Pedro Ladeira/Folhapress

Bolsonaro sob pressão

Os desafios da política real impõem ao presidente um precoce teste de resistência e levam seus apoiadores a convocar manifestações de apoio. Mas o propalado risco de ruptura institucional é um evidente exagero
23.05.19

No dia 10 de abril, dez ativistas de direita se reuniram em um galpão alugado no bairro do Butantã, em São Paulo. Estavam todos indignados com os rumos da política nacional, em especial com a operação de bastidores que derrubou a chamada CPI da Lava Toga. Também reclamavam das dificuldades impostas pelo Congresso à proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo no início do ano. Decidiram, então, convocar uma manifestação em favor da reforma e contra o STF para o dia 26 de maio. Ao final do encontro, cantaram o hino nacional e, com duas bandeiras do Brasil na cena, fizeram uma transmissão ao vivo pelo Facebook para anunciar a decisão.

Na “live”, Jair Bolsonaro foi citado apenas uma vez. Prevaleceram nos discursos dos ativistas as críticas à esquerda (“o que a esquerda quer é o caos”), a necessidade de reocupar as ruas (“as ruas são nossas”) e um pedido: queriam ajuda para difundir nas redes a hashtag #stfvergonhanacionaltodosnarua. Dois dos principais movimentos responsáveis pelas manifestações que culminaram no impeachment de Dilma Rousseff, o Movimento Brasil Livre e o Vem pra Rua, não quiseram participar do encontro. Até por isso, por semanas a fio não havia grandes expectativas de público para o evento deste domingo. Até que Jair Bolsonaro e a sucessão de episódios que viriam a ocorrer nas semanas seguintes deram ao movimento uma relevância que ele jamais teve desde que fora anunciado.

O controle da agenda do país pelo Centrão, o grupo majoritário de parlamentares liderado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, as manifestações de rua protagonizadas pela esquerda contra o contigenciamento de recursos na educação, a insatisfação da ala militar do governo com os ataques encampados pelo setor ideológico encabeçado pelo escritor Olavo de Carvalho, os pífios resultados até agora na economia e a queda na popularidade do presidente têm colocado Bolsonaro sob pressão extrema, de diferentes lados, em apenas cinco meses de governo. Eleito sob forte discurso de reconstrução do país, o presidente tem dificuldades para governar, o que fez com que a ideia original de seus apoiadores ao convocar a manifestação ganhasse um elemento adicional: dar força ao presidente para seguir adiante.

Reprodução/FacebookReprodução/FacebookA reunião que resultou na manifestação: o STF era o alvo no começo
Ocorre que até aliados mais próximos não só duvidam da utilidade do movimento como o veem como arriscado e prejudicial à imagem do governo. “Por que botar em jogo uma pergunta popular se é a favor ou contra ele?”, critica o deputado Luciano Bivar, presidente do PSL, o partido de Jair Bolsonaro. Outra questão que se impõe é: mesmo se o saldo deste domingo for positivo, o que virá a seguir? A maior parte das dificuldades encontradas por Bolsonaro até agora decorrem do próprio estilo que escolheu para governar. O presidente tem alternado críticas à velha política com afagos ao Congresso, do qual ele depende para aprovar as reformas. Por vezes, parece apostar que a força de seus apoiadores fará os parlamentares se curvarem a seus planos.

O comportamento errático do presidente tem irritado um número considerável de congressistas, que dizem não saber qual é seu real interesse. Para ficar em um exemplo recente do estilo presidencial, na segunda-feira, 20, em uma palestra pela manhã na Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, Bolsonaro mordeu (de novo) os políticos. “O Brasil é um país maravilhoso, que tem tudo para dar certo, mas que o grande problema é a nossa classe política”, disse. A frase não foi bem digerida em Brasília, embora presidente tenha se incluído na classe. À tarde, de volta à capital, no lançamento da campanha pela reforma da Previdência, ele assoprou: “O time que formamos, junto com parlamentares, tem essa preocupação com o futuro do Brasil”.

