Suamy Beydoun/Agif/Folhapress

O general na linha de tiro

O que está por trás da ofensiva contra Santos Cruz, o ministro militar que a ala radical do bolsonarismo quer derrubar. O jogo de intrigas palaciano inclui até acusação de falsificação de mensagens
17.05.19

“General, como foi lá ontem? Resolveu?”

“Nada. Ele ficou insistindo no vídeo.”

“Tendi.”

“Mas eu disse na cara dele que isso era coisa do desequilibrado do filho dele e do frouxo do Fabio.”

“E o q ele falou?”

“Que isso não ia se repetir. Mas eu não senti firmeza, ele deve ter dado ok por trás.”

“Ele é covarde, terceiriza ataque. Idiota.”

“Sim. É um imbecil, não fala na cara.”

“O jeito vai ter que ser colocar o Mourão mesmo rsrs”

“Isso.”

O diálogo acima circulou nos últimos dias nos celulares das mais altas figuras da República. As mensagens constam do print de uma conversa por WhatsApp ocorrida na manhã do dia 6 de maio. O general seria Carlos Alberto Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo. Ele estaria, em tese, falando com um interlocutor cuja identidade não está clara. O assunto central do diálogo é nada menos do que uma reunião com Jair Bolsonaro para tratar de um vídeo. O “desequilibrado” a que um deles se refere é Carlos Bolsonaro, filho do presidente. Mourão, como é fácil depreender, é o vice-presidente. O frouxo seria o novo chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten.

O tal print chegou ao conhecimento do próprio Bolsonaro pelas mãos de Wajngarten, ainda na semana passada. O secretário contou a pessoas próximas que recebeu a cópia da tela de um número de celular desconhecido. E que, por via das dúvidas, decidiu levar o assunto a Bolsonaro. Wajngarten é subordinado ao general Santos Cruz. Os dois estão em pé de guerra. Ligado à ala mais ideológica do governo, e ao próprio Carlos Bolsonaro, o filho 02 do presidente, Wajngarten entende que o general tem atravancado a área de comunicação do governo. Santos Cruz, por outro lado, resiste a abrir espaço para esse grupo. Até por isso, está há semanas sob ataque — ele foi alvo de xingamentos variados de Olavo de Carvalho, o falante guru bolsonarista. Bolsonaro, é claro, não gostou do que leu. Viu na troca de mensagens que lhe foi mostrada por Wajngarten sinais de que estaria sendo traído pelo general Santos Cruz – que o teria chamado de imbecil (“É um imbecil, não fala na cara”) ao responder a mensagem em que o interlocutor o tratava como covarde, falso e idiota (“Ele é covarde, terceiriza ataque. Idiota”). O diálogo termina com uma frase do interlocutor, entre risos, apresentando Hamilton Mourão como solução para a confusão (“O jeito vai ter que ser colocar o Mourão mesmo”), com a qual Santos Cruz supostamente teria concordado (“Isso”).

O print caiu como uma bomba no palácio. E não demorou para que as tais mensagens, cuja veracidade nunca foi comprovada, fossem logo relacionadas a uma declaração do próprio Bolsonaro na sexta-feira, 10, em que disse que haveria um tsunami nesta semana por causa de “erros não perdoáveis”. “Talvez tenha um tsunami na semana que vem. Mas a gente vence esse obstáculo aí, com toda a certeza, porque somos humanos. Alguns erram. Uns erros são perdoáveis, outros não. Assim é na nossa vida familiar também”, disse o presidente ao discursar para funcionários da Caixa. Não faltou quem entendesse que Santos Cruz seria demitido. O tsunami, na leitura de uma parte dos auxiliares palacianos, se daria porque Santos Cruz é um auxiliar importante do presidente e, além disso, sua possível demissão poderia não ser bem digerida pelos demais militares do governo.

