Mateus Bonomi/CrusoéMaia: o presidente da Câmara joga para que o Congresso se imponha na relação com Bolsonaro

O poder paralelo

Como Rodrigo Maia atua, ao lado do notório Centrão, para limitar os poderes do Palácio do Planalto. A intenção, para além de continuar controlando uma parte importante das verbas federais, é mostrar a Jair Bolsonaro que a tinta da caneta presidencial tem limite
10.05.19

Rodrigo Maia comandou na terça-feira, 7, uma reunião na residência oficial da presidência da Câmara, no Lago Sul de Brasília, cujo objetivo era afinar a estratégia para retirar do ministro da Justiça, Sergio Moro, o controle do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o órgão de inteligência financeira do governo. Estavam presentes os mais proeminentes líderes do Centrão, como ficou conhecido o grupo de partidos fisiológicos do Congresso. A ideia aventada ali era só votar o relatório da medida provisória 870, que reorganizou a estrutura administrativa do governo, se houvesse segurança de que o conselho deixaria a Justiça e voltaria para a Economia, para sacramentar a primeira grande derrota de Moro em Brasília. Após uma tentativa frustrada naquela tarde e outra no dia seguinte, o tiro certeiro foi dado na quinta-feira pela manhã. Por 14 votos a 11, a comissão do Congresso encarregada de apreciar o texto da MP aprovou a proposta de tirar o Coaf das mãos de Moro. Minutos depois, mais um disparo contundente. Por 15 votos a 9, o mesmo colegiado votou por limitar o papel da Receita Federal em investigações.

O resultado final expôs a já conhecida fragilidade do governo na articulação política e a falta de apoio que Sergio Moro vem tendo para implementar sua agenda. Ao mesmo tempo, mostrou que o Centrão se reestruturou com força no Congresso na atual legislatura e, definitivamente, encontrou em Maia seu principal líder e articulador. Juntos, eles estão empenhados na tarefa de fazer frente ao discurso de Jair Bolsonaro contra a velha política. Querem mostrar ao presidente que o Planalto não tem poderes para fazer o que quer — e que precisa se curvar ao Congresso. Maia exerce papel preponderante nessa estratégia. Foi iniciativa dele, por exemplo, encomendar um estudo informal sobre a atuação dos órgãos de inteligência mundo afora. O documento mostrava, por exemplo, que a Suíça é um dos poucos países onde a inteligência financeira está sob o abrigo da Justiça, e não da Economia. O argumento foi repisado durante toda a semana pelo grupo. Maia também pressionou diretamente o presidente da comissão mista, João Roma, do PRB, que se reunira duas vezes com Moro no último mês e fora convencido por ele a manter o órgão na Justiça. A pressão foi tamanha que o prefeito de Salvador e presidente do DEM, ACM Neto, a quem Roma é ligado, ficou incomodado e o orientou a não seguir o pedido de Maia, seu amigo de longa data.

Muito embora o presidente da Câmara não tenha pisado na sala 2 da ala Nilo Coelho do Senado, onde a comissão da MP 870 se reuniu de terça a quinta, ele foi o sujeito oculto das três sessões que impuseram a derrota a Sergio Moro. Maia monitorou tudo a partir das informações que lhe eram passadas, quase em tempo real. Com elas, alinhavou a primeira estratégia para que os deputados dos partidos do Centrão votassem conforme o combinado, tanto na questão do Coaf quando na da Receita. Como muitos parlamentares se insurgiram contra a ordem, Maia passou a considerar a possibilidade de deixar a MP caducar — o que, na prática, teria o mesmo efeito, já que as mudanças feitas na estrutura do governo a partir da posse de Bolsonaro deixariam de valer legalmente. O governo, sabedor da derrota que lhe estava endereçada, dava sinais de que estava disposto a ceder a alguns apelos do grupo. Como, por exemplo, à ideia de recriar dois ministérios que haviam sido extintos — o das Cidades e o da Integração Nacional — e de entregá-los a Maia e seus aliados. A concessão, porém, não era suficiente. O presidente da Câmara e companhia não abriam mão de demarcar a autoridade do Congresso e do objetivo de contrariar Sergio Moro com a mudança do Coaf. Foi batido, então, o martelo sobre a estratégia final, que saiu vitoriosa: substituir parlamentares pró-Moro na comissão pelos anti-Moro. O PSD de Gilberto Kassab foi central nesse troca-troca.

