A confusão na França e os democratas que ameaçam a democracia
O primeiro turno das eleições legislativas francesas, realizado ontem, terminou em confusão. A coalizão de esquerda, Nupes (Nova União Popular Ecológica e Social), liderada pelo extremista Jean-Luc Mélenchon (foto), denuncia uma "manipulação" dos resultados pelo Ministério do Interior do governo do presidente Emmanuel Macron. De acordo com a pasta, responsável por conduzir a eleição (não...
O primeiro turno das eleições legislativas francesas, realizado ontem, terminou em confusão. A coalizão de esquerda, Nupes (Nova União Popular Ecológica e Social), liderada pelo extremista Jean-Luc Mélenchon (foto), denuncia uma "manipulação" dos resultados pelo Ministério do Interior do governo do presidente Emmanuel Macron. De acordo com a pasta, responsável por conduzir a eleição (não há Justiça Eleitoral na França), a coalizão Ensemble!, de centro-direita, que apoia o atual presidente, reeleito em abril, venceu no total de votos, com uma vantagem de 21.359 votos. Jean-Luc Mélenchon, no entanto, contesta essa contagem. Afirma que o ministério não colocou entre os votos da Nupes, também integrada por ecologistas e socialistas, aqueles dados a candidatos de territórios ultramarinos que deveriam ter sido considerados como pertencentes à coalizão, por terem sido apoiados por ela. Em vez disso, eles foram classificados como "Esquerdas Diversas".
O Ministério da França argumenta que esses candidatos não constavam na lista oficial da Nupes e que muitos concorrentes que apoiavam Emmanuel Macron, mas não constavam da lista oficial da Ensemble!, foram contabilizados como "Direitas Diversas". Na contagem da Nupes, ela teria vencido no total de votos, com uma diferença de 265.766 votos. Para aumentar o imbróglio, o jornal Le Monde decidiu levar em conta o ponto da Nupes, mas na sua própria contagem a coalizão de Jean-Luc Mélenchon obteve uma diferença favorável de apenas 5.931 votos. Diante desse quadro, a Ensemble! afirma que a Nupes está querendo lançar uma "cortina de fumaça" sobre o resultado
O total de votos não muda o fato de que, no primeiro turno, a coalizão Ensemble! obteve a maioria das cadeiras da Assembleia Nacional, com a Nupes chegando em segundo lugar. Embora tenha sido reeleito, Emmanuel Macron encolheu muito -- a perda do poder de compra é a principal reclamação dos franceses contra ele -- e o primeiro turno das eleições legislativas mostra isso. Em 2017, Emmanuel Macron obteve uma maioria de 355 deputados; agora, estima-se que ele terá até 295 (a maioria absoluta na Assembleia Nacional é de 289). A coalizão de Jean-Luc Mélenchon, por sua vez, deverá conseguir até 190 cadeiras, o que lhe dará o papel de principal oposição a Emmanuel Macron, que terá de compor com outros partidos de direita para garantir a aprovação dos seus projetos. Apesar da votação total da frente de esquerda ter sido semelhante à da centro-direita, a Nupes teve uma alta concentração de votos em menos circunscrições, o que significa um número menor de deputados. Só se saberá o número exato de cada um dos lados depois do segundo turno, que ocorrerá no próximo domingo. A "manipulação" denunciada por Jean-Luc Mélenchon tem utilidade eleitoral: está sendo usada para tentar convencer os eleitores que se abstiveram no primeiro turno a votar no segundo contra o sistema representado por Emmanuel Macron e seu pessoal malvado, em especial o ministro do Interior, Gérald Darmanin.
A confusão em torno do total de votos obtido por ambos os lados desacredita ainda mais a democracia representativa. Ela enfrenta um misto de desconfiança e desencanto também na França, especialmente entre os mais jovens, justamente aqueles que deveriam estar mais preocupados com o futuro. O fenômeno pode ser verificado pelo altíssima taxa de abstenção no primeiro turno. Ela foi de 52,5%, um recorde, depois da taxa de 51,3%, registrada em 2017. O abstencionismo está aumentando há 20 anos: em 2002, ele ficou em 35%. O momento ruim para a democracia representativa é constatável também pela relevância adquirida por Jean-Luc Mélenchon, um extremista de esquerda ao qual a social-democracia representada pelo Partido Socialista teve de aderir, para sobreviver eleitoralmente, e por Marine Le Pen, a extremista de direita que voltou a ficar em segundo lugar na eleição presidencial e, agora, nas legislativas, poderá fazer até 45 cadeiras na Assembleia Nacional, o que lhe dará pela primeira vez uma bancada de peso.
