Caetano Veloso, 80 anos de ambiguidades
Nas ocasiões em que volto à música de Caetano Veloso me interessa a pergunta singela mas dolorosa que o cantor faz em Cajuína: “existirmos, a que será que se destina?"

"O sol nas bancas de revista me enche de alegria e preguiça."
Essa passagem de Alegria, Alegria me veio à mente outro dia, quando parei em frente a uma banca da minha vizinhança em São Paulo. Era um dia nublado, e portanto não havia sol (nem The Sun, pois não se tratava de uma banca londrina). Mesmo em dias claros, porém, o sol já não brilha para as revistas: na banca que eu contemplava cheio de tristeza e cansaço, o espaço ocupado por badulaques variados e salgadinhos vagabundos já era maior que aquele reservado à palavra impressa. Sintoma da crise da imprensa, que no entanto se reinventa: as revistas hoje são digitais, como esta Crusoé. Busco evitar idealizações do passado, mas naquele dia me deixei levar pelo saudosismo, daí ter evocado o verso de Alegria, Alegria. É como diz o título de outra canção do mesmo compositor: Nostalgia (That’s what rock'n'roll is all about).
Em 1967, quando Alegria, Alegria foi lançado em um compacto, a banca de revista ainda pareceria um signo de modernidade. Outras referências da letra, como a então esfuziante Brigitte Bardot, envelheceram muito literalmente e talvez já não sejam familiares ao leitor mais jovem (aliás, talvez eu precise explicar o que era o tal compacto de que falei acima: tratava-se de um disco de vinil pequeno, em geral com uma canção de cada lado; era como se lançavam os singles nos anos 60 e 70).
No entanto, ouvindo Alegria, Alegria enquanto escrevo, sinto nos acordes de guitarra que abrem a música uma vibração que segue viva e nova. “Eu vou, por que não?”, diz o sujeito da canção. Ele só não diz para onde vai, e nessa indeterminação há uma ânsia de liberdade que ainda deveria falar a nossa alma. Ou não?
Criador de Alegria, Alegria, Caetano Veloso está de aniversário. Completa 80 anos hoje, 7 de agosto. Fará uma live para marcar a data. Outras tantas celebrações virão – ou já apareceram nos segundos cadernos e em eventos de institutos culturais. Torna-se um tanto difícil visualizar o cantor, hoje, como o personagem contracultural que caminha contra o vento, sem lenço nem documento. Pois Caetano converteu-se em uma instituição, um monumento vivo da música popular brasileira.
Ele também adquiriu ares de oráculo da vida pública nacional, a despeito de seus vaticínios um tanto erráticos. O apartamento em que o compositor baiano vive com a mulher Paula Lavigne, no Rio de Janeiro, tornou-se um centro de acontecimentos artístico-políticos. Lá se gestou o Procure Saber, grupo que em 2015 lutou pela manutenção da censura (derrubada pelo STF) de biografias não-autorizadas e dois anos depois se posicionou contra o fechamento, sob pressão de reaças e carolas, da mostra Queermuseu, em Porto Alegre. Em 2017, foi também nesse apartamento que um grupo de artistas se reuniu para declarar oposição ao governo de Michel Temer. Mais recentemente, em maio, Lula e Janja foram lá conversar com Caê e Paula – segundo se noticiou, discutiram cultura e meio ambiente. Anitta fez mais barulho quando declarou apoio a Lula, mas não foi visitada pelo candidato: essa é uma deferência que só se faz a um ícone da cultura nacional. Ao que parece, Caetano, como Lula, é uma ideia.
Nos anos 1960, Caetano ainda não era esse medalhão superlativo. Como expoente do tropicalismo, ele enfrentou a hostilidade da esquerda ortodoxa e a truculência da direita então no poder. Como é próprio da dinâmica social das vanguardas, aquilo que de início era transgressor aos poucos torna-se convenção. A celebração dos 80 anos será, prevejo, plácida e universal – salvo nos círculos vociferantes do bolsonarismo, de onde no entanto não sairá qualquer crítica articulada à obra e à política de Caetano Veloso.
A consagração geral tende a embalsamar o artista no caldo conservador dos lugares comuns. O fã incondicional dirá que a inquietude de Caetano resiste a essa tendência, mas tal afirmação é ela mesma um lugar comum. Em seu disco mais recente, que leva o título coloquial e imodesto de Meu Coco, o cantor baiano demonstra inegável vigor criativo, mas percorre caminhos já familiares. No comentário social e na inventividade verbal, Anjos Tronchos, faixa que puxou o novo álbum, fica a dever a, digamos, O Estrangeiro: é Caetano diluindo Caetano.
Também é assim na postura pública de Caetano, que desde o furibundo discurso no Festival Internacional da Canção de 1968 (“É isso a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada") sempre foi performática. Do “Fora Temer” ao “Lula Livre”, as posições progressistas na sala de estar de Paula Lavigne são tão previsíveis e chatas quanto as opiniões das “pessoas da sala de jantar” cujo convencionalismo era ridicularizado no disco-manifesto da Tropicália. O encantamento de Caetano com o neostalinismo do youtuber Jones Manoel não chega a constituir exceção a esse quadro: parte considerável da esquerda brasileira parece acreditar que seus anacronismos monstruosos constituem uma forma radical de “resistir" ao conservadorismo primitivo de Bolsonaro.