O “print” da discórdia chegou primeiro para Wajngarten, que o levou para Bolsonaro
Como consequência das mensagens, Wajngarten e Santos Cruz discutiriam a relação. Desde que o secretário assumiu a função, há cerca de um mês, os dois nunca se entenderam. No encontro, ainda no final da semana passada, Wajngarten pediu que o ministro parasse de enxergá-lo como inimigo. Disse que é um empresário bem-sucedido que topou a empreitada em Brasília para ajudar o presidente e que, além disso, é entusiasta da boa comunicação. Santos Cruz ouviu, mas falou pouco. Focou na reação ao fogo cerrado sob o qual estava. Disse que o print que Wajngarten levara ao presidente – e que, teoricamente, o comprometia – era uma armação grosseira. Estava instalada uma atmosfera de intriga palaciana como havia muito não se via no Planalto. De um lado, um importante assessor presidencial levava Bolsonaro a desconfiar da lealdade do general. Do outro, o próprio general apontava a existência de uma fraude monumental para prejudicá-lo. Tudo isso em um ambiente já inflamado, em que os dois lados – o do general e o de Wajngarten – vêm se digladiando ferozmente nos bastidores.

A semana seguinte começou com a expectativa de que o general seria demitido. Na terça-feira, 14, o print foi um dos principais assuntos na reunião matinal que Bolsonaro costuma fazer diariamente com o núcleo duro do governo, batizada informalmente de “Bom Dia”. Estavam no gabinete, no terceiro andar do Planalto, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno Ribeiro, o porta-voz da Presidência, general Rêgo Barros, o ministro da Secretaria-Geral, general Floriano Peixoto, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, o chefe de gabinete do presidente, major reformado Pedro de Souza, e o chefe da assessoria especial do palácio, Célio Faria Júnior, além de Santos Cruz e de Wajngarten.

Santos Cruz voltou a dizer que se tratava de uma armação, o que, segundo ele, poderia ser facilmente verificado pela forma como as mensagens foram digitadas. Bolsonaro ouviu tudo. Parecia indignado com o nível da confusão. Mas não deixou transparecer, porém, seu julgamento sobre episódio. Estava evidente que a tentativa de derrubar o general havia chegado ao paroxismo. Santos Cruz afirmou publicamente que pediria uma investigação para apurar a origem das tais mensagens, de modo a deixar clara a armação – e, claro, desmascarar seus autores. Wajngarten submergiu. O próprio Bolsonaro chegou a dizer, internamente, que mandaria averiguar o ocorrido. Como nenhuma das hipóteses em cena era favorável ao governo e ao presidente – seja a suposta traição do general, seja a suposta fraude para derrubá-lo –, a saída mais próxima foi, ao menos para o público externo, dar o episódio como superado. O presidente, então, chamou Santos Cruz para integrar sua comitiva na viagem à cidade americana de Dallas, onde recebeu um prêmio nesta quinta-feira, 16. Wajngarten já havia sido convidado.

Reprodução/Jovem Pan/YouTubeReprodução/Jovem Pan/YouTubeWajngarten, o novo chefe da Secom, está em rota de colisão com o general
A guerra surda, porém, está longe do fim. Por trás da confusão em torno da polêmica reprodução da tela de WhatsApp está a disputa pelo controle das verbas de publicidade do governo. Muito embora a Secom de Fabio Wajngarten esteja subordinada à Secretaria de Governo de Santos Cruz, a comunicação é uma área do palácio que todas as alas do governo tentam controlar. Carlos Bolsonaro foi o responsável por indicar o primeiro ocupante da secretaria, Floriano Amorim. Resultou num desastre. A estratégia de privilegiar as redes sociais em detrimento da mídia tradicional não deu certo, o governo não conseguiu dar visibilidade às suas ações, a popularidade do presidente caiu. Não demorou para que Amorim caísse. Bolsonaro, então, decidiu bancar Wajngarten. Não sem antes obter a anuência dos filhos. Santos Cruz não foi sequer consultado. Mas Olavo de Carvalho comemorou. Ele postou em sua conta no Twitter no dia 26 de março, dias antes da nomeação: “Alguém me disse que o Fábio Wajngarten foi convidado para dirigir a Secom. Será uma notícia auspiciosa. Espero que se realize.”

