Eduardo Anizelli/FolhapressLula, preso, chega à PF: com a decisão do Supremo, soltura fica a cargo da juíza que acompanha a execução da pena

Por que a Lava Jato precisa ir adiante

A maior operação anticorrupção da história mudou a maneira de o Brasil lidar com criminosos do colarinho branco. Tentar enterrá-la, como muitos poderosos tentam fazer, é jogar contra o futuro do país
21.06.19

Em cinco anos, a Lava Jato acumula números sem precedentes no combate à corrupção e a crimes do colarinho branco. Somados os dados das forças-tarefa montadas no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Brasília e no Paraná, onde tudo começou, são mais de 24 bilhões de reais a serem devolvidos nos próximos anos para os cofres públicos, em decorrência de 219 acordos de colaboração com pessoas físicas e 13 acordos de leniência com empresas. Foram expedidos 351 mandados de prisão preventiva e 194 de prisão temporária, além de 1.700 ordens de busca e apreensão em todo o país, cujos resultados levaram mais de duas centenas de investigados ao banco dos réus. Somadas, as penas dos que restaram condenados, incluindo políticos poderosos e empresários bilionários nunca antes alcançados pela Justiça, chegam a 3.096 anos. A operação ainda conseguiu o feito de mostrar que, sim, é possível acabar com o ciclo de impunidade que vem desde a descoberta do Brasil pelos portugueses. Graças a ela, foram feitos ajustes importantes em mecanismos que contribuíram durante anos para a cultura que favorecia os poderosos, como o estabelecimento de novas regras para o foro privilegiado, a proibição de doação de empresas para campanhas políticas e a liberação da prisão após condenações em segunda instância.

Muito embora o combate à corrupção não devesse ter dono nem ser apropriado por partidos ou correntes políticas (pelo contrário, deveria ser defendido por todos), desde seu início a Lava Jato se vê em meio à polarização que toma conta do debate público no país. E, após os vazamentos de diálogos atribuídos a autoridades ligadas à operação por meio do aplicativo Telegram, a operação entrou novamente, e com mais força do que nunca, na mira daqueles que acham que seus desdobramentos objetivam não a recuperação de dinheiro desviado nem a punição dos envolvidos em crimes, mas a perseguição a determinados políticos e partidos. Na esteira das supostas conversas vazadas após o ataque hacker a celulares de autoridades incumbidas de atuar nas investigações, que têm dado margem a uma ofensiva inédita contra a operação e a movimentos de bastidores para anular condenações, como a do ex-presidente Lula, resta a pergunta: a Lava Jato deve continuar, doa a quem doer, ou deve parar enquanto atores dos diversos campos políticos, todos com representantes incluídos entre os alvos da operação, se engalfinham no debate sobre se houve algum tipo de falha ou direcionamentos nas apurações? Pelas razões expostas a seguir, que enumeram os feitos da maior ação anticorrupção da história, a resposta parece clara.

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A cultura da impunidade sofreu um revés

Quando realizou a primeira leva de prisões, em março de 2014, a Lava Jato era vista somente como mais uma operação de combate à corrupção com potencial para expor práticas criminosas de poderosos brasileiros e que, por isso mesmo, seria interrompida ou enviada para a gaveta de alguma corte superior assim que começasse a importunar os peixes graúdos. O histórico não era nada positivo e sustentava o pessimismo mesmo entre os investigadores. À época, pouca gente  acreditava que dar um golpe fatal na corrupção impregnada no poder público e privado era algo possível. Antes dela, muitas outras tinham sido deflagradas com a promessa de passar o país a limpo, mas foram interrompidas pela atuação de caríssimas bancas de advogados, por meio de pedidos de nulidade ao STJ ou STF. Castelo de Areia, Satiagraha e Boi Barrica são alguns dos muitos exemplos. Esse cenário foi se alterando com o desenrolar das fases. Em novembro do mesmo ano, a Lava Jato realizava buscas e punha em cana os principais empreiteiros do país. Meses depois, já em 2015, o todo-poderoso Marcelo Odebrecht, viu-se preso. Foi a partir daí que os políticos em Brasília se deram conta de que a coisa era para valer. O roteiro é bem conhecido. Empresários de todos os setores, gente das mais diversas colorações partidárias e dezenas de operadores financeiros passaram a frequentar o noticiário policial e, pela primeira vez na história do Brasil, passou a ser considerada a possibilidade de o país ser retirado da lista das nações mais coniventes com práticas corruptas e anticoncorrenciais. Diz o delegado federal aposentado Jorge Pontes, autor do livro “Crime.gov” (Editora Objetiva), em parceria com o também delegado Márcio Adriano Anselmo, responsável pelas primeiras descobertas da operação: “A Lava Jato descortinou para a sociedade a existência do crime institucionalizado. Ela teve o poder de diagnosticar esse cenário de um país tomado pela criminalidade enraizada nas instituições. Ela não pegou todos os esquemas, mas diagnosticou qual era a real situação”.