Há até bem pouco tempo, a elasticidade política do compositor baiano era motivo de piada. Capaz de elogiar de Antônio Carlos Magalhães a Mangabeira Unger e de ir do petismo ao tucanismo às vezes em uma só entrevista, Caetano parecia repetir continuamente um verso de Ele me Deu um Beijo na Boca: “sim, mas sim, mas não, nem isso”. Suas ambiguidades e ambivalências na política talvez espelhassem a estética tropicalista, que conjugava o brega e o chique, o atrasado e o moderno, Vicente Celestino e João Gilberto. Em algumas canções, essa inconstância eclética ganha a forma de uma traço do caráter brasileiro – um traço ao qual o compositor atribui uma beleza própria, original. Por exemplo, em Americanos: “…aqui embaixo [vale dizer, no Brasil] a indefinição é o regime,/ e dançamos com um graça cujo segredo/ nem eu mesmo sei”.
Em Fora da Ordem, a ambivalência de progresso e atraso ganha contornos quase trágicos: “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”, canta um desiludido Caetano. Na anterior Vamo Comer, o compositor se irrita com as contradições e – numa passagem política e poeticamente banal – diz esperar por alguém capaz de "equacionar as pressões do PT, da UDR” para “fazer dessa vergonha uma nação”. Em 1987, quando essa música tocava nas rádios FM, a União Democrática Rural despontava como antípoda do PT. Será que nessa levada de “equacionar" contrários Caetano agora proporia um meio termo entre bolsonarismo e lulismo? Duvido. Mas o que isso importa, afinal? Ninguém ouve canções em busca de novos projetos políticos ou políticas públicas.
O que eu busco nas ocasiões em que volto à música de Caetano Veloso não é uma tradução lírica de sua postura política, que com frequência me aborrece. Tampouco é a efusão tropicalista de que me lembrei diante dos pacotes de Ruffles e Doritos expostos no que costumava ser uma banca de jornal (“quem lê tanta notícia?”). Melancolia, melancolia: me interessa antes a pergunta singela mas dolorosa que o cantor faz em Cajuína (e repete na menos conhecida Giulietta Masina): “existirmos, a que será que se destina?”. E me encanta o desalento desta utopia desprovida de messianismo: “Vejo uma trilha clara para meu Brasil, apesar da dor/ Vertigem visionária que não carece de seguidor” (em Nu com Minha Música). Apesar de descrente, me junto à prece de Araçá Azul: “Com fé em Deus, eu não vou morrer tão cedo”.
Um feliz aniversário para esse cantor triste.
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Comentários (10)
Jarbas Jácome de Oliveira
2022-08-08 17:08:50Grande Caetano, merece todo nosso respeito. Parabéns, continue contribuindo com nossa cultura.
Celso
2022-08-08 15:38:39Parabéns pela crónica. Esse é Caetano
Luiz Sergio Delgado Vichy
2022-08-08 15:21:34Meu caro Jeronimo, o título em destaque de seu artigo "o sol nas bancas de revista" ... na verdade não se refere ao sol, o astro-rei, e sim ao jornal O Sol, um tablóide que existia na época. Procure saber...
Pedro
2022-08-08 13:19:56Prezado Jerônimo Teixeira. Não se deve confundir o artista- pessoa física- com sua obra. Também é injusto- ou imprudente- querer interpretar hoje versos de contextos passados bem como atribuir a todas as falas um lugar politico que pode não ter necessariamente havido. Como ser humano ele pode sim ter vacilado e sido incongruente , mas há dezenas de outras canções que registram seu vigor criativo, poético. Não sejamos tão duros. Há muitos por aí merecedores dessa dureza, não achas?
EDUARDO
2022-08-08 12:35:50Faltou dizer que artistas que fizeram sucesso surfando a onda anti ditadura (da direita) dos anos 60 sempre aproveitam uma brecha para tentar repetir o sucesso da mesma forma antiga: se contrapondo a figuras pitorescas como os Bozos da vida! Percebem que a "mina de ouro" está ali, sempre pronta a fazer coisas ridículas que fatalmente lhes permitirão voltar "à cena do crime" como protagonistas de duas correntes anacrônicas persistentes no Brasil: A esquerda caviar e a direita populista!
Dulce
2022-08-08 11:59:30Caetano, cantando, é mágico. Calado, é um poeta.
Ana
2022-08-08 10:52:45Belas músicas, mas, sem dúvida, um esquerdista caviar.
Álvaro Andrade
2022-08-08 10:30:24texto longo, chato, repetitivo e profuso em erros de digitação e - por incrível que pareça - até mesmo de transcrição.
Ronalde Segabinazzi
2022-08-08 09:47:48Como, atualmente, considerar Caetano avançado no tempo quando tem como ídolo político um retrógrado como Lula? Caetano é um estacionado no passado. Como você afirma: "o cantor baiano demonstra inegável vigor criativo, mas percorre caminhos já familiares"
Yeda Maria Barizon De Lemos
2022-08-08 08:56:05Ele é tão contraditório que ao invés de se exilar em Cuba se exilou em Paris, por quê será????