O erro uruguaio
Conhecido por ser um país pacato e tranquilo, o Uruguai está experimentando um surto inédito de criminalidade. Foram 414 homicídios no ano passado, 46% a mais do que em 2017. A taxa de homicídios chegou a 11,8 para cada 100.000 habitantes. É um índice ainda pequeno se comparado ao Brasil, onde o número é quase duas vezes maior (25/100.000), mas já bem distante do da Argentina (5/100.000) e do Chile (3/100.000). E está acima do limite máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde, de 10/100.000. Os delitos contra a propriedade também registraram crescimento. Entre 2017 e 2018, os roubos a mão armada no Uruguai subiram 54%. Os furtos, 26%. E os roubos de carro, 40%.
Pela fama que o país conquistou ao ser o primeiro no mundo a regular o plantio, a produção e a venda de maconha, é natural que se comece procurando uma relação entre as duas coisas. Paradoxalmente, foi um roubo em uma pizzaria da capital Montevidéu, em 2012, que levou os políticos de esquerda a incluírem a legalização da maconha na agenda oficial. A ideia inicial era combater a criminalidade. Seis anos após a legalização da maconha, não é possível fazer qualquer ilação, nem a favor nem contra a medida. “Os homicídios, em geral, ocorrem mais por disputas no mercado ilegal de drogas rentáveis, como a cocaína e a pasta-base. Não tem nada a ver com a regulação da maconha”, diz o sociólogo uruguaio Marcos Baudean, da Universidade ORT, em Montevidéu, e pesquisador do tema.
A hipótese da desigualdade social para explicar a criminalidade também é facilmente descartável. A pobreza caiu drasticamente no país, de 21% há dez anos para os atuais 8%. O Uruguai é a nação que apresenta melhor equilíbrio de riqueza na América Latina. O PIB per capita é maior que o do Brasil e só perde para o Chile no subcontinente.
O novo Código de Processo Penal uruguaio estabeleceu ainda o “processo abreviado”, pelo qual os conflitos são resolvidos por meio de negociação entre os promotores e os advogados de defesa. O modelo, mais fácil e rápido, hoje corresponde a 95% do total de processos. Nele, as pendências são discutidas verbalmente em uma audiência. “O juiz só entra no final. Ele mal sabe o que aconteceu, porque não teve a oportunidade de estudar as provas. Praticamente só homologa um acordo que foi feito anteriormente entre a acusação e a defesa”, diz o promotor uruguaio Luis Pacheco Carve, especializado em crime organizado. “É com base na audiência oral que o juiz toma as medidas cautelares, incluindo a prisão preventiva. É uma solução bastante absurda”, diz o promotor.
O clima de insegurança fez com que, depois de apenas um ano e meio de existência, o novo Código de Processo Penal do Uruguai já perdesse muito do apoio que tinha no início, quando todos os partidos o aprovaram. Atualmente, várias legendas querem voltar atrás e estão usando o tema para ganhar força nas eleições de outubro. A rejeição ao presidente Tabaré Vázquez, da coalizão Frente Ampla, subiu de 42% há um ano para 51%. “A deterioração do ambiente de segurança tem sugado o capital político de Vázquez, que tinha prometido reduzir a criminalidade comum em 30% em seu mandato de cinco anos”, diz o analista Thomaz Favaro, da Control Risks. “Por causa disso, estas serão as eleições mais apertadas da Frente Ampla desde 2005, quando a coalizão assumiu o poder.”
É imperativo, contudo, que a flexibilização das penas seja acompanhada de uma estrutura adequada. No Brasil, há 149 centrais de alternativas penais (CPAs), que atendem cerca de 250 mil pessoas. “Essas unidades garantem o cumprimento adequado da pena determinada pelo juiz”, diz Fabiana Leite, uma das coordenadoras do programa Justiça Presente, uma parceria do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o PNUD.
Uma transferência dos que estão dentro de cadeias com penas leves para um regime aberto acarretaria um aumento de 52% da população que atualmente cumpre penas alternativas no Brasil. Mas muitas CPAs, principalmente nos estados mais pobres, já funcionam com um quadro reduzido de funcionários, o que poderia comprometer a eficiência do sistema. “O bom funcionamento das cadeias e das CPAs é fundamental para dar uma resposta dissuasória aos criminosos. Sem isso, eles poderiam achar que ficariam impunes, o que seria catastrófico para o país, assim como o foi para o Uruguai”, diz o especialista em segurança José Vicente da Silva, coronel aposentado da Polícia Militar.
Com um legislação criminal branda e sem um sistema capaz de aplicar as penas alternativas com rigor, o Uruguai talvez seja obrigado a voltar a recorrer às prisões. Antes que se faça qualquer mudança no sistema brasileiro, vale lembrar o que o ministro da Justiça, Sergio Moro, publicou no Twitter na última quarta-feira: “Ouço muito que prender custa caro. Que o preso custa muito para o estado. É verdade, mas quanto custa um criminoso perigoso solto? A solução para o crime não pode ser abrir as portas da prisão em um sistema já leniente. O raciocínio não fecha”.
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