os sites de notícia até o lançamento de seu próximo livro (de novo: assim espero).
Emitida em 1989 pelo aiatolá Khomeini, líder da revolução islâmica no Irã, a fatwa (decreto de um clérigo muçulmano) que mandava matar o autor do romance Os Versos Satânicos por alegados sacrilégios contra o profeta Maomé também desapareceu do noticiário ao longo dos nove anos em que Rushdie permaneceu sob a guarda dos serviços de segurança britânicos. Nos anos seguintes, a ameaça parecia ter se esvanecido. Sob o estrondo que o terrorismo sunita causou no 11 de setembro de 2001, a teocracia xiita do Irã e suas ambições atômicas tornavam-se problemas de segunda ordem. O próprio Rushdie relaxou a vigilância. Em artigo nesta Crusoé, Carlos Graieb, que entrevistou o escritor em 2005, quando ele estava para lançar o romance Shalimar, o Equilibrista, conta que Rushdie deixou o hotel onde concedeu a entrevista sozinho, andando despreocupado pelas ruas de Londres.
Em texto publicado pela revista The New Yorker, a jornalista Robin Wright lembra que, em 1998, ouviu do então presidente iraniano, Mohammad Kathami, que a "questão de Salman Rushdie” estava “completamente encerrada”. A declaração era parte do esforço de um governo relativamente moderado para romper o isolamento internacional do país. Mas, como Wright demonstra, o decreto que Khomeini expediu – aliás, sem ter lido Os Versos Satânicos – jamais foi anulado.
Cinco dias antes da tentativa de assassinato em Chautauqua, relata a New Yorker, uma agência de notícias iraniana reafirmava a validade da fatwa. E poucas horas depois do atentado, o jornal Kayhan – cujo editor-chefe foi indicado pela maior autoridade religiosa do Irã, o aiatolá Khamenei – exaltava o criminoso: “Devemos beijar a mão do homem que rasgou o pescoço do inimigo de Deus”.
O homem que infligiu ferimentos graves a Rushdie (mas, felizmente, não rasgou seu pescoço) é um americano de 24 anos chamado Hadi Matar. Descendente de libaneses, ele professava, em suas redes sociais, admiração por líderes do governo iraniano e do Hezbollah, milícia terrorista associada ao Irã. Matar nasceu quase dez anos depois da fatwa de Khomeini. O ódio e o ressentimento também percorrem longos caminhos, atravessando décadas e gerações.
O ódio e o ressentimento islâmicos vêm sendo tratados com condescendência abjeta por muitos companheiros de ofício de Rushdie. Para ficar em um exemplo: em 2015, o jornal satírico francês Charlie Hebdo recebeu um prêmio do Pen Club por sua coragem na defesa da liberdade de expressão. A homenagem teve lugar no Museu de História Natural de Nova York em maio daquele ano, quatro meses depois de um ataque terrorista à redação do Charlie ter deixado 12 mortos em Paris. Seis dos escritores convidados boicotaram o evento. Outros 200 autores firmaram um abaixo-assinado de protesto contra a homenagem. Alegava-se que os cartunistas do Charlie Hebdo encarnavam a islamofobia francesa. Na lógica dos que se opunham à premiação do Charlie, um mero cartum debochando dos dogmas do Islã convertia-se em arma dos opressores coloniais. Não obstante as protocolares condenações à violência que os adeptos desse ideário sempre fazem, fica implícito nessa conversa que a AK-47 na mão do terrorista que grita Allahu akbar enquanto fuzila suas vítimas seria apenas um instrumento para expressar a mais sagrada das revoltas.
Salman Rushdie, coerente, defendeu a liberdade anárquica representada pelo Charlie Hebdo em 2015. E agora o Charlie Hebdo divulgou uma carta de apoio a Rushdie em sua longa caminhada para a recuperação.
