Flávio, o polvo
No início deste ano, o Superior Tribunal de Justiça anulou as provas coletadas na investigação que mirou as suspeitas de rachid no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio. Na prática, a denúncia do Ministério Público fluminense foi aniquilada, e a investigação terá de ser refeita. A peça que sustentou a acusação, porém, revela ao longo de três centenas de páginas um parlamentar descuidado, que investia o dinheiro recolhido entre os assessores na compra de imóveis e em uma loja de chocolates da qual era sócio. O operador do esquema, Fabrício Queiroz, chegou a ser flagrado por câmeras de agências bancárias pagando contas privadas da família do chefe. Eleito senador, e com o status de filho do presidente da República, Flávio mudou de estratégia. Agora ele evita deixar as digitais nos movimentos que faz nas sombras do poder. Também dono de uma carteira da OAB, ainda não virou sócio formal de nenhuma banca, mas opera interesses diversos em parceria com outros advogados e com notórios lobistas escolados no submundo de Brasília – alguns já foram até para a cadeia.
Um dos bunkers utilizados pelo senador é uma casa de 1,5 mil metros quadrados no Lago Sul alugada há dois meses por dois antigos parceiros dele, o advogado Alan Belaciano e o empresário Cristiano Stockler. Até se mudar para Brasília no rastro de Flávio, a dupla não tinha grande atuação na capital federal. Especializado em direito desportivo e trabalhista, Alan Belaciano costumava despachar em processos que corriam majoritariamente no Superior Tribunal de Justiça Desportiva e na Justiça do Trabalho do Rio, onde defende interesses de jogadores de futebol. Já Stockler é dono de várias corretoras de seguros. Ambos já tiveram problemas com a polícia. Em 2005, Belaciano chegou a ser detido por se apresentar falsamente como juiz. Stockler, por sua vez, foi preso mais recentemente, no final de 2020, sob a acusação de integrar o famoso “QG da propina” do então prefeito do Rio, Marcelo Crivella. Segundo a Promotoria, ele operava esquemas na área de saúde.
A casa recém-alugada virou um atalho importante para a Esplanada dos Ministérios e para o Palácio do Planalto. Com a chegada dos novos inquilinos, ela passou a ser visitada por interessados em resolver pendências no governo e por candidatos a cargos importantes que buscam a simpatia e o apoio do filho do presidente – sim, como o leitor verá a seguir, “doutor Flávio” e seus parceiros têm aproveitado o poder transitório de Jair Bolsonaro para garantir influência duradoura em órgãos estratégicos, incluindo os tribunais superiores. Até nomeações para as mais altas cortes brasilienses têm passado pelo crivo da turma de Flávio antes da canetada final de Bolsonaro. Na lista de personagens que bateram à porta da mansão dos parceiros do 01 em busca de apoio, está Alberto Balazeiro, novo ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Na ocasião da visita, ele era apenas um candidato à vaga. Dias depois, foi nomeado pelo presidente. Procurado por Crusoé, Balazeiro primeiro tentou se esquivar. Disse não saber do que se tratava. Depois, por intermédio de sua assessoria, admitiu que a visita foi parte do “rito” necessário para que seu nome fosse aprovado para o TST.
Outro parceiro importante de Flávio Bolsonaro em sua nova fase brasiliense foi personagem de um dos maiores escândalos da história recente da República. Trata-se do advogado Willer Tomaz, que foi preso em 2017 na rumorosa operação deflagrada a partir do acordo de delação premiada dos irmãos Joesley e Wesley Batista, da JBS, aquela que pôs em apuros até o então presidente Michel Temer. Willer Tomaz teria intermediado pagamentos a um procurador da República para que ele não avançasse em apurações que poderiam incomodar os negócios dos Batista. Depois de passar três meses na cadeia, o advogado atravessou um longo período submerso, até que voltou com força à cena a partir do início do governo Bolsonaro. Nos bastidores de Brasília, ele é apontado como um atalho para quem deseja chegar a Flávio Bolsonaro – qualquer semelhança com a dupla Belaciano-Stockler, aquela da mansão do Lago Sul, não é mera coincidência.