O presidente havia conhecido Wajngarten três anos antes em São Paulo. A aproximação não foi difícil. Além de ser uma liderança atuante da comunidade judaica paulista, foi fundador do Controle de Concorrência, empresa que faz medição e verificação de publicidade. Também ajudou na operação para trazer a empresa alemã GfK para medir a audiência da televisão e fazer frente ao Ibope. Isso o tornou muito próximo das cúpulas de canais de televisão como Rede TV!, Record e SBT, que Bolsonaro privilegia em lugar da Globo, a líder de audiência. Wajngarten vê a comunicação como um ponto estratégico que precisa de investimentos para produzir resultados.

Dadas as condições para que Wajngarten assumisse, o que foi formalizado no início de abril, veio o efeito colateral. O estilo do novo secretário se chocou com o de Santos Cruz, a quem a Secom está formalmente subordinada e é o dono da caneta para liberar as verbas. O general assumiu em janeiro com a disposição de restringir a liberação de dinheiro. Auxiliado por dois integrantes da Advocacia-Geral da União, Santos Cruz mandou fazer uma auditoria que constatou gastos abusivos com publicidade nas gestões de Dilma Rousseff e de Michel Temer. Formou, então, a convicção de que era preciso evitar grandes somas com campanhas e consequente drenagem de recursos para a propaganda oficial.

Reprodução/TwitterReprodução/TwitterCarlos Bolsonaro, o filho 02 do presidente: ele quer ter controle da comunicação do governo
Em uma das primeiras reuniões entre as equipes de ambos, o general deixou claro que não daria um cheque em branco a Wajngarten. O primeiro veto significativo se deu na discussão sobre o montante a ser destinado para divulgar a reforma da Previdência. Santos Cruz disponibilizou 40 milhões de reais, ao passo que o secretário defendia o dobro, sob o argumento de que só os sindicatos, contrários à proposta, farão uma campanha estimada em 100 milhões de reais. O general avaliou que uma estratégia focada em mídias digitais, além de mais barata, poderia dar mais retorno. Wajngarten rebateu. Lembrou que no Nordeste, região onde há mais gente refratária à reforma, o que mais funciona ainda é a comunicação pelos meios tradicionais. Até hoje não houve consenso em relação ao tema. O primeiro embate público entre os dois ocorreu no final de abril, quando o presidente mandou suspender uma propaganda do Banco do Brasil que explorava a diversidade de gênero. Um auxiliar de Wajngarten disparou um e-mail para as estatais dizendo que, a partir dali, todas as peças publicitárias precisariam ser aprovadas pela Secom antes de serem levadas a público. Dois dias depois, Santos Cruz deu uma contraordem. Disse que a orientação feria a Lei das Estatais. O gesto do general incomodou Bolsonaro.

A tensão interna sobre as verbas e as estratégias da comunicação oficial cresceu à medida que, dos Estados Unidos, o escritor Olavo de Carvalho aumentava sobremaneira o tom contra os militares, em especial Santos Cruz. Em postagens nas redes sociais, o guru xingou o general de “bosta engomada”. Também disse que ele “fofoca e difama pelas costas” e, referindo-se a uma declaração do militar sobre redes sociais, escreveu: “Controlar a internet, Santos Cruz? Controlar a sua boca, seu merda”. A certa altura, a hashtag #ForaSantosCruz subiu entre as mais difundidas no Twitter. O embate tragou até o ex-comandante do Exército, general Villas Bôas, referência de todos os militares do governo. Surpreendentemente, Bolsonaro foi às redes, disse admirar Olavo e pediu que a confusão acabasse. Tudo isso a uma semana de surgir o print da discórdia.

