O crime de Foz do Iguaçu é uma amostra do país dos sonhos de Bolsonaro
Num Brasil onde carregar uma arma é uma obrigação cívica, o que resta para aquela porção do povo que não quer carregar um revólver na cintura?
A câmera de segurança não grava áudio. O crime foi registrado em silêncio: não se ouvem os gritos de guerra do assassino no momento em que invade a festa de aniversário de sua vítima, não se ouvem os tiros que os dois trocaram, não se ouvem os diálogos confusos que devem ter tomado a sala depois do tiroteio.
Na cena muda, tampouco se vê aquela estilização da violência armada a que o cinema nos acostumou. Tudo muito rápido, tudo muito feio: Marcelo Arruda, ferido, abriga-se entre duas mesas; Jorge José da Rocha Guaranho entra com arma em punho, seguido da mulher de Arruda, que em vão tenta segurar o atirador pelo braço. O brilho na boca da arma denuncia um tiro. Do chão, Arruda também atira. Guaranho foge para o outro lado do salão e tomba junto a um porta de vidro. Segue-se a movimentação meio aparvalhada que é natural em situações de choque: os convivas da festa andam de um lado para o outro, entram e saem da sala, aproximam-se de Arruda, afastam-se, sacam os celulares para chamar socorro médico. Dois homens se põem a chutar o assassino; um terceiro homem atravessa o salão com o braço estendido, acusatório, provavelmente ordenando que parem de agredir uma pessoa caída. Parece ser obedecido.
O barulho que essa cena quieta causou foi imenso, por uma razão básica: no crime ocorrido em Foz do Iguaçu, a “guerra cultural” que vem dividindo a política em campos belicosos e sectários ganhou uma encarnação literal, concreta, bruta. Guaranho, um bolsonarista, invadiu a festa de aniversário de Arruda, um petista, para matá-lo a tiros. Também armado, o petista buscou defender-se, mas acabou morrendo no hospital. O bolsonarista saiu gravemente ferido. No momento em que escrevo, segue internado na UTI.
Fria e imparcial, a câmera de segurança também nos mostra uma janela humilde e metafórica para uma paisagem ainda não inteiramente poluída pela beligerância ideológica. Está na parede do local do crime, à esquerda da decoração em que avulta o número 50, idade que Arruda estava completando. O acidental petista que porventura me lê entusiasma-se, imaginando que me refiro a um cartaz de Lula que o aniversariante deve ter afixado na mesma parede. Não, de modo algum! Estou falando de um anúncio apolítico, no qual se distinguem duas palavras: TINTAS BRASIL.
Recorrendo ao Google, descubro que no Brasil há várias lojas de tinta chamadas, veja só, Brasil. A Tintas Brasil de Foz do Iguaçu tem página no Facebook. Entre anúncios de argamassa e sugestões para pintar uma parede da sala com cor diferente das demais, encontro um texto breve com “esclarecimentos”. Tintas Brasil diz que não apoia nenhum partido ou candidato: apenas patrocina o clube social da Aresfi (Associação Recreativa e Esportiva da Segurança Física), onde Marcelo Arruda fez sua trágica festa. Dado esse recado sucinto, Tintas Brasil encerra a nota prestando “condolências aos familiares das pessoas envolvidas".
Tudo o que se esperava de um presidente da República – e, como já era previsível, tudo o que a figura histriônica que hoje ocupa o cargo não foi capaz de fazer – está contido nessa nota.
O momento exigia que Bolsonaro, como representante eleito de todos os brasileiros e não só dos pseudoliberais e dos reaças, se elevasse (contenha o riso, leitor!) sobre disputas comezinhas para pedir paz (ok, agora pode rir…) e condenar a violência política, venha de que campo ideológico vier. O que ele fez? Sugeriu que só a esquerda é malvada.
(Em tempo: na retórica e nos atos, o PT reiteradas vezes se mostra, sim, violento. Basta lembrar a ameaça do “exército de Stédile”. Ou, mais recentemente, o elogio canalha que Lula fez a Manoel Eduardo Marinho, o “Maninho do PT", ex-vereador de Diadema que empurrou um empresário contra um caminhão e fugiu sem prestar socorro quando o agredido caiu inerte no chão, com traumatismo craniano – e tudo porque esse homem gritou uns desaforos na porta do Instituto Lula. Mas não foi em nome de Lula que Guaranho entrou atirando em uma festa de aniversário.).
Os protocolos do cargo e a decência humana mínima obrigavam Bolsonaro a oferecer condolências à viúva e aos filhos de Arruda. Ele preferiu contatar irmãos do petista assassinado para convencê-los a entrar na campanha para livrá-lo de qualquer implicação no caso.