Carolina Antunes/PRCarolina Antunes/PRA ideia do Centrão é cercar Jair Bolsonaro aos poucos
Com Rodrigo Maia, o Centrão atua de maneira relativamente distinta da que atuava sob o comando de Eduardo Cunha, que antecedeu o deputado do DEM na presidência da Câmara. Antes, a meta era ameaçar de derrota os projetos do governo para ganhar espaços no primeiro e segundo escalões da administração e, assim, conseguir alimentar seus eleitores com recursos do Orçamento. Hoje, o objetivo principal é substituir a pauta do Executivo por uma agenda própria do Legislativo. Além do estrangulamento da Lava Jato, a ideia é diminuir a dependência dos parlamentares em relação ao governo por meio do controle tanto dos recursos financeiros federais como da agenda legislativa. Se no curso dessas operações vier a possibilidade de conseguir alguns cargos em troca da aprovação de projetos pontuais de interesse do Planalto, ainda melhor.

O primeiro passo no sentido de limitar o poder da caneta presidencial foi dado com a aprovação do orçamento impositivo para as emendas das bancadas estaduais, que transferiu para o Congresso o poder de decidir o destino de 3,5 bilhões de reais em verbas. Agora, mais dois movimentos estão sendo preparados. Um deles é a alteração na legislação orçamentária para que o valor total das emendas de bancada, antes destinadas coletivamente aos estados, possa ser dividido individualmente entre os parlamentares, um procedimento que o próprio Congresso derrubara em 2006. A expectativa é que, na prática, isso coloque mais 10 milhões de reais nas mãos de cada parlamentar, que se somariam aos 15 milhões de reais que cada um já tem direito em emendas. Outra medida em gestação é acabar com a possibilidade de o presidente da República editar medidas provisórias. Há anos, essa é uma das mais eficientes fontes de poder do chefe do Executivo. Para se ter uma ideia do que isso significa, só Bolsonaro já editou 13 MPs em menos de cinco meses de governo — em média, uma a cada dez dias.

Além do tradicional apetite por cargos, o contexto político é determinante para que o Centrão se revigore na atual legislatura. Primeiro porque Bolsonaro foi eleito e assumiu o poder com um discurso de combate à política tradicional, o que acabou por unir o grupo. Segundo, porque em nenhum momento desde que o presidente venceu a eleição houve uma preocupação real de formar uma base de apoio no Congresso. Terceiro, porque há uma janela de oportunidade permanentemente aberta: o governo gasta muita energia com as inúmeras crises gestadas no próprio governo (a desta semana foi o embate entre seguidores do escritor Olavo de Carvalho e os militares) e, assim, dá ao Congresso a chance de correr livre para impor sua própria agenda. Outro dado da realidade facilita o jogo. A extrema polarização por que passa o país já há algum tempo deixou claro quem são os extremos do espectro político e jogou todo o resto no centro. Hoje, o Centrão é considerado quase tudo que não for, de um lado, o PSL de Bolsonaro e o Novo, nem os partidos da oposição liderada pelo PT, PSOL e PDT. Sobra uma lista extensa: Avante, Cidadania, DEM, MDB, Patriotas, PHS , PMN , Podemos, PRP, PP, PR, PRB, PROS, PSC , PSD, PSDB, PV e Solidariedade. Na ponta do lápis, esses partidos somam cerca de 350 dos 513 deputados, o que lhes dá ampla margem para aprovar emendas constitucionais, que exigem ao menos 308 votos.

