O assassinato do petista Marcelo Arruda: não foi só uma "briga entre duas pessoas"

Intolerância, a tragédia brasileira

15.07.22

O Brasil conhece bem a violência política. Desde o começo de 2019, mais de 1.200 ocorrências desse tipo foram registradas no país, segundo o Observatório da Violência Política e Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). São homicídios, sequestros, atentados, ameaças, agressões. Os homicídios com motivação política não são incomuns. Só no primeiro semestre deste ano, houve 40 registros. Mesmo nesse cenário que está longe de ser pacato, contudo, o assassinato do guarda municipal Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, causa alarme. Os crimes compilados pelos pesquisadores da Unirio são aqueles cometidos contra lideranças políticas e seus familiares. Embora Arruda fosse tesoureiro do PT em sua cidade, não foi em razão desse cargo ou de outra atividade partidária que ele foi assassinado. O que despertou a raiva do policial penal federal Jorge José da Rocha Guaranho contra ele foi a decoração da festa de aniversário de Arruda, repleta de símbolos petistas e imagens de Lula. Guaranho é simpatizante de Jair Bolsonaro. A briga entre um petista e um bolsonarista, que terminou com a morte do primeiro e a internação do segundo em estado grave, é alarmante porque se deveu ao mero fato de eles terem opiniões divergentes. Insufladas e manipuladas ao longo de anos, as paixões políticas de gente comum se transformaram em intolerância no Brasil e acabam de provocar um homicídio durante uma festa de aniversário, numa noite de sábado.

Jair Bolsonaro tem dito repetidamente que enxerga a política como uma luta do Bem contra o Mal. Para deter o Mal, o uso de qualquer recurso está obviamente justificado. Violência e política estão intrinsecamente ligadas nas suas falas. Ele defende o emprego da tortura durante a ditadura militar e já fantasiou sobre uma guerra civil que mataria “uns 30 mil, fazendo o trabalho que o regime não fez”. O comunismo é o seu espantalho: todos os cidadãos de bem devem ser armar para impedir a sua chegada. Os petistas, a ameaça imediata, deveriam ser fuzilados (mais uma fantasia sangrenta). Essa pulsão de morte já alimentou centenas de milhares de publicações nas redes sociais e aplicativos de mensagens, que imaginam ministros do STF e outras autoridades sendo submetidos aos mais terríveis castigos, quando não descambam para ameaças verdadeiras – vide o caso Daniel Silveira.

Seria incorreto dizer, no entanto, que os discursos violentos entraram na política brasileira recente por meio do bolsonarismo. Muito antes de Bolsonaro sair da obscuridade, o PT já havia instituído a lógica do “nós contra eles“. Esse “eles” não se define em termos religiosos, mas de classes sociais e filiação ideológica, e abarca todos aqueles que não pertencem à galáxia petista e suas adjacências. A ideia de que a violência pode ser aceitável na política não está de forma alguma excluída do imaginário do PT e de sua maior liderança. Em 2015, quando o governo de Dilma Rousseff começou a desmoronar, Lula subiu a um palco e disse, referindo-se a um mandachuva do MST: “Quero paz e democracia, mas também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stedile colocar o exército dele nas ruas.” Há poucos dias, ele homenageou como herói um ex-vereador petista que, em 2018, empurrou para cima de um ônibus um empresário que xingava o ex-presidente em frente ao Instituto Lula. A agressão resultou em traumatismo craniano e o agressor permaneceu preso por sete meses, acusado de tentativa de homicídio.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéLula discursa nesta semana: muito além de palavras duras
Os discursos de ódio, à direita e à esquerda, tornaram-se corriqueiros. Eles se retroalimentam. A questão é saber se uma conexão direta pode ser feita entre as palavras dos políticos e os gestos de seus seguidores. O aumento da xenofobia na Europa e a polarização política nos Estados Unidos têm levado muitos psicólogos e cientistas sociais a se voltarem para esse tema. Essas pesquisas indicam que, sim, a exposição cotidiana a palavras incendiárias está ligada ao aumento do número de incidentes violentos e de crimes relacionados à política.

Um desses estudos foi publicado pelo cientista político americano James Piazza, em março de 2020. Ele compilou dados de 156 países e desenvolveu diversas análises para tentar isolar a influência da retórica política sobre atos de “terrorismo doméstico” (ou seja, ações violentas inspiradas por uma crença ideológica). Os resultados mostraram que países onde os políticos recorrem com frequência ao discurso de ódio, incentivando a polarização política, registram muito mais episódios de terrorismo doméstico. Entre 2000 e 2017, países onde os discursos carregados são raros ou inexistentes tiveram, em média, 12,5 ocorrências de crime político por ano. Nos países onde o uso da linguagem agressiva é frequente ou muito frequente, a média subiu para 107,9 crimes por ano.