O ‘mecanismo’ da corrupção foi exposto

O avanço das investigações e seus desdobramentos para outras cidades — além de Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília ganharam forças-tarefas — revelou um cenário assustador de corrupção institucionalizada. Os inquéritos em Curitiba mostraram como a Petrobras foi utilizada para sustentar campanhas eleitorais dos partidos da base de apoio dos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. A cada fase da operação, os brasileiros foram compreendendo os motivos por trás do interesse dos partidos políticos em integrar a base dos governos e qual era o resultado daquele famoso toma lá dá cá da política nacional. O resultado prático disso, revelou a Lava Jato, era a propina em forma de doação oficial, dentro de mochilas, escoada por meio de contratos com empresas de fachada ou mesmo entregues em quartos de hotéis de Brasília. Após cinco anos, com o acordo de colaboração de grandes empreiteiras e empresários, a operação deixou claro que a democracia brasileira era um faz de conta comprado a preço de ouro, a depender do interesse do partido ora no poder e dos preços dos políticos interessados em tornar-se asseclas dos poderosos de plantão. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas baseado em sentenças da operação precificou o impacto dos esquemas de corrupção nas eleições. O trabalho mostrou que recursos provenientes de propina representavam até 46% dos valores que irrigaram as campanhas eleitorais brasileiras entre os anos de 2006 e 2012. Se levado em conta o valor total repassado entre 2002 e 2014 para campanhas por empresas investigadas, o número é ainda mais assustador: nada menos que 1 bilhão de reais “investidos” em políticos que depois eram indicados para estatais para dar continuidade ao toma lá dá cá.

Surgiu um novo modelo de combate à corrupção

Parte do sucesso da operação se deve ao modelo de investigação utilizado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. A Lava Jato foi a primeira grande operação a se valer da nova Lei das Organizações Criminosas, a 12.850, aprovada após as manifestações de junho de 2013, ironicamente no governo de Dilma Rousseff. Ao utilizar novas ferramentas de investigação regulamentadas a partir da mudança na legislação, a operação criou um novo paradigma. Passou a utilizar como motores de propulsão os acordos de colaboração premiada e o lema “siga o dinheiro”, inspirado no famoso princípio do follow the money americano. Dessa forma, ao aliar o sufocamento financeiro dos grupos criminosos com a possibilidade de negociação de penas menores em troca da confissão de crimes, a investigação levou pouco tempo para avançar sobre todos os setores empresariais e político-partidários que, até então, haviam passado incólumes por diversas operações. “Esperamos que a Lava Jato ainda possa gerar mais frutos, porque acredito que, muito embora não seja exaustiva no sentido de arrefecer a criminalidade no país, ela é um paradigma importantíssimo, histórico e emblemático para que outras forças-tarefa possam se desenvolver nos mesmos moldes”, diz a procuradora Karen Kahn, do Ministério Público Federal em São Paulo, responsável pelas investigações da Castelo de Areia, que poderia ter antecipado em alguns anos as descobertas da Lava Jato, mas, após esbarrar na velha proteção dos tribunais a investigados poderosos, acabou arquivada.