Câmara dos DeputadosCâmara dos DeputadosArthur Lira articula com Maia nos bastidores e depois executa as estratégias
É um número também muito maior do que o de todas as formações que o Centrão já teve em legislaturas anteriores. O apelido foi primeiramente utilizado na Constituinte para batizar os parlamentares de direita capitaneados pelo então deputado e economista Roberto Campos. O objetivo era tentar incluir uma visão liberal do estado no texto da nova Constituição. Com o tempo, uma parcela dos partidos que integravam o grupo foi sofrendo seguidas metamorfoses até que a ideia original foi completamente desvirtuada. As siglas começaram a criar dificuldades para vender facilidades. A receita foi testada no governo Sarney, quando foi à mesa a proposta de trocar o apoio à extensão do mandato do então presidente de quatro para cinco anos por concessões de rádio e TV para parlamentares. O modelo chantagista, em maior ou menor grau, foi mantido em todos os governos seguintes. Sob Dilma Rousseff, as articulações se deram sob a liderança de Eduardo Cunha. Ele e Dilma caíram e Rodrigo Maia, então, avançou sobre o espólio. Montou alianças eleitorais que lhe deram três vitórias seguidas em disputas pela cadeira de presidente da Câmara. Agora, com Bolsonaro, o grupo replanejou sua estratégia. A principal missão, hoje, é controlar o dinheiro e a pauta sem entrar de cabeça como parte do governo. “O Congresso avança hoje para um semipresidencialismo ou parlamentarismo informal”, diz um dos principais aliados de Maia.

O núcleo duro do Centrão é composto por um seleto time de parlamentares que opera diretamente com Maia. Arthur Lira, do PP, é o mais agressivo deles. Advogado, natural de Maceió, já passou pelo PFL (atual DEM), PSDB, PTB e PMN. Investigado na Lava Jato juntamente com o pai, o ex-senador Benedito de Lira, é muito próximo do notório Ciro Nogueira, presidente do partido e também alvo de várias frentes da operação. Nesta semana, Arthur Lira foi a voz mais eloquente nos debates sobre o destino do Coaf. O deputado, um dos mais assíduos frequentadores do gabinete e da casa de Rodrigo Maia, não esconde seu protagonismo na organização e na execução da nova estratégia do grupo. “Sempre defendi o empoderamento do Legislativo. Sempre fui contra o Executivo mandar aqui. Antigamente, (os políticos) precisavam dos cargos do governo para abastecer a base. Hoje, se você tem Orçamento e diz para onde vai (o dinheiro), quem vai bater aqui é o Executivo. O ministro vai ser um mero cumpridor (do Orçamento)”, diz.

Assim como grande parte dos líderes do Centrão, Arthur Lira rejeita o título por considerá-lo pejorativo. “Não existe isso (de Centrão). O que existe é que não há base de governo. O governo não tem maioria, a oposição não tem maioria. Então quem faz a pauta é quem tem maioria”, afirma, acrescentando que não enxerga no horizonte sinais de melhora na relação do Planalto com o Congresso. “A política não identificou quem manda. Onyx combina com Maia uma coisa e faz outra. O Bolsonaro promete ao Davi (Alcolumbre) e sai outra. Daí vem militar e briga com o Olavo. Enquanto não se estabelecer um clima de confiança é melhor cada um no seu quadrado.”

Antônio Cruz/Agência BrasilAntônio Cruz/Agência BrasilKassab, o “dono” do PSD: papel primordial
Outro expoente do Centrão é Wellington Roberto, o líder do PR. Empresário com histórico de atuação em diferentes áreas, ele é procurado constantemente por investidores. Horas antes de conversar com Crusoé na quarta-feira, havia recebido emissários do banco Credit Suisse em seu gabinete. Eles queriam ouvir perspectivas para a reforma da Previdência. Na resposta — ele disse que a proposta até passava, mas não com a economia de 1 trilhão de reais desejada pelo governo –, deixou claro o jogo do Centrão, de realçar o papel do Congresso ante o Planalto. “Não vamos votar a reforma ao bel-prazer do Paulo Guedes, como veio”, disse. O deputado paraibano é outro que, a exemplo de Arthur Lira, assume a agenda do grupo. “Você acha que governar por medida provisória é uma forma correta? Não é. Por mim já tinha acabado com isso porque não cabe na cabeça de ninguém dominar por MP.”