A tática do avança-e-recua foi usada também em relação às manifestações de domingo. O movimento vinha sendo acompanhado apenas nos bastidores pelo governo, até que o Congresso tomou conta da agenda do país e impôs a Bolsonaro uma sequência de derrotas. A mais significativa delas, a aprovação de um parecer favorável à retirada do Coaf das mãos do ministro da Justiça, Sergio Moro, no dia 9 de maio, foi determinante para que a pauta fosse redimensionada. O protesto que havia nascido com foco na defesa da reforma da Previdência e nas críticas ao STF foi ampliado para abarcar uma contra-ofensiva ao Centrão, apontado como o obstáculo maior para o avanço da pauta governista. Na semana seguinte, os protestos contra os cortes na educação inflamaram a rede bolsonarista, que temeu perder o espaço das ruas para a oposição. Faltava só o gesto do presidente para selar de vez o viés governista da manifestação. E ele veio. Na sexta-feira, ao compartilhar com aliados por WhatsApp um texto que dizia que o Brasil está tomado por corporações e é ingovernável sem conchavos, o presidente inflamou ainda mais seus seguidores.

O texto foi amplamente utilizado pelos ativistas para reforçar a necessidade de ocupar as ruas. Não foi por acaso. Grande parte dos movimentos que encabeçam as manifestações deste domingo tem elos com o governo. O Avança Brasil, formado na origem por um grupo de maçons, foi o primeiro a anunciar apoio a Bolsonaro nas eleições de 2018. O grupo tem entre seus conselheiros o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança, o “Príncipe”, do mesmo PSL de Bolsonaro, e o escritor Olavo de Carvalho, guru da chamada ala ideológica do governo. O “Nas Ruas”, que tem como maior liderança a deputada federal Carla Zambelli, e o Direita SP, que tem como líder o deputado estadual Douglas Garcia, ambos do PSL, entendem que o mandato de Bolsonaro está em risco. “Tudo o que o povo queria em termos de formação de governo e propostas está acontecendo, mas existe receio do que vai acontecer daqui para a frente. Já se começou a falar em impeachment ou renúncia com apenas quatro meses”, diz Nilton Caccáos, um dos líderes do Avança Brasil.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMaia em plenário: para não ser acusado de fisiologismo, ele desistiu de criar dois ministérios
Oficialmente, há mais de dez grupos de direita organizando o ato de domingo. Entretanto, desde o início, ativistas mais radicais aproveitaram a convocação para tentar amplificar suas agendas – inclusive as mais radicais e antidemocráticas. Nos dias seguintes à reunião que definiu a data da manifestação, alguns desses grupos subiram no Twitter hashtags pedindo a invasão do Congresso, invocando o artigo 142 da Constituição, utilizada para fundamentar a intervenção militar. Isso, por óbvio, incomodou os demais poderes, que passaram a ver uma mobilização incentivada pelo governo com o interesse de desestabilizá-los. A leitura natural foi a de que Bolsonaro estava insuflando a confusão. Não faltou quem enxergasse no cenário um risco que muitos parlamentares viam antes mesmo da posse do presidente: o de que ele poderia, no futuro, tentar usar a militância para impor suas vontades às instituições.

O próprio Bolsonaro, então, entrou para distensionar. Chamou na terça-feira à noite o presidente do STF, Dias Toffoli, para uma conversa no Palácio da Alvorada, a residência oficial da Presidência da República. Após o encontro, que durou cerca de 20 minutos, divulgou uma nota em tom amistoso: “Sou grato ao presidente do Supremo quando aceitou, a meu convite, se dirigir ao Alvorada onde discutimos questões da conjuntura atual. A harmonia reina entre nós na busca de soluções dos problemas nacionais, entre eles a Nova Previdência.” Também pregou a harmonia institucional em mensagem publicada em seu Twitter. “Acredito na harmonia, na sensibilidade e no patriotismo dos integrantes dos três Poderes da República para o momento que atravessa nossa Nação”, dizia o tuíte.