Como Carlos Graieb bem lembrou, Rushdie nunca desejou se ver reduzido à fama do “escritor da fatwa”. Mas é inegável que a perseguição lhe conferiu autoridade moral na luta contra o fanatismo e a favor da liberdade artística. Causa pasmo que tantos escritores e intelectuais não o acompanhem na defesa de causas tão básicas. Tem sido assim desde os primeiros dias da fatwa, quando John Le Carré apressou-se a dizer que as grandes religiões não devem ser insultadas. Em outro belo texto na New Yorker, Adam Gopnik critica o pressuposto em que se amparam todos os que justificam a violência contra escritores que “ofendem" a religião: a ideia supersticiosa de que palavra e ação são equivalentes – ou, traduzindo em termos concretos e brutos, a ideia que uma obra de ficção ou um cartum podem ser agressões comparáveis a um tiro ou a uma facada.
Gopnik lamenta que essa ideia esteja ganhando tração em todos os lados da guerra ideológica nos Estados Unidos. Eu diria, aliás, que a mesma ideia é responsável pelo “cancelamento" de um artista que por pouco não foi esfaqueado no palco como Rushdie. Mas isso deve ser tema de um texto futuro. Hoje, quero encerrar com uma nota mais otimista (o que será raro nesta coluna).
Volto ao ensaio de Gopnik para buscar uma passagem mais leve. Ele conta que certa vez viu Salman Rushdie cantar I Will Survive em uma festa com karaokê, em Londres. Não imagino que o escritor tenha afinação para tanto. Ainda assim, deve ter sido uma experiência inesquecível ouvi-lo interpretando a canção de Gloria Gaynor que se converteu em hino gay. Gopnik apresenta essa anedota como uma amostra do humor autodepreciativo de Rushdie, mas quem diz que não não pode ser um exemplo de merecida autocelebração? Ou talvez até um desafio ao obscurantismo de aiatolás e terroristas? A canção, afinal, começa com a frase “primeiro, eu tive medo”, para depois explodir no refrão: “vou sobreviver”.
Que Rushdie sobreviva, e que supere o longo caminho para a recuperação. Que volte a publicar livros. Que volte a cantar karaokê.
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Comentários (10)
Sônia
2022-08-30 08:09:27Que possa ser livre....
HENRIQUE SOLON BRANDAO KNOEDT
2022-08-26 07:59:18Jerônimo traduz bem essa nossa impressão, de que a imprensa ocidental se acovardou perante as ameaças e atos repugnantes dos terroristas islâmicos.
Rosele Sarmento Costa
2022-08-26 07:02:54Viva Rushdie! Obrigada pelo excelente texto! #NãoAoFanatismode QualquerEspécie! Ele embrutece as pessoas!
Rosele Sarmento Costa
2022-08-26 06:59:51Viva longa a Rushdie, torcendo pela sua recuperação, e que venham mais livros. O obscurantismo não pode prevalecer sobre a cultura! Fora fanatismo de qualquer espécie!
André Machado
2022-08-23 10:34:10Obrigado pelo excelente texto.
Douglas Domingues De Sena Alves
2022-08-22 11:24:48Viva a liberdade de expressão!!!
Carlos
2022-08-22 11:20:15Não acredito em Deuses e profetas cuja religião e seus adeptos são incitados à violência, como forma de proteger a honra e a santidade de suas crenças. Várias religiões na historia da humanidade fizeram o mesmo o que mostra como frágeis e inconsistente são suas pregações.
Luiz Victor Lima Macedo
2022-08-22 09:59:25Como um amigo disse abaixo, tenho também que admitir: tenho muito a aprender...
Pedro Lemos
2022-08-22 09:53:28Excelente texto. Parabéns.
Jaime
2022-08-21 21:01:17Ao autor deste artigo, tenho a dizer: "Quer respeito? Respeite." No Brasil, alguns Ministros do STF, amparados não pela Lei, mas pela posição que ocupam, rasgam a Constituição Federal em nossa frente, perseguem, fazem o Diabo, e nada podemos contra eles. São intocáveis e defendidos por muita gente. Uma seita? Notem a capa que usam. Uma Irmandade. Um cara do TRE pediu, em vídeo, aposentadoria por discordar do STF. e suas ações. Eles prendem pessoas - e pessoas se matam nas prisões. Diferença??!!