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Sobre dominar a linguagem

26.12.19
Paulo Cruz

“Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, “ela significa exatamente o que quero que signifique: nem mais nem menos”. “A questão é”, disse Alice, “se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes”. “A questão”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem vai mandar – só isto”
Lewis Carroll, em Alice Através do Espelho

 

Imagine o seguinte esquete do Monty Python – a lendária trupe de comediantes ingleses: John Cleese entra numa sala quase vazia, com apenas um homem – Eric Idle –, em pé, ao lado de uma cama, segurando um pequeno prato com um copo com água e uma toalha apoiada em seu antebraço. Cleese se aproxima da cama, aponta para o homem – que está imóvel, com a fisionomia ligeiramente atônita – e diz: “esse é o Joe, um criado mudo. Joe passa dia e noite imóvel ao lado da cama com um copo d’água, roupas ou o que mais for. Ele é mudo porque o senhor lhe cortou a língua; afinal de contas, um criado não pode falar – sabe-se lá com quem – enquanto o senhor dorme. Essas marcas em seu corpo são por castigos que sofreu para ‘aprender’ a nunca se mexer enquanto alguém está dormindo”. Cleese pega o copo do prato, o criado-mudo lança um ligeiro olhar de soslaio a ele que, abruptamente, lhe joga a água na cara.

Essa esquete, bem ao gosto nonsense e sarcástico da trupe britânica, poderia ter sido protagonizada (e foi, imaginativamente, pelo menos) por uma fábrica de móveis numa campanha que teve a coragem de cometer favor na luta contra o racismo. Isso mesmo, caro leitor: uma fábrica de móveis aderiu a uma narrativa absurda, inventada, que relaciona o nome do simpático móvel – que há tanto ampara nossos despertadores e abajures – a um escravo que, supostamente, ficaria ao lado da cama o tempo todo, a noite toda, satisfazendo o sadismo de seu senhor. Assim, resolveu protestar através de uma campanha – de marketing, diga-se – que propõe a mudança de nome do inocente utensílio. Para quê? Não sei, uma vez que, provavelmente, ninguém até então fazia tal associação quando depositava nele o seu relógio de pulso antes de dormir; e mesmo que fosse verdade, duzentos anos foram suficientes para que essa curiosidade semântica não nos causasse qualquer espanto.

Mesa de cabeceira é o nome proposto. Ou seja, numa patética corrupção da linguagem, um móvel que não é uma mesa e nem fica na cabeceira da cama, mas que, de maneira brilhantemente metafórica, tem (ou tinha, caso loucos orwelianos vençam) um nome de riquíssimo apelo simbólico, foi renomeado por uma loja em solidariedade aos pobres negros que, supostamente, se horrorizariam com o termo herdado do nefasto período escravista. Mas tudo isso não passaria de uma piada de mau gosto não fosse a enorme repercussão que gerou, com direito à adesão de outros fabricantes e lojas, numa submissão bovina aos ditames do politicamente correto e de gente que deseja moldar o mundo, de forma tacanha e autoritária, à sua própria imagem e semelhança. Num país com enormes problemas estruturais, é uma vergonha que alguns se deem o trabalho de incomodar a sociedade com picuinhas sem qualquer relevância, somente para parecerem bons e conscientes aos seus próprios olhos.

Será que não passou pela cabeça dessa gente que esse modo paternalista de agir é tão ou mais ofensivo que um ato de racismo explícito, pois passa a impressão de que os negros não têm capacidade de reagir àquilo que verdadeiramente os ofende, e que uma intervenção de pessoas superiores, de alma nobre, se faz necessária. Como se esse tutelismo ridículo não nos afrontasse mais do que o nome de um móvel que teria sido inventado para substituir um pobre-diabo – nesse caso, uma invenção não só útil, mas louvável – que, plantado ao lado da cama a noite toda, curiosamente não causava qualquer desconforto psicológico ao senhor que ali dormia o sono dos justos.