Políticos graduados conheceram a cadeia

A operação alcançou políticos de diferentes partidos. As principais legendas da política nacional, PT, PSDB e MDB, em especial, viram suas grandes lideranças tragadas pelas investigações. Entre os petistas, além de todos os marqueteiros que serviram às últimas campanhas presidenciais, tesoureiros e operadores, a Lava Jato explodiu no colo do chefe do partido, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Depois de levá-lo para depor coercitivamente, em março de 2016, a investigação fez uma devassa em toda a vida de Lula e acabou por condená-lo tanto em processos em Curitiba como no Distrito Federal. Em 2018, Lula acabou preso após ser condenado em segunda instância. Além dele, outras lideranças petistas, como José Dirceu, Antonio Palocci, Delcídio do Amaral, Paulo Bernardo e Gleisi Hoffmann, viram-se acusadas por envolvimento nos esquemas de desvio de dinheiro público. O PSDB, por sua vez, não pagou menos caro. Após um período inicial fora do foco da operação, os tucanos foram dragados para o escândalo e viram seus expoentes citados em delações. Aécio Neves, o tucano mineiro quase eleito presidente em 2014 justamente por atacar o envolvimento dos petistas na Lava Jato, só não foi preso após aparecer pedindo 2 milhões de reais para Joesley Batista, da JBS, porque tinha foro privilegiado. A irmã dele, Andrea Neves, não teve tanta sorte. Chegou a ir para a cadeia. Da ala paulista, os até então imunes a escândalos Geraldo Alckmin e José Serra agora são alvos de investigações por terem aparecido em acordos de delação de empreiteiros como adeptos do mesmo toma lá dá cá que abastecia os cofres petistas. No caso de Serra, além de dinheiro para as campanhas eleitorais, as delações apontam para repasses no exterior realizados para operadores que atuavam em seu nome. No MDB, o ex-presidente Michel Temer foi preso poucos meses após deixar o Palácio do Planalto. Somam-se a ele nomes como Eduardo Cunha, Henrique Eduardo Alves e Geddel Vieira Lima, a cujo prontuário foi adicionado o título de proprietário de um bunker de 51 milhões de reais em espécie descoberto pelos investigadores. Descobriu-se que o ex-governador fluminense Sérgio Cabral, do MDB, era chefe de uma quadrilha que espoliou o estado do Rio de Janeiro de uma forma impressionante mesmo para os largos padrões da corrupção nacional. Ele está em cana, condenado até agora a quase 198 anos de prisão. Outros partidos grandes, como PP, PR e DEM também se viram envolvidos e têm alguns de seus principais líderes respondendo a inquéritos ou mesmo a processos.

Finalmente os corruptores foram alcançados

Não foram só os políticos corruptos que sofreram com os cinco anos da operação. Pela primeira vez na história do país, a Lava Jato avançou também sobre os corruptores, aqueles empresários interessados no dinheiro do erário que optaram por anos a fio pelo pagamento de propina como forma de superar a ineficácia de suas empresas em concorrer de forma justa e honesta pelos contratos públicos. Embora alguns empreiteiros tenham sido presos ainda em 2014, na 7ª fase da Lava Jato, foi em junho de 2015 que a operação mostrou de maneira inconteste que seu objetivo era dar um duro golpe na corrupção. Em uma manhã de sexta-feira, o dia da semana que ficou marcado pelas ações mais rumorosas da operação, a 19ª fase da Lava Jato, batizada de Erga Omnes (‘Vale para todos”, em latim), prendeu Marcelo Odebrecht, o maior empreiteiro da América Latina. A partir daí sobrou para empresários de todos os setores. Enquanto Curitiba focou nos empreiteiros, as frentes abertas no Rio de Janeiro e Brasília focaram em outros fronts conhecidos por manter relações íntimas (e suspeitas) com o poder. Foi assim com companhias do ramo financeiro e com gigantes do ramo de carnes, como a JBS de Joesley e Wesley Batista — que, graças à política dos “campeões nacionais” lançada durante os anos do PT no poder, alcançou a posição de maior conglomerado do setor de proteína animal do planeta. Empresas das áreas de saúde e transporte também passaram a ser alvo. Como consequência dos resultados da Lava Jato, grandes companhias passaram a adotar, para valer, medidas de compliance para evitar problemas com a Justiça. “O avanço da Operação Lava Jato garantiu que o debate sobre os procedimentos que compõem a lei anticorrupção, como a aplicação de multa e a adoção de compliance, garantisse ao estado mais eficácia no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro”, diz Leandro Daiello, ex-diretor-geral da Polícia Federal.

