MarioSabino

O que é ser um patrão de esquerda

26.04.19

Li recentemente no jornal Le Monde um artigo intitulado “O que é ser um patrão de esquerda”? É assinado por um sociólogo e um sindicalista, o que já seria motivo para eu pular a leitura. Mas o assunto me chamou a atenção porque eu mesmo já me fiz essa pergunta. Na minha experiência, os patrões – e chefes – de esquerda sempre foram os mais abusivos. De certa forma, esperava-se o contrário, visto que a esquerda estaria destinada a lutar pela igualdade e fraternidade. A julgar pelo artigo – escrito por esquerdistas e publicado por um jornal de centro-esquerda — patrões de gauche usam a ideologia para continuar faturando na exploração do homem pelo homem que dizem combater.
Os autores constataram que esses benfeitores da humanidade frequentemente impõem jornadas exaustivas, substituem assalariados por estagiários não assalariados e remuneram mal. Ainda assim, tentam passar a ideia de que são “camaradas” (na versão brasileira, seriam “companheiros”) dos trabalhadores. Não se assumem como empregadores, que é o que eles são, e agem como se não houvesse hierarquia. A situação é ainda mais esquizofrênica quando se trabalha para associações que, ao menos no papel, não visam a lucrar, mas a defender uma causa específica – universo no qual os patrões de esquerda são uma legião, segundo notam os autores do artigo. Em geral, os funcionários dessas associações compartilham dos mesmos ideais dos seus superiores, mas são submetidos a horários desumanos, sem a devida contrapartida. O aspecto militante é transformado em justificativa para uma espécie de semiescravidão.

Como eu disse, minha experiência com patrões de esquerda é a mesma relatada no jornal Le Monde. Eu jamais ganhei por todas as horas extras trabalhadas, seja por meio de remuneração ou folgas extras. Bonificações por produtividade ou participação nos lucros, nem pensar. A minha experiência pessoal só difere da relatada no artigo porque ninguém fingia muito ser “camarada”. Patrões de esquerda e seus capatazes igualmente salvadores da humanidade eram ríspidos e passavam pelos funcionários com ares de imperadores. Submeter a humilhações era a norma. Entendi que seres humanos de carne e osso não fazem parte da humanidade a ser redimida. Nos editoriais e nas reportagens que escreviam ou encomendavam, porém, os movimentos sociais eram glorificados e os raros empresários abertamente identificados com a direita, vilificados. Quando trabalhei para patrão de direita, mas chefes de esquerda, quem me tratava bem e cumpria as obrigações era o patrão. No que dependia dos capatazes, a arbitrariedade era a regra – editores de direita, por exemplo, recebiam bonificações menores do que os de esquerda, ainda que os resultados dos primeiros pudessem ser melhores do que os dos segundos. Todos cumprindo, é claro, expedientes estafantes muito acima do permitido pela lei.

Uma piada polonesa da época em que o país era ditadura comunista dizia que a diferença entre capitalismo e comunismo é que o capitalismo é a exploração do homem pelo homem e o comunismo é o inverso. Inverso acrescido de cinismo, primo-irmão da hipocrisia. Lutar por um regime de esquerda é achar sempre que se vai estar no topo da hierarquia ou próximo dele. Poucos conseguem, evidentemente, mas é imortal a ilusão de que a direção da fábrica é para todos – e, uma vez na direção, o negócio para quem chegou lá é manter a humanidade domesticada na sua redenção. De certa forma, patrões de esquerda e chefes de esquerda reproduzem o que é, de verdade, o regime que dizem almejar.

Nas relações trabalhistas, patrão sincero não esconde que é de direita. Afinal de contas – principalmente as que constam no Excel –, ele é um construtor do capitalismo e um usufruidor do único sistema capaz de gerar riqueza. Melhor negociar com gente franca do que dissimulada. Patrão insincero usa o discurso da esquerda com os seus empregados apenas para escamotear, às vezes até para si próprio, que não é um construtor e usufruidor do capitalismo – e, desse modo, endurecer com os “camaradas”, sem perder a ternura.

Quanto às relações de mercado, não vejo problema em vender produtos de esquerda (caso de jornais, filmes, novelas e música pop, por exemplo) ou manter certa aura esquerdista (caso de fabricantes de cosméticos e até bancos, entre outros), mesmo que se pense o contrário como dono. É do jogo. Como disse o americano Sam Walton, fundador do Wal-Mart, “há apenas um patrão. O cliente. E ele pode demitir todo mundo na companhia, do presidente para baixo, simplesmente gastando o dinheiro dele em outro lugar”. Se há clientes de esquerda, que sejam bem atendidos e gerem lucro. Esta é a beleza do capitalismo: se existe demanda, é preciso ter oferta.

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