Essa “tutela das palavras”, como diz Sócrates no diálogo platônico Crátilo, é um risco, uma vez que a linguagem é dinâmica e polissêmica por natureza. No entanto, essa é uma marca registrada das ideologias e suas simplificações da realidade que visam inconsequentes transformações sociais. Tal manipulação da linguagem oferece uma vantagem ao ideólogo, que, construindo um falso fundamento para suas teorias, passa a ter autorização para aplicar suas transformações sociais sem que seja questionado, uma vez que qualquer pergunta é respondida com uma advertência do tipo: “você está sendo preconceituoso”. É por isso que o ovo falante Humpty Dumpty, personagem icônico de Lewis Carroll, diz, conforme a epígrafe deste artigo, que importa é “saber quem vai mandar”, pois quem manda faz cumprir a suas determinações, bastando que, para isso, tenha poder de impor a sua vontade através da manipulação da opinião pública.

O psiquiatra Anthony Daniels (a.k.a. Theodore Dalrymple) nos adverte, em Podres de Mimados, dos perigos do sentimentalismo tóxico suscitado pela manipulação politicamente correta da linguagem. Segundo ele, “as tentativas modernas de reforma da linguagem […] são tentativas de realizar um fim político, normalmente utópico, e, portanto, ao mesmo tempo romântico e sentimental: um fim que, ao mesmo tempo, se deseja – ou que ao menos se diz desejar – e que se sabe não ser possível. Trata-se, portanto, de uma ferramenta permanentemente útil, mas desonesta para aqueles que buscam o poder”. E arremata, de modo categórico: “O sentimentalismo é o aliado da megalomania e da corrupção”. Mas nada disso teria sentido se não fosse a necessidade de manifestar publicamente seu sentimentalismo disfarçado de superioridade moral. Dalrymple afirma que:

A expressão pública do sentimentalismo tem consequências importantes. Em primeiro lugar, ela demanda uma resposta daqueles que a testemunham. Essa resposta deve, de maneira geral, ser simpática e afirmativa, a menos que a testemunha esteja preparada para correr o risco de um confronto com a pessoa sentimental e ser acusada de dureza de coração ou de pura e simples crueldade. Há, portanto, algo coercivo ou intimidador em exibições públicas de sentimentalismo. Tome parte ou, no mínimo, evite criticar. […] Em segundo lugar, exibições de sentimentalismo público não coagem apenas os transeuntes ocasionais […] mas quando são suficientemente fortes ou disseminadas, começam a afetar as políticas públicas. […] o sentimentalismo permite que o governo jogue ossos para o público em vez de enfrentar os problemas de maneira determinada e racional, ainda que também inconvenientemente controversa.

De outro modo, é ainda mais grave quando o próprio estado é o ideólogo. Quem leu 1984, de George Orwell, sabe bem do que se trata. A novafala (ou novilíngua) é o recurso mais poderoso do governo de Oceania. Como diz Syme, especialista em novafala, ao protagonista Winston Smith:

Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? […] Todo conceito de que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com significado rigidamente definido, e todos os seus significados subsidiários serão eliminados e esquecidos. […] É pura e simplesmente uma questão de autodisciplina, de controle da realidade. Mas, no fim, nem isso será necessário. A Revolução estará completa quando a linguagem for perfeita. A Novafala é o Socing, e o Socing é Novafala.

Ou seja, a própria ideologia do estado totalitário é fundamentada no controle da linguagem, que, para Syme, será o ápice, a ortodoxia do regime: “Ortodoxia significa não pensar – não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é inconsciência”. O mundo dos ideólogos do politicamente correto é o mundo no qual a estupidez de todos – exceto deles próprios – é a regra máxima, pois suscita a obediência máxima. Ao fim e ao cabo, o politicamente correto se torna, conforme nos diz o médico Bruce Charlton, autor de Thought Prision: the fundamental nature of political correctness, “um processo de ilusão deliberadamente auto-induzido (idealmente, a ponto de esquecer o ato de escolher uma ilusão)”. Passaremos a vigiar e a censurar uns aos outros, como já ocorre principalmente no ambiente das redes sociais, não porque somos convictos de que palavras há muito utilizadas, cuja origem ignoramos completamente, têm o poder de causar danos psicológicos na atualidade, mas porque não queremos ser advertidos – quiçá presos, num futuro não muito remoto. Urge resistir.

Paulo Cruz é professor e palestrante nas áreas de filosofia e educação e propõe reflexões incomuns sobre questões relacionadas ao racismo.

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