Não raro, as ordens que guiam o grupo vêm de quem nem está no Congresso. No caso do PR, não há decisão importante que não seja tomada sem o aval do notório Valdemar Costa Neto, condenado no mensalão e no petrolão. No PSD, o ex-ministro Gilberto Kassab, presidente do partido, participa ativamente das discussões. Outra cabeça coroada do grupo é o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força, comandante do Solidariedade — o mesmo que, no Dia do Trabalho, disse que a reforma da Previdência deve ser aprovada com limites pelo Congresso para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro. O sincericídio de Paulinho causou constrangimento aos aliados. Alguns negaram partilhar do mesmo entendimento. Mas, conhecido por não ter papas na língua, o deputado só verbalizou uma conversa recorrente nos encontros reservados do grupo. A ideia está alinhada com a gênese da estratégia: a de fazer do Parlamento, cada vez mais, uma espécie de filtro capaz de limitar o poder presidencial em diversas frentes. Partindo dessa mesma premissa, nesta semana Maia anunciou que o Congresso deverá avaliar a constitucionalidade do decreto de Bolsonaro que liberou o porte de armas de fogo para vinte categorias profissionais.

Rodrigo Maia lidera o Centrão como se o consórcio fosse orgânico e homogêneo, e assim o apresenta ao governo. Na prática, porém, há divergências internas que reproduzem a lógica de funcionamento do grupo, com disputas entre caciques e grupos dissidentes, negociação de alianças e divergências eventuais. Nesta semana, por exemplo, houve incômodo por parte do PP com a forma como DEM e MDB negociaram com o Planalto a criação dos dois novos ministérios. No debate sobre a Previdência na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o PR não seguiu a estratégia idealizada pelo PP de inverter a pauta e votar a emenda constitucional do orçamento impositivo antes da reforma da Previdência. Maia conta com uma vantagem adicional, para além de sua ascendência sobre uma parte dos deputados, que é ter um correligionário, Davi Alcolumbre, na presidência do Senado.

Moreira Mariz/Agência SenadoMoreira Mariz/Agência SenadoCiro Nogueira, presidente do PP: investigado, ele tem aparecido pouco, mas é um dos cabeças do Centrão
Foi a partir de uma articulação com Alcolumbre, por sinal, que o presidente da Câmara conseguiu que Bolsonaro recriasse os ministérios das Cidades e da Integração. O argumento foi direto, ao velho estilo do Centrão: o de que sem as pastas, conhecidas como generosos balcões de atendimento a demandas de parlamentares, a adesão da maioria do Congresso à reforma da Previdência não ocorrerá. Há outras ameaças no ar. Uma delas, que já assusta o Planalto, envolve a discussão sobre um crédito adicional de 248 bilhões de reais ao Orçamento para que o governo consiga cumprir a chamada regra de ouro, que o proíbe de se endividar para pagar despesas correntes. Se a autorização do Congresso não for aprovada até 30 de junho, o Executivo corre o risco de um shutdown similar aos que ocorrem com alguma frequência nos Estados Unidos: faltará dinheiro para pagar as contas.

A solução, que já começa a ser ventilada por governistas e pelo Centrão, pode ser abrir mais espaço para os políticos na Esplanada. Uma pasta cobiçada é a do Ministério do Turismo, cujo ministro, Marcelo Álvaro Antônio, do PSL, balança no cargo conforme avançam as investigações sobre candidaturas laranjas no diretório do partido em Minas. Os partidos também querem que o governo se comprometa a não mexer nos milhares de cargos de escalões mais baixos que, desde os governos anteriores, ainda estão nas mãos de afilhados políticos de deputados e senadores. Passados quatro meses da posse de Jair Bolsonaro, estima-se que ainda estejam sob controle de parlamentares algo em torno de 50% de todos os cargos comissionados da máquina federal pelo país afora — são funções em órgãos como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Embora não se mostrem suficientes para conter o Centrão, as concessões são prova de que o governo, acuado, começou a se dobrar à lógica de que é dando que se recebe.

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