Em um gesto para descolar o governo dos protestos, Bolsonaro também proibiu ministros de participarem dos atos. O comando foi passado aos mais próximos. Perguntado por Crusoé se apoia as manifestações, o deputado Eduardo Bolsonaro não quis falar. “Nada a declarar. Estou sendo sincero contigo. A gente vai discutir outros temas futuramente, mas nesse aí, nada a declarar”. disse. O deputado Helio Lopes, amigo e sombra do presidente, afirmou não saber se iria. “Eu tenho um compromisso na igreja. Estou verificando (se vou) por causa do horário.” Ao mesmo tempo em que era perceptível o esforço de seu entorno para se desvincular da manifestação, o presidente não desencorajou os atos: “Quanto aos atos do dia 26, vejo como uma manifestação espontânea da população, que de forma inédita vem sendo a voz principal para as decisões políticas que o Brasil deve tomar”.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO vice-presidente, general Hamilton Mourão: os militares rechaçam a ideia de ruptura
Uma parte dos apoiadores de Jair Bolsonaro encara o protesto como um chamado do presidente. O problema é que, qualquer que seja o cenário, os atos embutem risco para o próprio Bolsonaro e para o governo. Mas nada que chegue perto das teorias conspiratórias propaladas nos últimos dias. Na história do Brasil, golpes sempre foram acompanhados de uma conjunção de fatores a sustentá-los. A começar pelo apoio das Forças Armadas, de setores importantes da economia — e de protagonistas do próprio parlamento. O grito das ruas, ou de parte dela, nunca foi suficiente. Ainda que quisesse, o que não parece um dado concreto a ser considerado, não há sinais de que Bolsonaro conte com o mix de fatores pré-golpe que a história não deixa esquecer. Portanto, o risco de ruptura institucional difundido em discursos e análises se mostra um evidente exagero. Assim como parecem exageradas as leituras de que o impeachment é algo que pode estar tão perto quanto a próxima esquina. “Não consigo enxergar um golpe nos moldes de 1964. As condições internas e externas são distintas”, diz Hector Saint-Pierre, coordenador do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, a Universidade Estadual Paulista. Também faltam, ao menos até aqui, elementos capazes de sustentar mais um impedimento presidencial.

Os riscos reais são outros, bem diferentes. A se considerar que a mobilização terá grande presença popular (na quinta-feira, 23, a previsão era de que elas se estenderão a 350 cidades), o resultado imediato será instigar a oposição a superá-la no ato já marcado para o dia 30 — que, por sua vez, poderá ser revidado com outro ato governista. O país, assim, poderia entrar em uma onda de manifestações nas quais todos os três poderes se sentirão emparedados com consequências imprevisíveis para a economia e a política. Os militares, hoje autodeclarados de centro e publicamente avessos a qualquer possibilidade de ruptura, manteriam essa condição? Por outro lado, se a manifestação fracassar, a fragilidade do presidente evidenciada no jogo político de Brasília estará reproduzida nas ruas. Isso abriria espaço para uma espécie de “parlamentarismo branco”, algo que o Congresso vem tentando implementar.

Antes mesmo de acontecerem, os protestos já causaram consequências. Nesta semana, movido pelo clima em torno da manifestação, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, antecipou a votação da medida provisória que tratava da reestruturação do governo. Maia e o Centrão queriam derrubar a criação de dois novos ministérios, o que havia sido negociado semanas antes com o Planalto para apaziguar a relação com o Congresso. Pretendiam, assim, esvaziar o discurso de que os parlamentares pressionam o governo por cargos. Na mesma sessão, o plenário confirmou a retirada do Coaf da alçada de Sergio Moro, o ministro da Justiça. O placar foi mais apertado do que se desenhava, talvez como reflexo da pressão – esta legítima – contra a mudança, arquitetada e executada pelos adversários da Lava Jato (e de Moro) no Congresso.

O Centrão mostrou suas garras também no esforço para aprovar a tentativa de limitar o poder de investigação de auditores da Receita, mais um pilar da ofensiva dos anti-Lava Jato. Teve que recuar. Depois de um acordo com os governistas, a proposta foi retirada do texto da medida provisória, onde havia sido estranhamente incluída – como mostrou Crusoé há duas semanas, um típico “jabuti”, para usar um conhecido jargão dos corredores do poder. Não foi um recuo completo porque um projeto de lei sobre o mesmo assunto será debatido nas próximas semanas. Mas não deixa de ser um sinal de que as pressões, quando legítimas, são válidas. O importante é que elas ocorram, sempre, dentro dos marcos da democracia.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO