O poder paralelo
Rodrigo Maia comandou na terça-feira, 7, uma reunião na residência oficial da presidência da Câmara, no Lago Sul de Brasília, cujo objetivo era afinar a estratégia para retirar do ministro da Justiça, Sergio Moro, o controle do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o órgão de inteligência financeira do governo. Estavam presentes os mais proeminentes líderes do Centrão, como ficou conhecido o grupo de partidos fisiológicos do Congresso. A ideia aventada ali era só votar o relatório da medida provisória 870, que reorganizou a estrutura administrativa do governo, se houvesse segurança de que o conselho deixaria a Justiça e voltaria para a Economia, para sacramentar a primeira grande derrota de Moro em Brasília. Após uma tentativa frustrada naquela tarde e outra no dia seguinte, o tiro certeiro foi dado na quinta-feira pela manhã. Por 14 votos a 11, a comissão do Congresso encarregada de apreciar o texto da MP aprovou a proposta de tirar o Coaf das mãos de Moro. Minutos depois, mais um disparo contundente. Por 15 votos a 9, o mesmo colegiado votou por limitar o papel da Receita Federal em investigações.
O resultado final expôs a já conhecida fragilidade do governo na articulação política e a falta de apoio que Sergio Moro vem tendo para implementar sua agenda. Ao mesmo tempo, mostrou que o Centrão se reestruturou com força no Congresso na atual legislatura e, definitivamente, encontrou em Maia seu principal líder e articulador. Juntos, eles estão empenhados na tarefa de fazer frente ao discurso de Jair Bolsonaro contra a velha política. Querem mostrar ao presidente que o Planalto não tem poderes para fazer o que quer — e que precisa se curvar ao Congresso. Maia exerce papel preponderante nessa estratégia. Foi iniciativa dele, por exemplo, encomendar um estudo informal sobre a atuação dos órgãos de inteligência mundo afora. O documento mostrava, por exemplo, que a Suíça é um dos poucos países onde a inteligência financeira está sob o abrigo da Justiça, e não da Economia. O argumento foi repisado durante toda a semana pelo grupo. Maia também pressionou diretamente o presidente da comissão mista, João Roma, do PRB, que se reunira duas vezes com Moro no último mês e fora convencido por ele a manter o órgão na Justiça. A pressão foi tamanha que o prefeito de Salvador e presidente do DEM, ACM Neto, a quem Roma é ligado, ficou incomodado e o orientou a não seguir o pedido de Maia, seu amigo de longa data.
Muito embora o presidente da Câmara não tenha pisado na sala 2 da ala Nilo Coelho do Senado, onde a comissão da MP 870 se reuniu de terça a quinta, ele foi o sujeito oculto das três sessões que impuseram a derrota a Sergio Moro. Maia monitorou tudo a partir das informações que lhe eram passadas, quase em tempo real. Com elas, alinhavou a primeira estratégia para que os deputados dos partidos do Centrão votassem conforme o combinado, tanto na questão do Coaf quando na da Receita. Como muitos parlamentares se insurgiram contra a ordem, Maia passou a considerar a possibilidade de deixar a MP caducar — o que, na prática, teria o mesmo efeito, já que as mudanças feitas na estrutura do governo a partir da posse de Bolsonaro deixariam de valer legalmente. O governo, sabedor da derrota que lhe estava endereçada, dava sinais de que estava disposto a ceder a alguns apelos do grupo. Como, por exemplo, à ideia de recriar dois ministérios que haviam sido extintos — o das Cidades e o da Integração Nacional — e de entregá-los a Maia e seus aliados. A concessão, porém, não era suficiente. O presidente da Câmara e companhia não abriam mão de demarcar a autoridade do Congresso e do objetivo de contrariar Sergio Moro com a mudança do Coaf. Foi batido, então, o martelo sobre a estratégia final, que saiu vitoriosa: substituir parlamentares pró-Moro na comissão pelos anti-Moro. O PSD de Gilberto Kassab foi central nesse troca-troca.
O primeiro passo no sentido de limitar o poder da caneta presidencial foi dado com a aprovação do orçamento impositivo para as emendas das bancadas estaduais, que transferiu para o Congresso o poder de decidir o destino de 3,5 bilhões de reais em verbas. Agora, mais dois movimentos estão sendo preparados. Um deles é a alteração na legislação orçamentária para que o valor total das emendas de bancada, antes destinadas coletivamente aos estados, possa ser dividido individualmente entre os parlamentares, um procedimento que o próprio Congresso derrubara em 2006. A expectativa é que, na prática, isso coloque mais 10 milhões de reais nas mãos de cada parlamentar, que se somariam aos 15 milhões de reais que cada um já tem direito em emendas. Outra medida em gestação é acabar com a possibilidade de o presidente da República editar medidas provisórias. Há anos, essa é uma das mais eficientes fontes de poder do chefe do Executivo. Para se ter uma ideia do que isso significa, só Bolsonaro já editou 13 MPs em menos de cinco meses de governo — em média, uma a cada dez dias.
