MarioSabino

Terapia contra o pessimismo

15.11.19

Quando estou mais pessimista do que o normal, o meu malthusianismo aflora. Eu estava bem malthusiano na semana passada, por motivo ululante. Via outra vez gente desonesta crescendo em progressão geométrica, sem controle, e o apocalipse parecia estar logo ali. Até que abri um pacote enviado pela editora Record, que publica as minhas besteiras, e li o título do livro que me foi presenteado: Factfulness — O Hábito Libertador de Só Ter Opiniões Baseadas em Fatos. Atrativo, sem dúvida, mas foi o slash que me estimulou a adentrar as mais de 300 páginas do volume: Informações como uma forma de terapia. Nada melhor do que uma terapia para embotar o meu malthusianismo e levar a que eu mude um pouco de assunto.

O autor é o sueco Hans Rosling, que ficou mundialmente conhecido, segundo a orelha do livro, por suas palestras TED. Confesso que não fazia a menor ideia do que fosse uma palestra TED. Fui ao Google. É um tipo de palestra que foca em tecnologia, entretenimento e design, daí a sigla. A coisa foi criada na Califórnia em 1984, ano que, pessimista que sou, só me evoca o livro de George Orwell. Professor na área de Saúde, Rosling dedicou-se a combater a ignorância devastadora (orelha) e, em 2012, foi considerado uma das cem pessoas mais influentes do mundo pela Time, aquela revista que já foi uma das cem publicações mais influentes do mundo.

Entusiasmado com a possibilidade de adquirir o hábito libertador de ter opiniões baseadas em fatos — algo especialmente difícil para nós, jornalistas —, respondi ao questionário com 13 perguntas factuais, elaborado para testar a ignorância devastadora do leitor. A terapia já começa aí: não é difícil perceber que, em 12 das 13 perguntas, o negócio é escolher a opção não apocalíptica para acertar a resposta. Tudo vem melhorando para o que se convencionou chamar de humanidade. A maioria dos nossos semelhantes vive em países de renda média e não baixa. Em vinte anos, a proporção de população mundial em estado de extrema pobreza caiu quase pela metade. A expectativa de vida média no mundo alcança 70 anos. O número de crianças em 2100 deve ser igual ao de hoje: 2 bilhões (dado essencial para aumentar a vergonha do meu malthusianismo ultrapassado). Mais alvissareiro: tigres, pandas-gigantes e rinocerontes-negros estão aparentemente livres da extinção.

Há listas de estatísticas animadoras que vão de encontro ao meu pessimismo. O alto astral é tanto que o autor registra como positivo o fato de o número de violões para cada milhão de pessoas ter aumentado de 200, em 1962, para 11 mil, em 2014. Eu arrancaria com prazer as cordas de cada um deles, mas procurei seguir o conselho de Rosling e persuadir a mim mesmo a manter dois pensamentos concomitantes na cabeça — o de que as coisas podem ser ruins e melhores ao mesmo tempo. Estou usando as palavras do autor.

Não entendeu? Ele explica:

“Pense no mundo como um bebê prematuro numa incubadora. A saúde do recém-nascido está extremamente delicada e sua respiração, batimento cardíaco e outros sinais importantes são constantemente monitorados para a rápida detecção de mudanças, boas ou ruins. Depois de uma semana, ele está bem melhor. Em todas as principais medições, o bebê está avançando, mas ainda precisa seguir na incubadora, porque sua saúde continua crítica. Faz sentido dizer que sua situação está melhorando? Sim. Totalmente. Faz sentido dizer que está ruim? Sim, com certeza. Dizer ‘as coisas estão melhorando’ implica que tudo está bem e que todos deveríamos relaxar e nos despreocupar? Não, de maneira nenhuma. É útil ter que escolher entre ruim e melhorando? Definitivamente, não. São ambas as coisas. É ruim e melhor. Melhor e ruim ao mesmo tempo.”

Nessa linha de raciocínio, portanto, poderá haver em 2100 um número próximo ao de hoje de crianças aprendendo violão. Talvez não aumente tanto, visto que a quantidade de instrumentos por milhão de seres humanos já está em nível epidêmico — e as epidemias tendem a amainar. Ruim e melhor. Libertador.

Rosling classifica os países em níveis de renda que vão de 1 (paupérrimos)  a 4 (ricos). A Suécia natal do autor (nível 4) era um Egito (nível 2) quando ele nasceu — e um Moçambique (nível 1) no começo do século XX. Nessa gradação, o Brasil está atualmente no nível 3. Nada mau. Não acredita? Por que você pensa que estaríamos no nível 1 e 2? Por causa da mídia, claro, e a sua mania de destacar somente o que é ruim, não o melhor, como diz o autor, num eco escandinavo de Jair Bolsonaro, Lula e Gilmar Mendes. Concordei a tal ponto que, imediatamente depois da leitura do livro, subestimei o número de miseráveis brasileiros para um terço. Nunca antes neste país.

No século XVIII, Voltaire ridicularizou Leibniz com o romance Cândido ou O Otimismo. A concepção de Leibniz de que vivemos no melhor dos mundos possíveis, como se o mal fosse uma parte insignificante e complementar da criação divina, ganhou corpo na figura do tutor de Cândido, o professor Pangloss, um otimista até quando acometido de sífilis. Lembro que li o romance em Nápoles, lá se vão 32 anos, hospedado num hotel barato. No quarto ao lado, a música árabe perturbava a minha concentração. Durante cinco minutos, Pangloss me apaziguou com a frase “infortúnios privados contribuem para o bem-estar público”. A partir do sexto minuto, porém, comecei a bater o chinelo na parede fina que me separava do vizinho. O infortúnio privado passou a ser de ambos. Não vou ridicularizar o professor Rosling, comparando-o com o personagem de Voltaire. Os números não mentem, ao contrário da filosofia e da literatura. Rosling morreu em 2017, aos 68 anos, de câncer de pâncreas. Mais dois anos apenas e chegaria à expectativa de vida média da população mundial. Foi por pouco. É uma forma de ver o ruim e o melhor ao mesmo tempo.

Dei um basta ao meu pessimismo malthusiano. Pelo menos enquanto não surge o próximo motivo ululante que me fará sentir ainda mais nostálgico do julgamento do mensalão. Foi nele que, ao comentar os argumentos da defesa dos réus sobre como a compra de votos no Legislativo visava ao bem, a ministra Cármen Lúcia disse: “No Supremo, não tem Pangloss”. Agora tem um monte. Espero que a editora Record me mande outro livro terapêutico.

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