Quem tem medo da Receita?
Três dias após ser alvo de condução coercitiva pela Polícia Federal, em 7 de março de 2016, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou a mão no telefone e ligou para o então ministro da Fazenda, o economista Nelson Barbosa. “É preciso acompanhar o que a Receita está fazendo junto com a Polícia Federal, bicho. Você precisa se inteirar o que eles estão fazendo no Instituto (Lula)”, dizia o petista na conversa, interceptada com autorização judicial. A vontade de obstruir o trabalho dos auditores fiscais demonstrada por Lula, agora preso em Curitiba, continua latente entre políticos e, três anos depois do telefonema, une congressistas, uma parte do Tribunal de Contas da União, o TCU, e integrantes da cúpula do Judiciário contra o Fisco.
No Supremo Tribunal Federal (STF), auditores da Receita são alvo do inquérito aberto de ofício pelo ministro Dias Toffoli para apurar, entre outras coisas, o suposto vazamento de informações tributárias de sua mulher, a advogada Roberta Rangel, e da família do colega Gilmar Mendes. No Congresso, um “jabuti” incluído em uma medida provisória quer proibir o envio de indícios de crimes encontrados pela Receita para o Ministério Público – e, pior, pode anular todo o trabalho feito até hoje em parceria com grandes operações como a Lava Jato. O TCU, por sua vez, instaurou uma auditoria para devassar os sistemas da Receita em busca de alguma irregularidade. O despudor dos políticos, magistrados e agregados ao se movimentarem contra os auditores suscita uma pergunta essencial nestes tempos: quem tem medo da Receita e por quê?
O fio da meada da resposta pode ser encontrado nos resultados de uma simples busca pelos nomes dos atuais “clientes” da área de investigação do Fisco – figuras públicas cujas declarações tributárias foram maquiadas para esconder algum tipo de ilícito e, por isso, viraram alvo de investigações. Crusoé obteve a lista de políticos com processos em tramitação no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf, a última instância dos processos tributários.
No caso de Cunha, os auditores mostraram à Lava Jato que os cerca de 270 mil reais utilizados pela filha do ex-deputado para pagar os gastos de sua festa de casamento no Copacabana Palace não saíram das contas da empresa da família, a C3 Produções Artística e Jornalísticas. Embora o hotel tenha afirmado aos investigadores que a nota fiscal havia sido emitida em nome da C3, a Receita produziu um relatório em que afirmou “não haver lançamentos contábeis relativos às despesas do casamento” nos dados contábeis da empresa. As informações foram utilizadas pelo MPF para sustentar o pedido de prisão do emedebista, em outubro de 2016, uma vez que reforçou a tese de que os valores tinham como origem a propina recebida por Eduardo Cunha de empresas com contratos públicos. A filha do ex-deputado, Danielle Dytz, também passou a responder a processo a partir do trabalho da Receita.
Não devem faltar descontentes com o trabalho da Receita na relação de alvos das chamadas “representações para fins penais”, como são chamados os relatórios que os auditores enviam para o Ministério Público quando encontram indícios de crimes nas movimentações dos contribuintes. Desde novembro de 2018, a lista dos alvos dessas representações é pública. Além de figuras importantes do meio político, ela traz nomes de grandes empresas investigadas na Lava Jato, como a Braskem, do grupo Odebrecht, e a OAS. Entre as pessoas físicas, estão lá, por exemplo, Fernando Bittar, sócio de um dos filhos de Lula e proprietário formal do sítio de Atibaia, e João Henriques, apontado pela PF como operador do MDB de Michel Temer na Petrobras. Em poucos meses, essas representações terão virado inquéritos que irão se aprofundar nos sinais de crimes mapeados pelos auditores.
O quadro começou a mudar a partir da Operação Ararath, deflagrada há seis anos para desarticular um esquema criminoso envolvendo as principais autoridades de Mato Grosso. Ao trabalhar em conjunto com os investigadores da PF e do MPF, os auditores adquiriram expertise para entender como se davam as irregularidades em esquemas de corrupção envolvendo agentes públicos, grandes empresários, remessas de valores ao exterior e utilização de empresas de fachada para escoamento de propina.
Com essa experiência, a Receita percebeu que poderia se valer do seu banco de dados, o maior da América Latina, para atuar de maneira proativa, sem esperar que uma operação da PF revelasse irregularidades tributárias que poderiam ter sido mapeadas por ela. Estão ao alcance do Fisco, entre outros, dados como as movimentações bancárias e de cartão de crédito, vendas de imóveis, histórico de viagens e contratos de câmbio. Um manancial de informações capaz de fornecer, com alguma facilidade, os sinais de que há algo errado. E assim os auditores começaram a trabalhar. Com um detalhe importante: deixaram de mirar apenas os alvos principais e passaram a cruzar as informações com as de pessoas que estavam ao redor, como filhos, cônjuges e sócios.
Após quatro anos de experiência na Lava Jato, no início de 2018 a Receita reuniu seus melhores agentes em uma “tropa de elite”. O grupo, formalmente chamado de Equipe Especial de Programação de Combate a Fraudes Tributárias (EEP Fraude), tinha uma missão: utilizar o “olho clínico” desenvolvido na investigação para mapear todos os agentes públicos brasileiros, do Judiciário, Executivo e Legislativo, cujos dados tributários indicassem algum tipo de irregularidade. O resultado dessa atuação foi o estopim da reação, no início deste ano. O grupo mapeou 134 agentes públicos com indícios de irregularidades em suas informações tributárias, entre eles integrantes do Judiciário, como o ministro Gilmar Mendes e sua mulher, Guiomar Feitosa, a ministra do Superior Tribunal de Justiça Isabel Gallotti e a mulher de Dias Toffoli.
O vazamento dessas informações, que ocorreu logo após o Fisco solicitar informações ao IDP, o instituto de Gilmar Mendes, deu início a uma série de retaliações contra os auditores. Dias depois da informação sobre a mulher de Toffoli vir à tona, o presidente do STF mandou instaurar o inquérito de ofício para investigar, além das supostas fake news, auditores que integram o grupo especial. Na mesma época, o ministro do TCU Bruno Dantas, sabidamente ligado a Gilmar, autorizou uma auditoria na Receita para buscar possíveis irregularidades em seus sistemas. Com o inquérito de Toffoli e a auditoria de Dantas em andamento, o Congresso aproveitou, na última semana, a tramitação da medida provisória que trata da reorganização administrativa do governo para incluir uma emenda que limita a atuação dos auditores. Um típico “jabuti”, como são conhecidos em Brasília os contrabandos feitos por parlamentares em expedientes legislativos que tratam de outros temas.
A mudança foi incluída no texto da MP 870 pelo líder do governo Jair Bolsonaro no Senado, o emedebista Fernando Bezerra Coelho, a pedido de outra excelência encrencada, o senador Eduardo Braga, também do MDB. A emenda, que deve ir a votação nos próximos dias juntamente com todo o resto da MP que trata do redesenho da Esplanada dos Ministérios implantado pelo novo governo, quer proibir que auditores comuniquem ao Ministério Público a existência de indícios de crimes encontrados durante uma apuração tributária. Pelo texto, essas comunicações só poderão ser feitas mediante autorização judicial. Na prática, a mudança amarra a Receita. E, pior, pode anular todo o trabalho feito até aqui em cooperação com grandes operações como a Lava Jato, já que o texto dá margem para que a mudança valha para casos em andamento. É mais um capítulo importante da contraofensiva das excelências acuadas.
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