Na balança entre os dois lados, Bolsonaro pendeu para o de Wajngarten. Nesta semana, embora tenha optado por colocar panos quentes na disputa, o presidente de fato considerou demitir Santos Cruz. Mas analisou os riscos que acompanhariam a decisão. Além da amizade de muitos anos com o general, ele avaliou que a demissão seria uma manobra de altíssimo risco para o governo pela reação em cadeia que ela poderia gerar. Dos oito participantes da reunião diária de “Bom Dia”, cinco são militares, quatro deles generais. O receio era de que a saída de Santos Cruz pudesse criar no grupo o mesmo sentimento de união demonstrado após os ataques de Olavo de Carvalho. Em um momento em que o governo enfrenta queda na popularidade, protestos nas ruas, derrotas diárias no Congresso e um dos filhos do presidente tem o sigilo bancário quebrado, arrumar problema com a turma da farda não seria um bom negócio. O fato de a demissão ter sido aventada, contudo, ampliou entre os militares a insatisfação com os rumos do governo, principalmente com a energia despendida por Jair Bolsonaro em questões menores, como a guerra ideológica contra seus adversários políticos, enquanto grandes questões, como a reforma da Previdência e a medida provisória que reestruturou a Esplanada dos Ministérios, por exemplo, estão sob ameaça no Congresso. Nada, contudo, que signifique a possibilidade de um desembarque massivo por ora. Indagado por Crusoé, um general bem posicionado no governo rejeitou peremptoriamente a hipótese: “Temos resiliência. Queremos suplantar as vicissitudes momentâneas. Você não verá aqui generais extremados”.

Agência BrasilAgência BrasilJair Bolsonaro nesta quinta, 16, em Dallas: guerra suja no palácio
A guerra, tudo indica, ainda terá muitas batalhas. Em uma folha de papel, militares desenham como enxergam o front em que estão posicionados desde janeiro. Como fazem nas discussões teóricas de estratégia nos quartéis, eles transpõem para o papel, em diagramas, o cenário. E nele há quatro núcleos. O central, onde se lê a palavra “governo”, “deve reforçar o discurso único e as ações”. Só estão nesse núcleo aqueles que de fato exercem funções relevantes na Esplanada. No círculo seguinte estão os “apoiadores”, cuja missão, ao menos no papel, deveria ser “ajudar a combater os opositores”. É nele que os militares colocam Olavo de Carvalho e os filhos do presidente. Depois vêm os “críticos”, que “devem ser neutralizados com argumentos e ações” e, por fim, os “opositores”, de quem é preciso se defender “para blindar o governo”. O problema é que, avaliam, os papéis se misturaram: os apoiadores estão atuando como críticos e opositores. “Quando Olavo de Carvalho ganhar um ministério ele pode falar sobre o governo. De fora, ele deve apoiar”, diz um militar. Ninguém se arrisca, porém, a dizer de qual dos quatro subgrupos vieram os prints que geraram a mais nova crise.

A Crusoé, Santos Cruz disse não ter ideia da origem das mensagens. De Dallas, ele afirmou que nos próximos dias vai avaliar os “aspectos legais” do caso: “Sobre esse fato lamentável que aconteceu, eu não tenho nenhuma ideia sobre a origem. Os aspectos legais serão analisados posteriormente, após o meu retorno a Brasília. Da minha parte, eu só tenho a dizer que acho que a população brasileira em geral espera por trabalho, dedicação, soluções e tranquilidade. Esses são os meus focos. Como disse acima, os aspectos legais serão analisados posteriormente”. Também procurada oficialmente, a Secom de Fabio Wajngarten respondeu que não comentaria o episódio. Qualquer que seja o desfecho, a gravidade da situação continua pairando no ar pesado do Planalto. Na hipótese de as mensagens serem verdadeiras, o que o general nega enfaticamente, para além do clima de desconfiança e de traição seria preciso considerar até a possibilidade de um dos interlocutores ter tido o telefone celular hackeado. O palácio estaria diante de um caso clássico de espionagem. A se considerar a outra hipótese, a de que o diálogo levado ao presidente é produto de uma fraude para derrubar um ministro do núcleo duro do governo, há que se admitir que a guerra intestina virou guerra suja. De um jeito ou de outro, é Bolsonaro quem perde.

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