A democracia representativa, por desencanto ou cálculo, está em xeque em várias latitudes, como mostram igualmente os casos dos Estados Unidos e do Brasil. Populistas exploram narrativas falsas para desacreditar o sistema democrático, mas a verdade é que, guardadas as devidas diferenças entre os países, os políticos de centro têm se distanciado dos eleitores, da sua realidade e das suas aspirações -- e, nesse vácuo, o populismo extremista de direita e de esquerda crescem, enquanto boa parte dos cidadãos se afasta de um mundo que lhes parece distante e sujo. Não se trata, portanto, de culpar apenas ou principalmente os "autocratas eleitos", que tentam destruir o sistema por dentro, como apontam os autores do livro Como as Democracias Morrem, os americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Os "autocratas eleitos" são sintoma, não causa. O maior problema da democracia são os democratas e a sua incapacidade de renovar-se e de mostrar real empatia com a população.
Veja-se o caso de Emmanuel Macron, para voltar à França. Recentemente, enquanto fazia campanha, ele foi abordado por uma moça de 18 anos que lhe disse que havia sido sofrido abuso sexual e que, por esse motivo, via ainda com mais indignação a manutenção no governo de dois ministros suspeitos de ter cometido esse tipo de crime. Macron respondeu que prezava a presunção de inocência. Dias depois, a moça recebeu a visita de dois policiais na escola. Eles a indagaram sobre o abuso que teria sofrido e perguntaram se ela queria prestar queixa. A moça disse que não e ouviu de um dos policiais que ela errara ao ter falado diretamente sobre o assunto com o presidente da República. Uma clara tentativa de intimidação. O caso causou escândalo e a polícia pediu desculpas, afirmando que foi um mal-entendido. Está claro que não foi. Se esses são os democratas, dá para entender por que tanta gente jovem não quer saber de política. O dado positivo é que o sistema de pesos e contrapesos da democracia, associado a uma imprensa livre, continua tão forte nos países ocidentais que ela resiste tanto a quem a ataca quanto a quem deveria defendê-la.
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Comentários (7)
Marco
2022-06-14 08:37:51Excelente texto!
Marcelo
2022-06-14 08:29:55Caro Mário, gostei do livro dos professores de Harvard. Me permita? O povo contra a democracia de Y. Mounk me pareceu melhor. O contexto é semelhante, pois saltam aos olhos as crises nas democracias representativas. Dias piores virão. Os fatos insistem em esfregar em nossas faces os perigos do autoritarismo, mas, não é um fenômeno social brasileiro, onde as baratas aplaudem o inseticida.
Odete6
2022-06-14 01:13:11O problema não está exatamente da Democracia, o problema está na qualidade - ou falta dela - da maioria dos seus protagonistas - candidatos e eleitores - agentes sem caráter, sem moral, sem educação, sem noção, incônscios, ignorantes, interagindo numa parceria predatória, numa verdadeira "nau dos insensatos"!!! Aplique-se um regime democrático numa comunidade de qualidade e o resultado será com toda certeza de outro nível, tanto para ganhadores quanto para perdedores.
Ivan
2022-06-13 17:17:04A democracia representativa e o modelo de escolha para o STF estão em crise. Para a primeira seria preciso acabar com o fundo partidário , com a propaganda obrigatória , reduzir drasticamente o numero de partidos para que os que ficassem apresentassem consistência e nitidez ideológica e acabar com o foro privilegiado. Quanto ao STF ter mandatos fixos de talvez 10 anos e contar com que a reforma politica melhorasse as escolhas.
Sonia Martha
2022-06-13 17:02:25Há séculos fala-se em fazer reforma política, mas não sai do palavreado. A sopa de letrinhas se junta nas eleições sem ninguém saber suas propostas. Promessas de políticos são parecidas com resoluções de Ano Novo: nunca são cumpridas. Voto no Rio. Não sei em outros lugares, mas aqui é um horror. Para cargos majoritários, somos obrigados a votar naquele que nos parece o MENOS pior. Ou o MENOS ladrão. Para descobrir depois que dava no mesmo, já a maioria faz rodízio na cadeia ou continua preso.
Ivan
2022-06-13 16:42:25Pena que Valérie Pécresse não tenha conseguido se livrar dos escândalos de corrupção do seu partido. Parecia ser uma ótima candidata. Como ela mesmo se intitulava, uma mistura de Thatcher com Merkel.
Afonso
2022-06-13 16:04:48A democracia representativa está completamente falida. As pessoas votam em um indivíduo que deveria representá-las e essa pessoa defende seus próprios interesses, os interesses corporativos de seus pares e dos financiadores de sua campanha. E está pouco se lixando para o eleitor. Está mais do que na hora de buscarmos alternativas.