Além do tradicional apetite por cargos, o contexto político é determinante para que o Centrão se revigore na atual legislatura. Primeiro porque Bolsonaro foi eleito e assumiu o poder com um discurso de combate à política tradicional, o que acabou por unir o grupo. Segundo, porque em nenhum momento desde que o presidente venceu a eleição houve uma preocupação real de formar uma base de apoio no Congresso. Terceiro, porque há uma janela de oportunidade permanentemente aberta: o governo gasta muita energia com as inúmeras crises gestadas no próprio governo (a desta semana foi o embate entre seguidores do escritor Olavo de Carvalho e os militares) e, assim, dá ao Congresso a chance de correr livre para impor sua própria agenda. Outro dado da realidade facilita o jogo. A extrema polarização por que passa o país já há algum tempo deixou claro quem são os extremos do espectro político e jogou todo o resto no centro. Hoje, o Centrão é considerado quase tudo que não for, de um lado, o PSL de Bolsonaro e o Novo, nem os partidos da oposição liderada pelo PT, PSOL e PDT. Sobra uma lista extensa: Avante, Cidadania, DEM, MDB, Patriotas, PHS , PMN , Podemos, PRP, PP, PR, PRB, PROS, PSC , PSD, PSDB, PV e Solidariedade. Na ponta do lápis, esses partidos somam cerca de 350 dos 513 deputados, o que lhes dá ampla margem para aprovar emendas constitucionais, que exigem ao menos 308 votos.
O núcleo duro do Centrão é composto por um seleto time de parlamentares que opera diretamente com Maia. Arthur Lira, do PP, é o mais agressivo deles. Advogado, natural de Maceió, já passou pelo PFL (atual DEM), PSDB, PTB e PMN. Investigado na Lava Jato juntamente com o pai, o ex-senador Benedito de Lira, é muito próximo do notório Ciro Nogueira, presidente do partido e também alvo de várias frentes da operação. Nesta semana, Arthur Lira foi a voz mais eloquente nos debates sobre o destino do Coaf. O deputado, um dos mais assíduos frequentadores do gabinete e da casa de Rodrigo Maia, não esconde seu protagonismo na organização e na execução da nova estratégia do grupo. “Sempre defendi o empoderamento do Legislativo. Sempre fui contra o Executivo mandar aqui. Antigamente, (os políticos) precisavam dos cargos do governo para abastecer a base. Hoje, se você tem Orçamento e diz para onde vai (o dinheiro), quem vai bater aqui é o Executivo. O ministro vai ser um mero cumpridor (do Orçamento)”, diz.
Assim como grande parte dos líderes do Centrão, Arthur Lira rejeita o título por considerá-lo pejorativo. “Não existe isso (de Centrão). O que existe é que não há base de governo. O governo não tem maioria, a oposição não tem maioria. Então quem faz a pauta é quem tem maioria”, afirma, acrescentando que não enxerga no horizonte sinais de melhora na relação do Planalto com o Congresso. “A política não identificou quem manda. Onyx combina com Maia uma coisa e faz outra. O Bolsonaro promete ao Davi (Alcolumbre) e sai outra. Daí vem militar e briga com o Olavo. Enquanto não se estabelecer um clima de confiança é melhor cada um no seu quadrado.”
Não raro, as ordens que guiam o grupo vêm de quem nem está no Congresso. No caso do PR, não há decisão importante que não seja tomada sem o aval do notório Valdemar Costa Neto, condenado no mensalão e no petrolão. No PSD, o ex-ministro Gilberto Kassab, presidente do partido, participa ativamente das discussões. Outra cabeça coroada do grupo é o deputado Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força, comandante do Solidariedade — o mesmo que, no Dia do Trabalho, disse que a reforma da Previdência deve ser aprovada com limites pelo Congresso para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro. O sincericídio de Paulinho causou constrangimento aos aliados. Alguns negaram partilhar do mesmo entendimento. Mas, conhecido por não ter papas na língua, o deputado só verbalizou uma conversa recorrente nos encontros reservados do grupo. A ideia está alinhada com a gênese da estratégia: a de fazer do Parlamento, cada vez mais, uma espécie de filtro capaz de limitar o poder presidencial em diversas frentes. Partindo dessa mesma premissa, nesta semana Maia anunciou que o Congresso deverá avaliar a constitucionalidade do decreto de Bolsonaro que liberou o porte de armas de fogo para vinte categorias profissionais.
Rodrigo Maia lidera o Centrão como se o consórcio fosse orgânico e homogêneo, e assim o apresenta ao governo. Na prática, porém, há divergências internas que reproduzem a lógica de funcionamento do grupo, com disputas entre caciques e grupos dissidentes, negociação de alianças e divergências eventuais. Nesta semana, por exemplo, houve incômodo por parte do PP com a forma como DEM e MDB negociaram com o Planalto a criação dos dois novos ministérios. No debate sobre a Previdência na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o PR não seguiu a estratégia idealizada pelo PP de inverter a pauta e votar a emenda constitucional do orçamento impositivo antes da reforma da Previdência. Maia conta com uma vantagem adicional, para além de sua ascendência sobre uma parte dos deputados, que é ter um correligionário, Davi Alcolumbre, na presidência do Senado.
A solução, que já começa a ser ventilada por governistas e pelo Centrão, pode ser abrir mais espaço para os políticos na Esplanada. Uma pasta cobiçada é a do Ministério do Turismo, cujo ministro, Marcelo Álvaro Antônio, do PSL, balança no cargo conforme avançam as investigações sobre candidaturas laranjas no diretório do partido em Minas. Os partidos também querem que o governo se comprometa a não mexer nos milhares de cargos de escalões mais baixos que, desde os governos anteriores, ainda estão nas mãos de afilhados políticos de deputados e senadores. Passados quatro meses da posse de Jair Bolsonaro, estima-se que ainda estejam sob controle de parlamentares algo em torno de 50% de todos os cargos comissionados da máquina federal pelo país afora — são funções em órgãos como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Embora não se mostrem suficientes para conter o Centrão, as concessões são prova de que o governo, acuado, começou a se dobrar à lógica de que é dando que se recebe.
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