Nathan Kalmoe, também ele americano e coautor do livro recém-lançado Radical American Partisanship, conduziu doze pesquisas comportamentais em busca dos gatilhos que podem desencadear a violência política. O fato de que pessoas com traços de personalidade agressivos sejam as mais propensas a se envolver em incidentes como o que levou à morte de Marcelo Arruda não chega a ser surpreendente. Importante é registrar que a mistura de política e personalidade agressiva é explosiva. Expostas até mesmo a expressões que a maioria considera inócuas, como “lutar pelo nosso futuro”, essas pessoas de temperamento volátil aumentaram seu apoio à ideia de que a violência é um bom remédio para conflitos políticos. Isso mostra por que o comentário do vice-presidente Hamilton Mourão sobre o incidente em Foz do Iguaçu erra o alvo. Ele disse que o assassinato era equivalente a tantos outros que acontecem em bares, todos os fins de semana, menosprezando a sua gravidade. A pesquisa de Kalmoe sugere que, como acontece com a pinga ou as drogas, a estupidez política põe muitas pessoas num caminho perigoso. Autoridades como Mourão têm responsabilidade direta sobre o discurso político de um país.

Quantas pessoas podem ser suscetíveis a perder a razão por causa de uma discussão política? O Instituto Locomotiva realizou em fevereiro uma pesquisa sobre a intolerância política do brasileiro, baseada em 1.960 entrevistas. Os participantes deveriam avaliar cinco afirmações. Encaixavam-se no espectro dos intolerantes aqueles que respondessem afirmativamente a quatro delas:

1. “O Brasil seria um país melhor se os deputados adversários da minha preferência política fossem presos.”
2. “O Brasil seria um país melhor se não existisse uma posição política diferente da minha.”
3. “Caso um candidato com posicionamento político completamente oposto ao seu vencesse as eleições, você concordaria em não aceitar o resultado das urnas?”
4. “Imagine que você é pai ou mãe, como você se sentiria se seu filho ou filha se casassem com uma pessoa com ideias políticas opostas às suas?”
5. “Imagine que você tem um novo vizinho. Quanto o fato de ele ter ideias políticas parecidas com as suas contribuiria para que vocês se tornassem amigos?”

Mostraram-se intolerantes 25% dos entrevistados. Desses, a grande maioria (70%) é composta de homens com mais de 40 anos. “Em geral, são pessoas descrentes das instituições e com opiniões muito rígidas”, diz Renato Meirelles, fundador do Locomotiva. “Eles se informam prioritariamente pelas redes sociais e só recebem um tipo de informação. Também publicam e compartilham muito material. Eles são os maiores responsáveis pelas postagens sobre política na internet.”

ReproduçãoReproduçãoJair Bolsonaro: fantasias sangrentas sobre guerra civil
O estudo mais inovador foi feito por um grupo de sociólogos e cientistas de dados sob a coordenação de Michael Macy, diretor do Laboratório de Dinâmicas Sociais da Universidade Cornell. Eles criaram um modelo computacional com diversas variáveis, para entender se a polarização é um fenômeno sempre reversível ou se ela pode chegar a um “tipping point”, um ponto de inflexão a partir do qual nem mesmo ameaças comuns a um país – como uma pandemia, por exemplo – conseguem fazer os partidos adversários trabalharem juntos. A conclusão, um tanto preocupante, é que esse ponto de inflexão existe. “É como o derretimento de um reator atômico”, diz Macy, em uma entrevista. “Até um determinado momento, os técnicos conseguem resfriar o reator aumentando o fluxo de água que faz a refrigeração. Mas se a temperatura atinge um ponto crítico, começa uma reação que não pode ser detida. Nosso estudo mostra que algo semelhante pode acontecer em um ‘reator político’.”

Ninguém sabe se o reator da política brasileira está próximo ou distante do ponto de derretimento. Sabe-se com certeza que a temperatura está alta e continua a subir. Os políticos, que deveriam zelar pelo resfriamento do sistema, continuam agindo de maneira irresponsável. Não se pretende transformar a política em uma atividade amena. Ela requer palavras duras e críticas contundentes. Lula e Bolsonaro, no entanto, não se tratam sequer com um mínimo de civilidade. Usam a respeito um do outro termos como “psicopata” e “canalha de nove dedos”. Eles também são complacentes em relação aos seus apoiadores violentos. Lula saudou o militante que provocou traumatismo craniano em um “inimigo“, enquanto Bolsonaro recorreu a fórmulas murchas como “repudiamos toda violência” diante do assassinato de Foz do Iguaçu — além de ter tentado transferir a culpa do incidente do seu apoiador para o simpatizante petista que primeiro recebeu dois tiros e só então reagiu. Ocupando a presidência, Bolsonaro deveria se preocupar com os efeitos materiais e simbólicos de tudo que faz. Por fazer o contrário, cabe a ele uma cota especial de culpa pelo ambiente conflagrado em que vivemos. Mas o histórico de violência verbal e simbólica do PT também é longo. Parece que só os eleitores podem refrigerar o sistema.

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