Tanto o escritório de Willer, no mesmo Lago Sul, quanto o rancho luxuoso que o advogado mantém à beira de um lago na área rural de Planaltina, a pouco mais de 70 quilômetros de Brasília, passaram a integrar com destaque o roteiro do poder na era bolsonarista. Em razão de sua preciosa rede de contatos, a banca do advogado passou a atrair uma clientela de peso, que inclui governadores, senadores e deputados, entre eles o presidente da Câmara, Arthur Lira. Os dois endereços têm servido para encontros – alguns mais formais, outros nem tanto – que nem sempre envolvem assuntos jurídicos. Costuras políticas que envolvem o governo e o Congresso também têm passado pelos domínios do amigo de Flávio. No meio da tarde do último dia 24 de junho, uma quinta-feira, por exemplo, ele recebeu os presidentes das duas casas do Congresso – além de Arthur Lira, seu cliente, esteve por lá o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
Entre Willer, Flávio e os demais parceiros brasilienses do senador, há uma extensa teia de relações que se cruzam – e muitas vezes resultam em networking e em novos negócios. Passa por ela, por exemplo, a ligação do filho do presidente com Francisco Maximiano, dono da Precisa Medicamentos, a empresa que tentou intermediar a venda superfaturada da vacina indiana Covaxin para o governo e que hoje está na mira da CPI da Covid. Em outubro do ano passado, Flávio Bolsonaro acompanhou Maximiano, o Max, em uma audiência com o presidente do BNDES, Gustavo Montezano. Em uma sessão recente da comissão de inquérito, após perceber que seu nome e o de Willer Tomaz haviam entrado no radar da investigação, o filho 01 do presidente afirmou ter conhecido Max, o dono da Precisa, por meio de “amigos em comum de Brasília”.
Outra figura encrencada nas suspeitas que envolvem o Ministério da Saúde, o empresário Carlos Alberto de Sá também é integrante do círculo íntimo de Willer. Sá é sócio da VTCLog, empresa de logística contratada a peso de ouro pelo Ministério da Saúde que, conforme mostrou Crusoé, é apontada como parte de um esquema de distribuição de propina a chefes do Progressistas, o principal partido do Centrão. A VTCLog teve seu contrato com o ministério reajustado na esteira de um suposto romance extraconjugal encabeçado pelo novo ministro da Casa Civil de Jair Bolsonaro, Ciro Nogueira. Após alegadamente descobrir que sua mulher estava tendo um caso com Ciro, o também empresário Flávio Loureiro, amigo do dono da empresa, teria aproveitado para pressionar o agora ministro a usar de sua influência na pasta em favor do reajustar o contrato. A história, com todos os seus detalhes picantes, chegou aos ouvidos dos senadores da CPI e, aos poucos, as peças vão se encaixando. A Crusoé, Flávio Loureiro disse que seu amigo dono da VTCLog teve um encontro com Ciro Nogueira no rancho de Willer Tomaz. Willer admitiu ser amigo de ambos, mas negou ter sido anfitrião da reunião. “Nunca houve esse encontro. Isso é conversa fiada desse corno”, disse, referindo-se elegantemente ao personagem traído da trama. Em tempo: o marido supostamente traído também se apresenta como amigo de Flávio Bolsonaro. Diz que até joga futebol com o senador.
De tão pesado que é o jogo, alguns dos parceiros de Flávio Bolsonaro se atacam na disputa por posições mais destacadas na relação com o senador – não raro, uns deixam vazar informações pontuais sobre os movimentos dos outros. Ainda fazem parte do círculo íntimo do primogênito de Jair Bolsonaro o advogado Antônio Rueda, vice-presidente nacional do PSL, antigo partido do presidente da República, e obviamente Frederick Wassef, que enche a boca para falar que participa do processo de escolha de desembargadores federais e ministros de tribunais superiores no atual governo. Em mais uma evidência de que as histórias dão voltas e param sempre no mesmo lugar, Rueda, que também promove festas em torno de Flávio e até recentemente vinha liderando o esforço para refiliar Jair Bolsonaro ao PSL, vem a ser sócio do empresário Flávio Loureiro – o marido que se diz traído – em um restaurante de Brasília.
Do rol de parceiros do 01 em Brasília também têm saído articulações em busca de nomes para preencher outros postos estratégicos da máquina federal. Recentemente, lobistas próximos ao senador foram consultados por ele sobre possíveis nomes para ocupar a presidência do Coaf. O grupo vem se movimentando, ainda, para indicar o novo superintendente da Susep, o órgão federal que controla e fiscaliza o bilionário mercado de seguros e previdência privada. Em nota, Flávio Bolsonaro negou que haja interesses escusos por trás do relacionamento que mantém com os personagens citados nesta reportagem.
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