As investigações se espraiaram pelo mundo

A operação foi fundamental para mapear uma complexa teia de corrupção internacional que ia muito além da Petrobras e incluía sofisticados esquemas de lavagem de dinheiro com contas no exterior, escondidas em paraísos fiscais e em nome de laranjas. Um dos exemplos mais simbólicos é o da própria Odebrecht, que teve de fechar acordos de leniência com Estados Unidos, Suíça e Brasil, para devolver o equivalente a 3,5 bilhões de dólares aos três países. Na América Latina, seguindo o exemplo do Brasil, ex-presidentes foram presos por crimes descobertos a partir da Lava Jato. As informações compartilhadas com as autoridades estrangeiras devem gerar novos desdobramentos nos próximos anos. Até aqui, já houve 754 pedidos de cooperação internacional para a troca de informações com outros países. Em 2013, um ano antes de a Lava Jato ir às ruas, procuradores suíços arquivaram parte da investigação envolvendo o pagamento de propinas a autoridades dos governos do PSDB em São Paulo pela multinacional Alstom, devido à falta de cooperação dos investigadores brasileiros. Anos mais tarde, já com as forças-tarefa da Lava Jato a todo vapor, o Brasil passou a “exportar” investigações. Em maio deste ano, por exemplo, veio à luz a notícia de que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, em conjunto com o FBI e a Securities and Exchange Comission (o equivalente dos americanos à CVM), passou a investigar as gigantes do setor de saúde Philips, GE, Johnson & Johnson e Siemens. O pontapé inicial da investigação foi o esquema de fraudes e corrupção em licitações de equipamentos médicos revelado pela Lava Jato no Rio.

As instituições brasileiras amadureceram

Independentemente de alguns encarregados da operação terem ganhado fama, como o próprio Sergio Moro, foram as instituições envolvidas nas investigações que mais ganharam com a operação, sobretudo o Ministério Público e a Polícia Federal. Com o amplo apoio popular às investigações, autoridades antes acostumadas a esbarrar nas travas estabelecidas por chefes preocupados em não desagradar seus superiores, quase sempre políticos, passaram a trabalhar com mais liberdade, amparadas na certeza de que têm um papel a cumprir e que, dentro dele, interferências indevidas em favor de investigados não são mais bem-vindas. Como exemplo dessa nova cultura institucional, um diretor da Polícia Federal nomeado por Michel Temer acabou caindo após tentar interferir no trabalho de delegados. Também houve ajustes nos marcos legais que definem o papel dos órgãos encarregados de investigar e processar. Por decisão do Supremo, na esteira de casos concretos levantados pela Lava Jato, a Polícia Federal passou a ser autorizada a fazer acordos de colaboração premiada. Outro fator essencial para o amadurecimento das colaborações premiadas foi a possibilidade de condenados em segunda instância passarem a ser presos imediatamente. Esse entendimento foi chancelado pelo Supremo em 2016, em meio aos avanços da Lava Jato sobre a cúpula das maiores empreiteiras do país, e representou um marco nas práticas até então adotadas no país: com a infinidade de recursos que o sistema brasileiro prevê, os processos nunca terminavam e os réus, especialmente os mais poderosos, dificilmente eram punidos.

Novas frentes de investigação foram abertas

A Lava Jato abriu para as autoridades caminhos para investigar setores nunca antes explorados com a devida atenção. Dois dos maiores exemplos das novas fronteiras abertas pela operação são o sistema financeiro e o Poder Judiciário. Responsáveis por hospedar contas de empresas de fachada e operadores de propina envolvidos nos esquemas de corrupção, os bancos entraram na mira dos investigadores e aumentaram ainda mais as fileiras de inimigos da operação. Poucas semanas antes de vir à tona o caso dos vazamentos de conversas da força-tarefa no Telegram, a Lava Jato de Curitiba prendeu três executivos do alto escalão do banco Paulista. A Lava Jato no Rio, por sua vez, prendeu dois executivos do Bradesco, o segundo maior banco privado. Nos próximos meses, caso os algozes da operação não consigam enterrá-la, mais fases devem mostrar como o sistema financeiro nacional foi utilizado para lavar dinheiro sujo desviado dos cofres públicos. No caso do Judiciário, a Lava Jato não é a primeira a ensaiar um avanço sobre juízes, desembargadores e integrantes de cortes superiores suspeitos de manter relações escusas com grupos criminosos. Mas as anteriores normalmente esbarravam em decisões dos próprios tribunais e, com raras exceções, quase sempre acabavam engavetadas. Agora, a Lava Jato promete expor como se dava a relação de alguns empresários e políticos corruptos com autoridades responsáveis, em tese, por defender o império da lei.

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Por tudo isso, resta claro que atacar a Lava Jato e lançar sombra sobre o que ela alcançou desde sua primeira fase, em 2014, não favorece apenas a turma que foi parar atrás das grades graças às investigações. Há também quem queira evitar virar alvo. Inimigos, portanto, não faltam. Mas é preciso avançar — e não anular aquilo que já foi foi feito.

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