MarioSabino

Os mortos e os vivos

20.12.19

Quantos mortos existem na sua vida? Na minha, há vários, desde cedo. Mario, Italia, Dinorah, Trento, Jorge, Futin, João, Lourdes, Alberto, Olga, Alice, Maurinho, Regina, Alba, Nelson, Musa, Nicolau, Antônio, Tales, Sarita, Renato, Sergio, Maurício, Vera… É, naturalmente, uma lista que tende a aumentar com o tempo, até que você acaba incluído em elenco semelhante. Neste momento, um deles, Mario, parece me observar. Mario retrato na parede olha Mario que virará retrato digital num telefone aposentado.

Não penso obsessivamente na morte, mas é um tema que se torna insidioso quando você tem como expectativa não mais do que vinte anos pela frente, se nada der muito errado. Sim, eu sei, para morrer basta estar vivo, todos podem morrer daqui a um segundo, não importa a idade. De qualquer forma, não é de todo mau pensar na morte como o desenlace do envelhecimento que vai se desenhando no espelho. E aceitar com certa resignação que você terá um fim e, apesar dele, os dias continuarão a ser dias e as noites continuarão a ser noites.

A aceitação está cada vez mais difícil. Basta olhar ao redor. Faces são paralisadas e corpos são torneados, em tentativa de fuga do cara a cara e corpo a corpo com a morte que se avizinha. Cirurgias, aplicações disso e daquilo, tingimentos, vitaminas, cremes, ginásticas, dietas, maternidades e paternidades tardias, os cinquenta são os novos quarenta, os sessenta são os novos cinquenta, os setenta são os novos sessenta, os oitenta são os novos setenta. Nada contra os expedientes, conservar-se é saudável em si mesmo. Em certos momentos, porém, as tentativas se afiguram pateticamente tristes. É como se pudéssemos aprisionar, mais do que a juventude, a própria vida, mumificando-a em caricatura.

Não podemos. Os meus mortos sempre aparecem para dizer presente nesta época do ano— e lembrar que você se juntará ao time, por mais que procure adiar o encontro. Muitos não sabiam que o seu último Natal era o derradeiro; poucos sabiam. Melhor não saber? Eu já tentei fugir dos meus mortos. É mais fácil quando você está no estrangeiro, em outra língua. O Natal vira uma vitrine que você admira à distância. Uma vitrine de Natal. Os mortos são dos outros e dispensam maiores apresentações. Eu disse que era mais fácil, não que você consegue escapar totalmente de deparar com um dos seus mortos. O Mario retrato na parede, por exemplo, compareceu à linda, porque solene, missa de Natal de Saint-Sulpice, então vigiada por soldados armados de metralhadoras, para evitar mais um ataque terrorista em Paris. Eu o vi sentado à minha direita, algumas fileiras à frente. Ele permaneceu lá até que o homem se levantou para comungar e, ao virar-se na minha direção, mostrou feições diversas. Mortos saem à francesa.

Com os sinais vitais preservados até o instante, também vou embora de fininho neste último artigo de 2019. Os parágrafos precedentes foram escritos para esta saída: lembrar que, no Natal, celebra-se o nascimento de alguém que viria a morrer, e jovem, para que pudéssemos renascer. (O Cordeiro a ser imolado pouco antes da Páscoa.) Há uma metáfora poderosa e extrema aí, mesmo para quem não crê na história ou a ridiculariza. O Natal é uma afirmação da vida que surge como doação, porque essa é a única forma de existirmos realmente. Não vivemos para não morrer; vivemos para que os outros vivam e a nós sobrevivam, em moto contínuo — nós somos eles e eles somos nós, eis a comunhão a ser aprendida. Vale para a religião e para quem acredita no gene egoísta. “Quem ensinar os homens a morrer os ensinará a viver. Quem viu um dia já terá visto todos”, disse o meu amigo Michel de Montaigne, que volta e meia vem me visitar. Pensando bem, sou eu que o visito. Não são os mortos que aparecem aos vivos, mas são os vivos que aparecemos aos mortos. Ir ao encontro dos mortos é tão inevitável quanto a morte que vem ao nosso encontro. Façamos isso com a tranquilidade e o desapego possíveis. Feliz Natal.

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