Há uma investigação policial em curso e não se conhecem ainda todos os detalhes do crime em Foz do Iguaçu, mas, fiel a seu método, Bolsonaro já tenta distorcer tanto os pontos duvidosos quanto os fatos estabelecidos. Disse, por exemplo, que os convidados de Arruda, “todos petistas”, chutaram a cabeça de Guaranho quando o assassino já estava no chão, ferido. É muito próprio de sua concepção ideológica estreita supor que no aniversário de um petista só haverá convidados petistas. Testemunhas disseram, ao contrário, que colegas bolsonaristas de Arruda compareceram à festa. Pois Arruda era guarda municipal, e sua viúva é policial civil, categorias nas quais o bolsonarismo tende a ser predominante (Guaranho, aliás, é policial penal federal).
O presidente também disse aos fiéis de seu cercadinho que Arruda começou as agressões, atirando uma pedra no carro de Guaranho. Ainda que fosse assim (na verdade, um punhado de terra foi arremessado), e ainda que as investigações concluam que Guaranho foi linchado por petistas, nada altera o fato de que o assassino é um bolsonarista fervoroso, como suas redes sociais atestam. Bolsonaro sugeriu que a imprensa – sempre ela – inventou isso, e que o crime foi apenas uma “briga entre duas pessoas”. “O que eu tenho a ver com esse episódio de Foz de Iguaçu?”, perguntou o presidente.
Eis o que Bolsonaro tem a ver com o episódio de Foz de Iguaçu: a cena registrada pela câmera do Clube Aresfi é um modelo em miniatura do país armado de seus sonhos. Pois o armamentismo, para Bolsonaro, não diz respeito apenas à segurança pública. Ele tem dito que é preciso armar o povo para a resistência a potenciais tiranias. “Povo armado jamais será escravizado” é seu bordão. Se isso é verdade, o que restará para a porção do povo que não deseja carregar um três-oitão no cinto, da qual faço parte? Estaremos sujeitos a trabalhos forçados em uma loja da Havan?
Na imaginação doentia de Bolsonaro, o porte de armas não é um direito, mas uma obrigação cívica. Desenha-se aí um mundo no qual o cidadão, sozinho ou como parte de uma milícia bem organizada, resolverá as diferenças que tem com seus vizinhos a bala. Como Jorge José Guaranho tentou fazer.
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Comentários (10)
Francisco
2022-07-19 08:10:04Assassinatos ocorridos no país em 2021, 40 mil cem mortes .O articulista está valorizando tanto o crime (que não deixa de ser um absurdo) como se o Brasil fosse a Suécia. Querer responsabilizar o Bolsonaro pelo crime seria a mesma coisa que responsabilizar o ex presidiário/descondenado pelos roubos que ocorrem todo dia no país.
Heitor
2022-07-18 10:45:18Cadê as flores e o amor num caso desses que a esquerda sempre diz que usaria
Heitor
2022-07-18 10:45:07Cadê as flores e o amor num caso desses que a esquerda sempre diz que usaria
Marco
2022-07-18 07:38:44Um absurdo, mas uma pergunta: só esse tipo de crime é crime....? qtos brasileiros morrem por dia por absoluta ausência do " estado democrático ". A liberdade, aceitação das drogas , a corrupção não mata??. Estamos por todos os lados fer...ados.
Míriam
2022-07-18 07:13:49Muitas questões já estão sendo resolvidas a bala, infelizmente.
Odete6
2022-07-18 02:08:46petralhasladralhas e e bolsonerosladralhas são 2 vertentes doentias, vocacionadas para as desgraças e, que adoram vampirizar eleitoreiramente também as tragédias do POVO BRASILEIRO que os sustenta!!!
Nyco
2022-07-17 23:32:05O PR Bolsonaro ligou no dia seguinte para a família da vítima prestando suas condolências e se declarou totalmente contra esse tipo de violência. O quê mais esse jornalistazinho maconheiro quer? __ Quanto ao porte de arma, tira que quer, ninguém é obrigado. __ Eu já comprei a minha 380 para me proteger das "Vítimas da Sociedade".
Palhaço Bozo
2022-07-17 22:58:22Petismo e Bolsonarismo são duas doenças sociais. Se transformaram num vírus simbiótico do mal, onde dois parasitas pestilentos se mesclaram para se retro alimentarem um do outro como forma de sobrevivência. O resultado disso é uma sociedade padecendo de uma doença muito pior que a covid, pois é uma doença mental que aliena e emburrece as pessoas independemente de classe social, credo ou cor. E os zumbis continuam se multiplicando cada vez mais. Triste futuro nebuloso que nos aguarda...
MARCOS
2022-07-17 19:19:02Fanatismo em seu último grau, tanto os comentários de Bolsonaro quanto os proferidos por Lula, e seus fanáticos seguidores.
Arnaldo
2022-07-17 17:48:01O mínimo que o lula e o bolsonaro poderiam ter feito, era condenar imediata e veementemente essa violência, e não relativizar, visando justificar e até defender os atos de seus seguidores fanáticos.